Se Jair Bolsonaro entrasse em uma sala de cinema que estivesse exibindo Bacurau, sairia no mínimo horrorizado. Afinal, como pretende nossa utópica Constituição, todo o poder emana do povo no sertão de Bacurau, povoado calcado na força, na diversidade, na cultura. O longa é muitos filmes em um só, inclusive um ensaio-manifesto contra a violência pregada pelo presidente armamentista, ainda que não tenha sido realizado com o objetivo de retratar um país sob o comando de Bolsonaro.
No futuro distópico proposto por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, em que execuções públicas acontecem normalmente nas metrópoles, Bacurau é uma comunidade auto-gerenciada no oeste de Pernambuco. Os moradores de Bacurau se organizam como podem para viver em paz, não sem conflitos pessoais, mas respeitando as diferentes de cor, gênero e sexualidade.
Estão no roteiro personagens com funções específicas para a comunidade, porém levando em conta suas individualidades: o professor, a médica (Sônia Braga), o violeiro repentista, a profissional que mora na capital e vai visitar sua terra (Barbara Colen). Ainda que o filme não aborde com profundidade a história de nenhum personagem em especial, não demora muito para que aquelas pessoas gerem empatia. Em meio a tablets e grandes telões, que já são corriqueiros no sertão do filme, a desigualdade segue gritante e os políticos seguem indiferentes aos reais problemas da população.
Seguindo uma forte tendência dos filmes de gênero (estilo que une terror, ficção científica, fantasia e derivados), que começam a despontar no Brasil com títulos como “As Boas Maneiras” e “Branco Sai, Preto Fica”, Bacurau se destaca ao trazer ao renovar a temática do sertão, bastante abordada nos anos 1970. O longa se revela um ciber-punk-western com pitadas de terror, no qual referências do retrofuturismo e do cinema gore se misturam de forma orgânica a um sertão realista.
Elementos da cultura brasileira, como a roda de capoeira, brincadeiras populares e a viola caipira ajudam a compor o contexto brasileiríssimo do filme, que também é pontuado por detalhes futuristas, especialmente na direção de arte e na trilha sonora.
Após conhecermos – e nos reconhecermos – no Brasil profundo de Bacurau, o filme passa a dar as cartas do jogo: a pacífica autonomia do lugarejo é ameaçada por um grupo de americanos fortemente armados e dispostos a varrer do mapa a localidade. Como todo bom filme, a simbologia não é óbvia e requer ainda mais reflexão que os longas anteriores de Mendonça, “Aquarius” e “O Som ao Redor”. Bacurau pode ser uma crítica à cultura da violência representada pelo armamentismo americano, pode ser um conto de resistência do Brasil frente à crescente precarização e consequente privatização do país. E pode ser também uma história de choque de culturas.
Esse embate, também gritante no Brasil de 2019, é ilustrado quando os forasteiros (Karine Teles, certeira como sempre) do sudeste chegam ao vilarejo. Quando eles mostram indiferença em relação ao museu de Bacurau (e, portanto, quanto à própria memória do lugar), vemos o reflexo de um país dividido, desinteressado em sua própria cultura e em sua infinita diversidade. Um país calcado na individualidade.
Exaltando a cultura do nordeste, Kleber e Dornelles evocam também os cangaceiros, principalmente na figura de Lunga (Silvero Pereira), um foragido da Justiça que vive com seus comparsas em uma represa desativada e que volta para ajudar seu povo. Nesse sentido, não é por acaso que Lunga, que atua como a liderança principal da resistência contra o ataque à cidade, é personagem transgênero.
É justamente na reação ao ataque estrangeiro que reside o cerne do filme. Cabe à própria comunidade, abandonada pelo poder público, instituir seu próprio modelo de democracia radical, em um quase flerte com o anarquismo. Cabe a Bacurau também resistir, preservar sua cultura e sua memória, tarefa árdua já conhecida pelas milhares de comunidades tradicionais pelo Brasil.