Graça Machel faz chamado ao poder popular em conferência no Fronteiras do Pensamento

Reportagem: Thaís Seganfredo
Fotos: Luiz Munhoz/Fronteiras do Pensamento

Treze de maio de 2019. Enquanto em todo o Brasil a data ainda é marcada pela invisibilidade de abolicionistas e intelectuais negros na luta pela abolição da escravatura, na UFRGS uma das maiores lideranças no ativismo pelos direitos humanos abria o Fronteiras do Pensamento 2019 em Porto Alegre. Aplaudida de pé, a moçambicana Graça Machel fez um chamado ao poder popular e ao retorno à solidariedade e à coletividade para o público que lotou o Salão de Atos na noite desta segunda-feira.

Machel participou da luta armada no país junto à Frente de Libertação de Moçambique – Frelimo, em 1976, e foi ministra da Educação e Cultura por 14 anos. Nos anos 1990, recebeu prêmios na ONU e passou a trabalhar na defesa das vítimas de conflitos armados no continente. Mais recentemente, fundou a Graça Machel Trust, voltada para as questões de gênero e empreendedorismo na África.

Foi com conceitos básicos da humanidade que Machel iniciou sua conferência. “Sou mulher, sou negra, sou africana. Vivo com vocês que no chamado hemisfério sul, nos chamados países em desenvolvimento. Esses são exemplos de algumas identidades que eu carrego, mas minha identidade mais profunda e completa é a de ser humana”, disse, fazendo referência ao multiculturalismo. Segundo ela, “todas essas diversificações enriquecem nossa maneira de ser e estar no mundo, mas não estabelecem critérios de valor”.

A ativista queria lembrar ao público porto-alegrense (em sua imensa maioria, brancos), o qual não conhecia, aluns princípios básicos dos direitos humanos, um termo tão superficialmente questionado nos dias de hoje. Aos poucos, ao perceber a afinação da plateia com suas ideias, Machel passou a falar mais abertamente sobre a importância de retomar o poder popular.

Ativista moçambicana foi ovacionada pelo público em diversos momentos (Foto Luiz Munhoz)

Para ela, ao decidir que não queria mais viver com o suficiente, a família humana começou a acumular bens. “Com a acumulação, veio a ganância. Surgiram relações de poder para justificar que uns possam ter mais que outros. Eu sou considerada inferior porque tenho uma cor mais escura”, afirmou.

Citando valores como solidariedade e aceitação mútua, Machel criticou o individualismo que impera na convivência humana atualmente e fez um chamado à coletividade. Segundo a ativista, as relações sociais estão enfraquecidas, na medida em que o dinheiro assumiu posição central na vida das pessoas, em detrimento da vida em sociedade. “Nossa geração mais jovem precisa redefinir o objetivo pelo qual nós como seres humanos existimos. Precisamos partilhar muito mais, precisamos aprender a tocar os corações uns dos outros.”

Política e movimentos sociais

Boa parte da conferência teve como foco a democracia e as relações de poder. Para Machel, só o voto não basta para definir nossa responsabilidade enquanto cidadãos. “Nós alienamos nosso poder a pequenos grupos e achamos normal que esses grupos que elegemos nos oprimam e nos coloquem em privação extrema”, afirmou a gestora pública, completando que cabe aos cidadãos não aceitar imposições com as quais não concordam. Em uma das diversas falas em que foi ovacionada, Machel também lembrou que a população deve cobrar aos governantes o destino de seus impostos, que deveriam ser utilizados justamente para melhorar o acesso à saúde, à educação e à justiça social.

É através do poder popular organizado que retomamos esse papel cidadão, segundo Machel. “Precisamos voltar ao básico, cada um de nós precisa ter responsabilidade. É uma questão individual e é uma questão social. Precisamos redefinir as causas comuns. Fazemos de conta que não vimos quando outros seres humanos são tratados como coisas, quando são privados de dignidade. A nossa missão como cidadãos é pegarmos de volta para as nossas mãos aquele princípio fundamental que diz ‘o poder reside no povo’”.

Conferência abriu o Fronteiras do Pensamento 2019 (Foto Luiz Munhoz)

Apesar do mediador, Túlio Milman, insistir em fazer perguntas sobre a vivência da conferencista como primeira-dama (foi casada com Samora Machel e Nelson Mandela), foi nos momentos em que clamou pela retomada do poder popular que Machel mais causou comoção na plateia.  Ao brincar com o público que não estava falando em “insurreição”, Machel também lembrou a importância dos movimentos sociais como catalisadores da luta contra as injustiças sociais e contra o autoritarismo.  “Precisamos de movimentos sociais para redefinir as relações de poder. Foram os movimentos sociais que permitiram que meu país ficasse livre, que permitiu o fim do apartheid na África do Sul”, disse.

A ativista também ensaiou, em alguns momentos, uma crítica ao colonialismo, ressaltando que os países do hemisfério sul são irmãos e afirmando que os países desenvolvidos buscam recursos no continente africano e sul-americano, “nos impondo as regras do jogo”. Esses recursos, segundo ela, deveriam ser destinados ao bem-estar de toda a população do hemisfério sul.

Brasil e os cortes na educação

O que pensa a ativista sobre as questões sociais do Brasil? Na conferência, ela chamou a atenção para o fato de as pessoas negras serem afastadas da tomada de decisão. “O Brasil tem 50% de pessoas negras, mas elas são invisíveis na vida pública. Quando se trata de decisões que afetam toda a população, negros não podem decidir neste país”, criticou, completando que não devemos nos contentar com pouco quando se trata de desigualdade. “Nós celebramos quando o parlamento tem 30% de mulheres, celebramos avanços pequenos. Na realidade, isso é meio passo dado.”

Ao responder as perguntas da plateia, Machel disse estar abalada com o corte de 30% do governo nas universidades federais. “Essa medida não quer só amputar as pernas e as asas dos jovens de hoje, mas do futuro do país também. Vocês não devem aceitar que essa medida seja implantada”, aconselhou.

“O direito à educação e ao acesso aos níveis mais altos do saber é um fator de igualdade. Um jovem que possa estar a viver na favela, um jovem que vive na zona de classe média e um jovem que está a viver nas zonas de classe mais alta, se os três tiverem a mesma oportunidade de se formar e de desenvolver habilidades, não há de haver limite nenhum para o menino da favela. Aqueles que tem muito dinheiro não precisam de universidades públicas, vão continuar tendo outras opções. Aquele meu menino da favela só tem a universidade pública”, resumiu a ativista, que foi interrompida por uma professora de Medicina da UFRGS. Após o mediador conceder a fala à docente, ela agradeceu as críticas da ex-ministra moçambicana aos cortes do governo brasileiro e convidou o público para um abraço à universidade, que será realizado na tarde desta terça-feira.

Machel finalizou sua avaliação sobre o Brasil lembrando novamente que é dever e direito dos cidadãos retomar as instituições. “As faces da direita em todo o mundo estão a abocanhar as instituições. O fim das ditaduras na América Latina são uma lição histórica de que tudo isso pode cair”, disse.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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