Resenha Iarema Soares
Fotos Carol Ferraz
Em março de 2017, Rincon Sapiência – também conhecido como Manicongo – veio à Porto Alegre e o show aconteceu em uma casa noturna de pequeno porte da cidade. Na época, ele tinha lançado o EP SP Gueto BR. Esse trabalho aborda a vida na periferia de São Paulo, versa sobre a tensão cotidiana que os periferianos enfrentam, mas não deixa de mostrar que ali tem arte, tem festa, tem resiliência e resistência. Na época, os hits “Ponta de Lança” e “Meu Bloco” eram os mais conhecidos e foram os que o projetaram nacionalmente.
Pouco mais de um ano depois, Rincon volta à capital gaúcha, desta vez no bar Opinião, mas não volta somente com o deejay que o acompanhou da última vez. Rincon não volta com apenas um ep lançado. Rincon não volta com a mesma estética. Nesse meio tempo, ele cresceu exponencialmente como artista, lançou o álbum Galanga Livre, rodou o Brasil, participou do festival Lollapalooza, fez parcerias e reforçou ainda mais sua identidade como autor e narrador da própria história.
Rincon fala por meio das rimas afiadas que abordam a violência e o racismo aos quais a população negra está exposta, exalta o amor afrocentrado, eleva a autoestima negra e faz ficção quando narra a história de um escravizado que matou o senhor de engenho. O artista fala com o corpo que dança de um jeito particular, peculiar e envolvente, coloca as pessoas na mesma sintonia por meio de acordes de guitarra, berimbau e atabaques e conversa com o público sem necessariamente falar com ele. As linhas compostas pelo artista apresentam um storytelling consistente e funcionam como complemento à sobressalente melodia produzida por ele.
Com o Opinião cheio, Rincon fez o público suar e seduziu a todos com o afro rep. A energia e ritmo que ele e a banda emanavam do palco chegou aos presentes que se deixaram guiar pela sonoridade do rapper da zona leste de São Paulo, apesar de, em alguns momentos, a aparelhagem técnica de som ter ficado aquém do esperado.
O artista passou por muitas tracks dos mais de 15 anos de carreira, mas, na primeira parte do show, mostrou as músicas do Galanga Livre. Álbum esse que conta a história da personagem homônimo que vive um misto de emoções por estar em fuga, aflito e sentindo-se livre após ter assassinado o senhor de engenho. O trabalho começa sua narrativa no período colonial, mas chega aos desejos da população negra contemporânea que luta e almeja chegar em determinados espaços, consumir determinados produtos, mas que, acima de tudo, quer viver, não somente sobreviver.
Usando roupas em tons terrosos e colares, Rincon doou-se em cada track cantada. O palco – que já era dele – virou quase uma extensão, a segunda casa do artista que chamou pessoas da plateia para dançar ao som de um dos filhos do gueto, o funk. A apresentação crescia, o público fervia e aconteceu o inevitável: estávamos todos em êxtase e influenciados pelo afro rep que transitava pelo jazz, samba e até mesmo o arrocha. Dessa miscelânea musical que bebe de fontes estadunidenses, africanas e brasileiras, do movimento de busca a origens e diálogo com o presente nasce a musicalidade de Rincon Sapiência.
Nesse ambiente hostil que é o Brasil para a comunidade negra, em um país no qual um jovem negro morre a cada 23 minutos, o rapper lembrou: “Nesse país machista contra as mulheres e racista contra nós (negros), todas as dificuldades impostas nos levam, naturalmente, a um lugar de luta. Eu consegui atravessar essa fronteira de impossibilidade que me foi imposta, desse destino sem perspectiva positiva que me foi traçado para estar com vocês aqui hoje”. A fala do artista está longe de qualquer alinhamento com a meritocracia, muito pelo contrário. Ela mostra o quão difícil é para negras e negros sair do lugar de submissão e subalternidade que o sistema racista forçosamente imputa. Com discurso de autoafirmação e exaltação da negritude, Rincon mostra-se como exemplo de uma outra realidade que pode ser sonhada de um outro lugar que pode ser vivido.