Bailei na curva, 2019: novos velhos tempos

Como se reinventa uma obra que sempre colocou o dedo na ferida da ditadura militar ainda em pleno regime e é encenada agora em um novo momento,  quando temos um defensor da tortura como presidente do Brasil?

Há 36 anos em cartaz, Bailei na Curva continua levando bastante gente ao teatro, como constatamos em uma das cinco noites de apresentação da peça no Porto Verão Alegre (saiba mais aqui). O espetáculo, dirigido por Julio Conte, foi criado por um grupo de jovens estudantes de teatro da Ufrgs  (Júlio Conte, Cláudia Accurso, Flávio Bicca Rocha, Hermes Mancilha, Lúcia Serpa, Márcia do Canto e Regina Goulart) e estreou em 1983, época em que a liberdade começava a tomar forma na sociedade brasileira. Com sucessivas remontagens e novos elencos, Bailei na Curva acabou resguardando a memória sobre os traumas do país, além de abordar temas como desigualdade social e sexualidade. Atualmente, o elenco é composto pelos atores Ana Paula Schneider, Catharina Conte, Eduardo Mendonça, Guilherme Barcelos, Laura Leão, Leonardo Barison, Manoela Wunderlich e Saulo Aquino.

A história começa em 1964, quando passamos a acompanhar a vida de 7 crianças de uma vizinhança, e termina nos anos 1980, já na reabertura política. À medida que as décadas passam, o espetáculo, paralelamente à vida dos personagens, nos brinda com os costumes da época, sátiras e caricaturas cirúrgicas – nesse sentido, as esquetes da bolha universitária e as da fase hippie são particularmente engraçadas.

Foto: divulgação

Afinal, a mágica do espetáculo acontece nesses momentos em que nos damos conta de que a vida em sociedade é cíclica e que, afinal, realmente não somos tão diferentes de nossos pais. A fórmula traz ainda uma simplicidade nos diálogos e na cenografia (que sempre foi composto por cadeiras e, recentemente, ganhou projeções poderosas também como elementos narrativos), trazendo todo o foco para a humanidade dos personagens, os diálogos entre eles e suas relações. Os momentos musicais, como o “Marcha Soldado” e a eterna “Horizontes” também ajudaram a peça a se tornar um clássico, e é difícil não ver uma plateia emocionada nesses momentos do espetáculo.  

Já o contexto político não é mero plano de fundo da trama, embora o interesse por contar a história da ditadura para que ela não se repita tenha decaído consideravelmente nos espaços culturais e midiáticos nos últimos anos. Nos dias atuais, em que integrantes do governo na área da educação não escondem que seu objetivo é rever o conteúdo sobre ditadura militar nos livros didáticos de história, parece ganhar ainda mais peso.

Nesse sentido, o sentimento de inconformidade com o passado e medo pelo futuro se traduz no personagem de Pedro. Ainda que não seja propriamente protagonista, ele é o elo narrativo da história. Negro e pobre, filho de um sindicalista, acaba mais tarde seguindo os passos do pai na luta pela contra a injustiça social e se juntando à resistência armada, em uma espécie de homenagem a Marighella. Entre Gabriela, Caco, Paulo Ricardo, Luciana, Ana e Ruth, Pedro é o único que não se dá bem na trama e, não por acaso, o único que escolhe lutar contra o sistema opressor.

Elenco de Bailei na Curva em 1985. Foto: reprodução

Bailei na Curva se cristalizou na memória gaúcha e brasileira (o espetáculo já foi remontado em vários estados) por sua insistência em resistir à passagem do tempo, com ampla aceitação do público, e por nunca desprezar o corte profundo da ditadura e da desigualdade. Uma obra que nasceu arrojada, questionando tabus e à frente do seu tempo, mas que poderia rever alguns diálogos – os gordofóbicos, por exemplo -, para seguir progressista, como fez ao eliminar uma frase racista da dramaturgia.

E se é verdade que algumas piadas envelheceram melhor do que outras, atualmente as tiradas de conotação política se destacam ao provocar uma certa catarse. Um exemplo é a cena – da peça original, é bom frisar, ainda que Conte tenha inserido falas perspicazes nesta temporada  – em que Caco pergunta ao pai quem iria lutar na guerra às vésperas de abril de 64. “Os comunistas contra os brasileiros”, responde o adulto.

Foto: divulgação

Voltando a 2019, com a ascensão da influência evangélica no poder, outro eixo temático da obra se torna também um assunto espinhoso, mas nunca silenciado: a sexualidade. Se nos anos 1980, o tema começava a ser libertado dos valores moralistas da ditadura, atualmente a palavra volta a assumir significados um pouco subversivo. O contexto acaba transformando algumas esquetes da obra em manifestos involuntários, ao mostrar que sim, é saudável que crianças conheçam o assunto e que a sexualidade e a diversidade são valores universais e naturais, com os quais todo mundo se identifica.

Das referências afetivas do imaginário porto-alegrense, Bailei na Curva talvez seja a que mais causa desconforto. Passam os anos, mudam os governos e, frente ao espetáculo, continuamos nos vendo no palco, munidos de nossos bordões provincianos, do cansaço da cidade refletido em desdém e das experiências tortas da juventude. Mas é, sobretudo, a capacidade de reinvenção dos personagens que une silenciosamente os espectadores – e é assim também com o próprio espetáculo.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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