Por Cristiane Marçal*
Foto: Tonico Alvares/CMPA
A mais recente polêmica do meio artístico gaúcho começou há algumas semanas, quando o presidente da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Valter Nagelstein (MDB), anunciou a abertura de um edital de R$ 350 mil para a montagem de uma ópera-rock sobre a Revolução Farroupilha . O fato levantou um combo de polêmicas, algumas delas estão aqui, aqui e aqui. Façam uma busca por “edital ópera rock” no Facebook e vão achar tantas outras mais. São questões que envolvem os mais diferentes ângulos do mérito artístico e viabilidade da proposta (o tema, o gênero, a relevância, o prazo, o custo…) e outros tópicos que adentram a esfera política e histórica.
Mas a notícia parece boa. Afinal é investimento em cultura, certo? A classe artística não estava se queixando de negligência financeira por parte do poder público? Por que reclama? Porque só investir em cultura não garante a funcionalidade da ação. A proposta da ópera rock funciona pra muita coisa, mas não como política pública cultural. E como política pública cultural (o que imaginamos que ela seja, já que se trata de uma proposta oriunda de uma instituição pública, que será executada com dinheiro público e objetiva oferecer um benefício à população) é possível perceber que essa proposta é uma deformidade.
Uma leitura contemporânea do tema política cultural [1] entende o mesmo como um conjunto de ações planejadas e executadas de maneira articulada entre poder público e instituições civis, num acordo que envolve os diferentes agentes envolvidos (gestores, produtores, consumidores), em vez de ser uma determinação vertical, de cima para baixo, com o estado definindo o que será colocado em ação, quais práticas culturais serão exercidas pelo meio artístico e consumidas pela população ou, ainda, como será o atendimento dos interesses que são exclusivos das classes artísticas.
Aliás, há poucos meses, a UNESCO lançou o relatório global Re|pensar as políticas culturais: criatividade para o desenvolvimento, que pode ser baixado gratuitamente aqui. A publicação, que é uma análise da implementação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO (de 2005), mostra a influência positiva desse trabalho numa governança colaborativa e elaboração de políticas com múltiplos interessados (capítulo 1), além de destacar que o objetivo da Convenção de apoiar sistemas sustentáveis de governança para a cultura só pode ser alcançado por meio de forte participação da sociedade civil (capítulo 4). Vale a leitura!
Em suma, de acordo com esse pensamento chancelado pela Unesco, podemos dizer que é inerente à política pública que se pretende cultural uma dinâmica de escuta que visa entender quais são as demandas advindas do campo artístico antes de criar uma solução para saná-las. Porque, a princípio, o dinheiro público serve para sanar demandas que venham da população.
Na matéria publicada na Zero Hora, temos alguns trechos que apontam para uma pessoalização da proposta:
“Ver a cena acima (da ópera rock sobre a Revolução Farroupilha) realizada é um sonho antigo do presidente da Câmara de Vereadores, Valter Nagelstein (MDB), que lançou, na semana passada, edital público para torná-lo realidade.”
“Nagelstein não nega que o projeto da ópera rock é uma iniciativa pessoal, algo que deseja deixar como legado de sua gestão na Câmara, que se encerra em janeiro de 2019. Tanto que, ao utilizar o ‘nós’ para falar da origem do projeto, em seguida se corrige:
— Quando falo nós, quero dizer eu, Valter.”
“O presidente da Câmara acredita que o projeto, embora seja uma vontade sua, será democratizado quando compartilhado com a cidade”
Ou seja, a verba destinada para sanar uma necessidade pública será usada para atender um desejo pessoal de um presidente da Câmara de Vereadores. Bom, mas ainda assim, é uma iniciativa válida como política cultural, na medida em que terá apresentações públicas gratuitas e trata de um tema histórico, certo? Não. E explico a razão.
Para contextualizar, rapidamente, vamos falar da política de editais enquanto política pública de cultura. O pouco que ainda temos de mercado de cultura que contempla os pequenos produtores, que são a maioria, está diretamente ligado a esse sistema. Mas, como todo o sistema, ele tem problemas. Um deles é o cerceamento da criação artística através de condicionantes impostas para participação em editais. Isso acontece na medida em que a concorrência estabelece pré-definições como tempo de duração de um espetáculo, formato de um livro ou a natureza da proposta artística (um dos mais pedidos nos últimos anos é “linguagem inovadora”). Isso cerceia, quando não inviabiliza, a criação do artista, na medida em que ele sabe que só obterá financiamento para um determinado projeto se o mesmo tiver uma característica “x”.
Essa situação gera um risco de direcionar coletivamente e forçadamente a produção artística de toda uma sociedade. Embora meritória em vários aspectos, nós temos esse ponto nevrálgico da política de editais que precisa ser discutido e exige um auto-policiamento dos agentes públicos para que não sejam ultrapassados certos limites.
Porém, o edital da ópera rock de Nagelstein ultrapassa todos eles. Ele não apenas impõe o tema, mas também a obra na qual a proposta será realizada, o gênero teatral/musical e até o título do espetáculo. Ou seja, ele foge de um pensamento contemporâneo de políticas culturais e nos joga para um período anterior ao Renascimento, num tempo em que o financiamento das obras era principalmente oriundo da igreja, que determinava os temas e até pormenores das obras, como as cores que deveriam ser usadas. Pelo menos naquela época não chamavam isso de política cultural.
A proposta pode ser válida na leitura do vereador, do prefeito, do secretário da cultura e de outras pessoas que apreciam a ideia. Mas não para ser executada com dinheiro público. Ou melhor, ela pode ser executada com dinheiro público, desde que passe pela concorrência dos editais, como toda a classe artística faz com seus projetos pessoais, e não que a proposta seja o próprio edital. Também posso repassar como possível solução o mantra entoado pelo atual prefeito e seu colega secretário da cultura. Quer financiar sua obra? Então busque recursos na iniciativa privada. Mas deixe a verba pública da cultura ser administrada por quem realmente deve administrá-la. O nome disso, segundo a Unesco e o bom senso republicano, não é burocracia, é transparência.
[1] Segundo diferentes pesquisadores como Teixeira Coelho, Néstor García Canclini e Nivón Bolán. Mais detalhes no livro Políticas Culturais no Brasil, de Lia Calabre, editado pela Fundação Getúlio Vargas, na página 12.
*Cristiane Marçal é jornalista, produtora cultural, mestranda em Relações Sistêmicas da Arte pela UFRGS e co-idealizadora de eventos culturais como Porto Alegre Noir e a série de cursos Sobre Viver de Cultura