por Thaís Seganfredo
Capa: Obra de Sandro Ka no Queermuseu (Foto: reprodução)
Atualizado em 11/6/2019: Nesta segunda-feira (10), a lei foi julgada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado que julgou uma Ação de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Ministério Público. O MP alegou que a lei fere o direito à livre manifestação previsto na Constituição e o TJRS acatou o pedido. Com a decisão, a lei será considerada inválida.
A partir deste ano, artistas e produtores deverão classificar suas obras, exposições, espetáculos e eventos culturais por faixa etária no Rio Grande do Sul. A Lei Estadual n.º 15.280, sancionada pelo governador Eduardo Leite (PSDB) na última sexta-feira (1), está sendo questionado por diversas entidades da classe artística, com a alegação de que a medida abre precedentes para a censura prévia e para a criminalização dos artistas, além de ser inconstitucional por ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Desde 2017, ano da censura ao Queermuseu e dos ataques ao coreógrafo Wagner Schwartz, no MAM, projetos relacionados à classificação indicativa a obras e eventos culturais estão se disseminando nas assembleias estaduais e na Câmara dos Deputados. Em São Paulo, o PL 922/2017, de autoria de um deputado do PSC, foi aprovado em junho do ano passado, com texto semelhante ao PL gaúcho. No Rio Grande do Sul, a matéria é de autoria de Lucas Redecker (PSDB), atualmente deputado federal, e prevê 6 faixas de classificação (livre, 10 anos, 12 anos, 14 anos, 16 anos e 18 anos).
Já no Congresso, cerca de 10 propostas similares tramitam na Câmara, a maioria delas apensadas ao PL 2415/1996, que foi inicialmente criado para alterar a classificação etária dos programas de televisão e agora agrega os projetos inspiradas nos modelos já aprovados no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Em 2017, o atual Ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, criou o PL 9000/2017, que estabelecia a criminalização, com reclusão de 2 a 5 anos, pela utilização de “recursos públicos para a realização de projetos que, promovam a sexualização precoce de crianças e adolescentes ou façam apologia a crimes ou atividades criminosas”. A proposta foi arquivada no dia 31 de janeiro de 2019, término do mandato do ex-deputado. Atualização (11/02/2019): O Projeto de Onyx Lorenzoni foi desarquivado no dia 07 de fevereiro. Na justificativa da proposta, Lorenzoni cita tanto o Queermuseu quanto a performance no MAM, acusando ambos de pedofilia. Atualmente, está com a deputada Erika Kokay (PT), que foi designada relatora do projeto na Comissão de Cultura da Câmara.
Artistas destacam que, na prática, medidas como a aprovada na ALRS também são uma forma de criminalização, na medida em que a classe artística ficará passível de denúncia por parte de qualquer pessoa ou entidade que não concordar com a classificação ou se sentir ofendido por ver uma criança ou adolescente no evento. As denúncias poderão ser seguidas de juízo e punição por parte dos conselhos tutelares, do Ministério Público, do Poder Judiciário, do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do RS e da Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos, conforme estabelecido no artigo 7º. O projeto, no entanto, não estabelece os limites de atuação desses órgãos na manifestação artística.
Fabio Cunha, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversões do Rio Grande do Sul (Sated/RS), ressalta que a lei abre brechas para haver arbitrariedades nas denúncias. “Ela coloca o produtor, o artista e o curador como responsáveis. No meu ponto-de-vista, no caso da Queermuseu, hoje o curador e os artistas estariam respondendo legalmente por aquilo que antes não era um crime se houvesse essa lei.”
A própria justificativa do projeto também é apontada como fascista por Cunha, na medida em que o texto afirma existir possível “ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente em diversões e espetáculos públicos” por parte dos artistas. Para o curador da Queermuseu, Gaudêncio Fidelis, ao restringir o acesso à arte, o projeto estabelece censura prévia. “Ele pressupõe, a priori, que obras de arte ou eventos culturais, ou seja, uma manifestação criativa, produzam alguma espécie de malefício ou de dano moral”, diz.
O curador alerta ainda que os artistas podem passar a realizar autocensura, porque quem responderá pelas denúncias, segundo o artigo 6º, serão os responsáveis pelo evento, o que pode gerar criminalização da classe. “O problema já começará quando tiver que haver a escolha sobre o que vai ser mostrado, o que vai ser exposto. Qual é o organizador ou responsável por um evento que vai se arriscar a ser criminalizado se alguém fizer uma denúncia?”, questiona Fidelis.
A avaliação é que, se for regulamentada no Rio Grande do Sul e aprovada em outros estados, a lei pode ser uma forma de institucionalizar a censura, que já vem ocorrendo de forma pontual por meio do Judiciário, de gestores culturais ou pela pressão de empresas privadas, como ocorreu com o Santander Cultural. O espetáculo “O evangelho segundo Jesus Rainha do Céu”, no qual Jesus Cristo é representado por uma travesti, já foi proibido em diversos estados pela Justiça. Neste ano, a Secretaria de Cultura estadual do Rio de Janeiro encerrou uma mostra um dia antes do fim, o que impossibilitou uma performance que criticava a ditadura militar.
Para Fidelis, que também teve uma mostra censurada por pressão de setores conservadores da sociedade, “estamos em um momento de muito retrocesso e perda progressiva da democracia. Com projetos como Escola Sem Partido e os ataques contra a liberdade de expressão, incluindo a liberdade de imprensa, isso vem se agravando a cada dia. A democracia não é perene, temos que lutar por ela todos os dias”.
Classe artística não foi ouvida durante a tramitação da matéria
A falta de debate público marcou o andamento do projeto na Assembleia, uma vez que, mesmo tramitando desde 2017, não foram realizadas audiências públicas nem reuniões para ouvir os artistas e produtores culturais. A aprovação da matéria por 43 votos a favor e uma abstenção, em dezembro de 2018, pegou de surpresa os profissionais. “A gente não sabia dessa lei, foi aprovada em cima da hora e em nenhum momento chegaram para discutir com nenhuma das entidades”, lamenta Fábio Cunha.
No começo de 2019, entidades como o Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, o Conselho Estadual de Cultura, o coletivo Prosperarte e o Sated/RS correram para se articular e enviar uma carta coletiva a Eduardo Leite pedindo que ele vetasse o PL, mas não foram ouvidas pelo Executivo.
Agora, o artigo 10º do PL determina que cabe ao governo do Estado a regulamentação da lei em até 180 dias. Por telefone, a Secretaria Estadual de Cultura afirmou à reportagem que a lei tem vício de origem, pois o Estado não tem jurisdição para tramitar nessa questão. “Esse foi o parecer do jurídico da Secretaria. Essa apreciação foi enviada para o gabinete do governador. Entretanto, como o status da Assembleia é de que está em arquivo, não se sabe se o governador, que está viajando, já se ateve a a esse material ou não”.
Projeto contradiz Estatuto da Criança e do Adolescente
Outro ponto questionado pela classe artística é a inconstitucionalidade da lei. Em primeiro lugar, por contradizer o Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura aos pais e responsáveis a decisão de possibilitar o acesso dos filhos ou tutelados à arte, não sendo um papel do Estado interferir neste caso. O ECA aponta que espaços culturais forneçam informações básicas sobre o conteúdo artístico, mas não faz menção a uma classificação etária. Algumas propostas já tramitam no Congresso com o objetivo de alterar o ECA no que diz respeito à classificação indicativa.
A judicialização é um dos caminhos cogitados pelos artistas para rever o retrocesso. Outro objetivo é a modificação dos artigos 6º e 7º, considerados mais problemáticos. Uma das alternativas seria que a própria classe artística atuasse como fiscalizadora no lugar dos órgãos citados, seguindo aspectos técnicos e não subjetivos, além de não ser responsabilizada diretamente pela classificação.
Para Fidelis, a questão pode ser levada para o STF por infringir a liberdade de expressão, embora afirme que a solução esteja na educação. “Nós não precisamos de lei para estabelecer censura, precisamos voltar a ter uma educação forte, para que as pessoas tenham acesso a uma formação sólida para enfrentar esse mundo desafiador que estamos vivendo”, afirma o curador.