Reportagem: Bruna Fernanda Suptitz
Fotos: Fabiana Reinholz
Alexandro Cardoso, 39, é catador de materiais recicláveis em Porto Alegre e aluno do terceiro semestre de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nas duas últimas semanas, Alex, como é conhecido, acompanha a uma sequência de notícias sobre o corte de verbas a cursos e a instituições federais de ensino superior e sabe que poderá ser atingido – pela segunda vez.
Desde o início do ano letivo, o estudante não está recebendo um auxílio da Universidade destinado à compra de material escolar. O valor de R$ 180,00 por semestre, dividido em parcelas mensais, está temporariamente suspenso para os 3.774 alunos da UFRGS cadastrados no programa – todos de baixa renda.
A justificativa, neste caso, está no decreto nº 9.741, assinado em 29 de março deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), que trata da programação orçamentária e financeira da União. Na prática, a medida bloqueou recursos federais de diversas áreas, incluindo a educação.
Cardoso segue recebendo auxílio para pagar as passagens de ônibus e tem isenção nas refeições do restaurante universitário. Agora, com a redução de, em média, 30% do repasse de verbas do governo federal às instituições de ensino superior, o receio é sobre a manutenção destes auxílios e mesmo do curso. “Quando se corta recursos do que já tem pouco, acaba ‘matando'”, entende o estudante.
Para ele, as medidas do governo na área da educação são um “ataque aos mais pobres e ao futuro da nação”. “Se pensar que, dentro da nossa lógica social, quem tem legitimidade para falar são as pessoas que têm diploma, (as medidas do governo) cortam o que está crescendo”, avalia Cardoso, em referência ao acesso de pessoas de baixa renda às Universidades.
Desde que ingressou no ensino superior, Alex Cardoso adotou a hashtag “#vaitercatadordoutor” em suas publicações no Facebook sobre a faculdade. Apesar das barreiras que identifica para a permanência na Universidade de pessoas com condição socioeconômica semelhante à sua, Cardoso conta com o apoio dos colegas e professores e o incentivo da comunidade para permanecer estudando.
‘Não é para ser rico’, explica Cardoso sobre a escolha pelo curso de Ciências Sociais
“Essa escolha tem que ser minha” é a resposta de Alex Cardoso quando confrontado com a declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL), dada no fim de abril, de que cabe ao governo proporcionar o ensino de funções básicas como “leitura, escrita e fazer contas e depois um ofício que gere renda para a pessoa”. Para sustentar o argumento de que isso é “respeitar o dinheiro do contribuinte”, o presidente alegou que recursos das faculdades de humanas devem ir para “áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”.
“Não é para ser rico que escolhi fazer Ciências Sociais”, rebate o estudante. Cardoso entende que, com sua formação, poderá contribuir ainda mais com o trabalho que já desempenha na Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada, na Zona Sul de Porto Alegre, e no Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), no qual integra a equipe de articulação.
“Organização da sociedade é cada um fazer a sua parte, destinar corretamente os resíduos, os catadores estarem organizados para prestar o serviço. Precisa de pessoas com essa capacidade de ver onde os problemas estão e indicar os caminhos para resolver”, defende.
A opção pelo curso de Ciências Sociais – que na UFRGS é o acesso para a habilitação em Sociologia, Antropologia ou Ciência Política – é consequência da sua atuação em torno da organização dos catadores e da reciclagem. “A caminhada que fiz me deu essa identidade muito forte das Ciências Humanas”, avalia.
O ingresso no ensino superior veio depois de Cardoso passar 20 anos sem estudar. Em idade regular, havia cursado até a 5ª série do Ensino Fundamental em Passo Fundo, no Norte do Estado, antes de se mudar em definitivo para a Capital com a família. Retornou à escola com 34 anos. Em quatro, concluiu os ensinos Fundamental e Médio em escola pública pela modalidade de Educação para Jovens e Adultos (EJA) e participou de um curso pré-vestibular popular, que o auxiliou na aprovação no vestibular.
Filho de catadores, a experiência de casa foi determinante para a definição da carreira, somada à consciência ambiental que adquiriu pelo contato com outros profissionais da área. Associado à cooperativa desde os 18 anos, tem no currículo, uma formação técnica como Agente de Gestão de Resíduos pelo Instituto Tecnológico Brasileiro (ITB), além de experiências na articulação de políticas públicas para o Meio Ambiente e participação em eventos nacionais e internacionais sobre reciclagem.
Através do MNCR participou, em março deste ano, da 4ª Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Meio Ambiente em Nairóbi, no Quênia, como delegado das organizações da sociedade civil, em parceria com a Aliança Global por Alternativas à Incineração.
“Por duas oportunidades pude falar em público, numa delas com presença dos ministros de Meio Ambiente da Dinamarca e do Japão, empresários e representantes de outros governos”, escreveu na ocasião no Facebook, em um texto com o título “Catador na ONU”.
Em Universidade privada, mensalidade é maior que o rendimento como catador
Alex Cardoso rejeita, ainda, a fala do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de que quem quiser estudar algum curso da área de humanas “pode, com dinheiro próprio”. A declaração foi dada em vídeo, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (PSL), um dia antes deste anunciar pelo Twitter a ideia de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”.
Neste semestre, Cardoso está matriculado em cinco disciplinas do curso de Ciências Sociais da UFRGS, na modalidade bacharelado, totalizando 20 créditos semanais. Pelo mesmo vínculo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, a primeira mensalidade sairia por R$ 1.818,88.
O valor é 50% maior que o rendimento mensal que Cardoso tem como catador, que é, em média, de R$ 1,2 mil. As demais mensalidades custam R$ 704,20 e os valores estão disponíveis no site da PUC-RS. “Essa decisão (de corte dos recursos para as Universidades) não acompanha a noção do que seria o desenvolvimento do país”, entende Cardoso.