Na abertura da 12ª Festipoa Literária, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro debatem soluções para o país

Reportagem: Thaís Seganfredo
Fotos: Douglas Freitas/Festipoa Literária

Duas das maiores vozes intelectuais do país, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro abriram a 12ª Festipoa Literária na noite desta segunda-feira (29), em uma mesa de debate que propôs soluções para as questões sociais do país e abordou a obra de Sueli, homenageada deste ano. Ao lado da escritora e jornalista Fernanda Bastos, anfitriã desta edição, as filósofas fizeram o Salão de Atos da UFRGS –  com capacidade para mais de mil pessoas – ficar pequeno diante de tanta potência. Outras centenas de pessoas acompanharam por um telão a abertura da festa literária, que já se consolidou como um dos eventos mais efervescentes e relevantes do estado.

Criadora da Oscip Geledés, Sueli Carneiro iniciou sua fala abordando os motivos que a levaram a escrever. “Como disse Bell Hooks, mais do que qualquer grupo de mulheres, as negras têm sido consideradas só corpos sem mente. Cada um dos meus escritos são produto de algum momento dessa luta permanente a que as pessoas negras estão condenadas para assegurar o direito à vida, sempre ameaçado; para alcançar a igualdade de oportunidades de direitos, sempre negados; para ter o direito a uma representação justa, positiva; para alcançar reconhecimento e justiça social”.

Ao declamar o poema “Mãe Preta”, de Fernanda Bastos, Sueli emocionou a plateia e fez referência às vozes insurgentes das desigualdades raciais no país.  “Esta homenagem significa para mim o reconhecimento desse discurso produzido sob lágrimas insubmissas, o reconhecimento dessa escrevivência, para incomodar os da casa-grande, em seus sonhos injustos, como apontou nossa magistral Conceição Evaristo”, disse.

Sueli Carneiro é a homenageada da edição (Foto: Douglas Freitas)

Já Djamila Ribeiro homenageou Sueli abordando sua influência no pensamento de uma geração de pensadores. “O que a Sueli nos proporcionou foi fundamental para as mulheres da minha geração”, disse, contando que conheceu a ativista quando começou a trabalhar numa biblioteca em Santos, chamada Carolina Maria de Jesus. “Lá eu descobri várias literaturas de mulheres negras. Foi um espaço também de cura, porque a gente é muito adoecida por narrativas que nos desumanizam. Eu fiquei encantada com a Sueli”, disse a escritora, ao contar que, quando soube que Sueli é doutora em Filosofia, se sentiu inspirada a seguir o mesmo caminho.

Referência de gerações, Sueli expôs ao público um de seus principais pensamentos, que norteiam o Geledés desde 1988. “A nossa escrevivência insurgente clama por um novo pacto racial e de gênero, que desaloje todas as hierarquias produzidas pelo racismo e pelo sexismo. Esses sonhos libertários conformam uma nova estética social, fundada em uma ética na qual a diversidade humana se constitui numa espécie de espetáculo da natureza a ser preservado”, explanou a filósofa, que propôs uma nova educação, em substituição ao mito da democracia racial brasileira. “Será possível também nós aprendermos a respeitar e conviver e nos enriquecer com as experiências raciais, étnicas e culturais dos seres humanos. Este é o abcesso do novo pacto racial e de gênero que desejamos. Um país que foi capaz de criar a mais bela fábula de relações raciais talvez seja também capaz de um dia torna-lo realidade.”

Diálogo geracional

Djamila Ribeiro afirma que há um amálgama na sociedade brasileira (Foto: Douglas Freitas)

Ao comentar as conquistas e consequências das diferentes gerações quanto às relações raciais no país, Sueli lembrou o legado de antropóloga e filósofa Lélia González, autora de livros como Festas Populares no Brasil (1987). “Eu descobri o que iria ser quando crescer quando eu vi Lélia. Eu já tinha consciência racial e circulava no movimento negro, mas nunca ninguém tinha sintetizado o que era essa experiência única de ser mulher negra na sociedade brasileira, que faz com que a gente ocupe um lugar onde se pode desenvolver uma ótica para perceber as mazelas e contradições da sociedade, ótica esta que forma uma ética da necessidade de transformar essa condição em uma condição de justiça”.

O debate enveredou para o legado da direção de Sueli, que lutou na época pelo fim da ditadura militar e pela Constituição de 1988. “Esse foi um momento especial em que a sociedade brasileira se encontrou. O que nossa geração fez foi desmistificar o mito da democracia racial, de mostrar que era uma falácia, uma hipocrisia, e propor medidas para corrigir suas distorções e desigualdades geradas pelas sequelas da escravidão e pela permanência e sistemática reprodução do racismo”, disse, destacando que “havia um ‘combinado’ na sociedade brasileira.  Ao escancarar o mito, nós rompemos com a etiqueta social que governava as relações raciais. Havia este ‘combinado’ na sociedade brasileira.”

Segundo a filósofa, o pacto se rompeu e o momento de inflexão deste processo foram as cotas raciais nas universidades. “As cotas tiraram os racistas do armário, o que fez emergir toda a crueldade e a violência desse racismo. A gente tem visto uma absoluta e crescente violência racial, que se manifesta de forma mais extrema no genocídio da juventude negra. Juro que não era esse país que queríamos entregar a vocês”. Sueli também fez um alerta aos jovens da plateia, tendo como base a situação política e social do país atualmente. “Organizem-se, porque não há mais limite para a violência racista, pelo menos neste momento”.

Djamila lembrou que o Brasil “é o pais das capitanias hereditárias, país que foi fundado com base no sangue dos negros e indígenas, país que durante quase três séculos tratou pessoas como nós como mercadoria. Então é muita coisa o que essa geração fez ao desmistificar essas relações raciais romantizadas”. Exaltando a geração de Sueli no ativismo negro, a escritora também afirmou que não acredita que exista um pós-colonialismo no Brasil. “Se não fosse a geração da Sueli, seria muito mais grave, tivemos uma geração que denunciou a esterilização das mulheres negras. O Estado brasileiro esterilizava mulheres negras forçadamente. Isto também é uma forma de genocídio”, relembrou.

Público lotou o salão de atos da Ufrgs (Foto: Douglas Freitas)

O legado de expoentes negros na cultura do país

A dualidade valorização/invisibilidade de artistas e intelectuais negros brasileiros também foi um dos eixos das falas. Para Djamila, “o grande amálgama do brasil é esse. Um país que passa vergonha em todos os sentidos, uma academia egocêntrica, um país de ‘especialistas em Foucault’. Temos vários especialistas em Europa, que não conhecem o próprio país, não conhecem a América Latina”, ironizou.

Citando um episódio na Universidade de Berkeley (Estados Unidos), em que mulheres propuseram como inéditas ideias já expostas por Lélia González na década de 1980, a escritora respondeu: “Está na hora de vocês traduzirem as brasileiras.” Para a filósofa, “enquanto o Brasil privilegiar apenas grupos brancos, vai continuar passando vergonha. Por isso, tantos talentos se perdem e o Brasil nunca consegue de fato se destacar”, concluiu, citando o fato do filme O Caso do Homem Errado não ter sido escolhido para representar o Brasil no Oscar.

Já Sueli rebateu nomeando diversos expoentes em áreas do conhecimento, todos negros e reconhecidos nacionalmente, como o escritor Cruz e Souza, o geógrafo Milton Santos, que ganhou diversos prêmios, e Pelé. “O que a branquitude tem que explicar é por que – apesar desse monopólio extraordinário que ela faz, apesar de tudo ser transformado em ‘condomínio privado’ no Brasil – ainda assim o grande escritor deste país continua sendo Machado de Assis.  O Brasil que dá certo somos nós que fazemos”, constatou, em um dos diversos momentos de ovação da plateia.

***

A 12ª  Festipoa Literária segue durante a semana com atividades gratuitas.

Confira a programação completa:

29 de abril, segunda-feira

Salão de Atos da UFRGS
Av. Paulo Gama, 110

19h – Abertura: Conversa com Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro e Fernanda Bastos

30 de abril, terça-feira

Salão de Atos da UFRGS
Av. Paulo Gama, 110

19h – “Vitiligo Reverso” Movimento Meninas Crespas

19h15 – Luna Vitrolira e Denizeli Cardoso leem Ana Maria Gonçalves e Cidinha da Silva

19h30 – Conversa com Ana Maria Gonçalves e Cidinha da Silva. Mediação: Jeferson Tenório e Eliane Marques

Agulha
R. Conselheiro Camargo, 300

22h – Recital “Nome aos bois” com Elizeu Braga

Biblioteca da PUCRS – 12º andar
Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 16

14h30 – “Encontros entre a vida e a arte de João Pedro” com Veronica Stigger e Reginaldo Pujol Filho

1º de maio, quarta-feira

Agulha
R. Conselheiro Camargo, 300

15h30 – Sarau com Sérgio Vaz, Lilian Rocha, Afrovulto, Duan Kissonde, Alisson Batista, Marlon Ramos e Mitti

17h-18h30 – Slam chamego – edição especial

17h-19h – Lançamento: Vinicius Brasil (“Amante do drama”) e  Marcelo Silva (“O que carrego no ventre”)

19h – Conversa com KL Jay (Racionais Mcs)

21h30 – Recital “Aquenda, o amor às vezes é isso” com Luna Vitrolira

2 de maio, quinta-feira

Instituto Goethe
R. 24 de Outubro, 112

18h30 – Lançamento: ”As margens do paraíso” de Lima Trindade

19h00 – Lançamento:  “QP” de Powerpaola

19h30 – Cuidado, Arte: inauguração de intervenção no muro do Goethe e bate-papo

com os artistas Rafael Correa, Powerpaola e Aline Daka. Mediação: Mariana Villa Real

Salão de Atos da UFRGS
Av. Paulo Gama, 110

15h – Conversa com Rincon Sapiência

Centro Cultural da UFRGS
R. Eng. Luiz Englert, 333

17h – Palestra de Julie Dorrico: “A literatura indígena brasileira contemporânea: conhecendo as vozes da origem”

Sala Redenção UFRGS
Av. Paulo Gama, 110

16h – Sessão de Cinema: “Ex-pajé”

19h – Sessão de Cinema: “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”

3 de maio, sexta-feira

Centro Cultural UFRGS
R. Eng. Luiz Englert, 333

19h – Lançamento e bate-papo sobre os livros “Pensamento feminista – conceitos fundamentais” e “Pensamento feminista brasileiro – formação e contexto” de Heloisa Buarque de Hollanda. Mediação: Fernanda Nascimento

Sala Redenção UFRGS
Av. Paulo Gama, 110

16h – Sessão de Cinema: “As minas do Rap” e  “Slam – Voz de levante”. Debate com Negra Jaque

19h – Sessão de Cinema (extra): “As minas do Rap” e  “Slam – Voz de levante”

4 de maio, sábado

Agulha
R. Conselheiro Camargo, 300

15h30-21h – Feira de livros Geleia Geral

16h Lançamento do livro “Explosão Feminista” de Heloisa Buarque de Hollanda. Mediação: Luna Vitrolira

18h “Forças de revolta e ascensão negra” – conversa com o quadrinista Marcelo D’Salete e a pesquisadora Carla Akotirene. Medição: Izis Abreu

20h Conversa com João Silvério Trevisan, Natalia Borges Polesso e Tobias Carvalho

18h-20h – Lançamentos: Ana Elisa Ribeiro (“Dicionário de Imprecisões”), Taiasmin Ohnmacht (“Visite o decorado“), Luiz Mauricio Azevedo (“Boca de conflito: universidade brasileira, racismo & Marx “) Mariam Pessah (“Grito de mar”), Atena Beauvoir (“Phóda”), Daniela Ferrugem (“Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial”) e Coletivo Abrasabarca.

5 de maio, domingo

Agulha
R. Conselheiro Camargo, 300

15h30-21h – Feira de livros Geleia Geral

16h30-19h Lançamento: Ricardo Silvestrin (“Sobre o que”)

17h30 – “Escrever Ficção É Osso”: conversa com Marcelino Freire e Luiz Antonio de Assis Brasil. Mediação: Reginaldo Pujol Filho

19h – “Empoderamento, interseccionalidade e racismo recreativo” – conversa com Joice Berth, Carla Akotirene e Adilson Moreira. Mediação: Nina Fola

20h30 – Autógrafos com Joice Berth, Carla Akotirene e Adilson Moreira

6 de maio, segunda-feira

Teatro da PUCRS (prédio 40)
Av. Ipiranga, 6681

19h30 – Zezé Motta, uma vida de arte e resistência. Participação especial de Hayline Vitória. Mediação: Marcelino Freire

Oficina com a ilustradora Aline Daka: as narrativas poéticas das bonecas de papel

30 de abril, terça-feira, às 15h, no Centro Cultural da UFRGS. Inscreva-se. 

Oficina com Marcelo Martins Silva: a poesia é um atentado celeste

30 de abril, terça-feira, às 14h, no Centro Cultural da UFRGS. Inscreva-se.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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