Em tempos obscurantistas como há muito tempo não víamos no cenário artístico e cultural brasileiro, é ainda mais urgente discutir políticas culturais, pensar sobre a Universidade como um respiro pautado na diversidade e coletividade e refletir sobre as relações entre sociedade, artistas e a comunicação.
O Nonada – Jornalismo Travessia conversou com Patricia Fagundes, fundadora da Cia Rústica e professora associada do Programa em Pós Graduação em Artes Cênicas e do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Doutora em Ciências do espetáculo na Universidad Carlos III (Madri) e mestre em Direção teatral pela Middlesex University (Londres), Patricia propõe a formação de redes como forma de superar a falta de políticas públicas na área.
Em conferência na Ufrgs, ela refletiu sobre temas como criação, produção cultural, diversidade e narrativas contra hegemônicas como forma de fortalecer o fazer artístico. Definindo a universidade como um “território fértil de narrativas”, ela cita iniciativas transformadoras que surgiram nos últimos anos no espaço acadêmico. Confira nossa entrevista:
Nonada – Tu refletes na Conferência sobre a Universidade como laboratório de novas narrativas e como isso tem sido alavancado pela diversidade atualmente. Vês isso acontecendo no Rio grande do Sul? Pode citar exemplos?
Patricia – A universidade é um lugar de encontro e de experiências que reúne muita gente jovem, ou seja, pessoas que estão em um momento de vida especialmente marcado por transformações e descobertas, que querem inventar a vida e muitas vezes outras possibilidades de mundo. Um território fértil de produção de narrativas. Nosso tempo, onde temos acesso à uma massa imensa de informações, é marcado pelo encontro e colisão entre culturas, pessoas, pontos de vista, experiências, trajetórias. Vivemos um mundo diverso, múltiplo, marcado pelo desafio do convívio com a diferença, que demanda a ampliação das nossas capacidades relacionais, dos nossos modos de conhecimento, de percepção, de perspectivas.
Considerando este contexto, penso que a universidade é um centro que pode gerar inovação e transformação em sintonia com as necessidades da sociedade, tem o potencial de contribuir em uma formação e um panorama que contemple os desafios do mundo contemporâneo. As cotas são fundamentais neste sentido, e já produziram uma universidade mais colorida, mais múltipla, alinhada com os desafios de nosso tempo.
Em toda universidade, estão sendo desenvolvidas pesquisas, dissertações, teses, tccs, eventos, palestras, seminários, projetos de extensão, de difusão cultural, que se alinham à esta perspectiva. Entre tantas produções, posso citar com mais propriedade o que está mais próximo, ou seja, da pós graduação em artes cênicas e do Departamento de arte dramática da UFRGS.
Na pós, uma questão importante relacionada à outras narrativas é a própria questão da pesquisa em artes – é um campo que ainda está sendo inventado na universidade, os modos e discursos das artes provocam fissuras na perspectiva “cientificista” da pesquisa acadêmica, pois configuram um campo de conhecimento que produz através de outros parâmetros. Nas artes cênicas, pela própria constituição do campo, estamos vinculados à narrativas do corpo, do processo, do coletivo, do pessoal, do afeto – e estes lugares provocam tensões com certas normas e invenções de outras possibilidades. A maioria dos trabalhos que oriento no Mestrado se inscrevem na categoria “memorial crítico-reflexivo”, cuja pesquisa é composta tanto pela produção textual como por uma produção cênica… Além disso, na graduação e pós graduação, estamos (discentes e docentes) produzindo obras, eventos, aulas e textos relacionados à questões sociais urgentes como antirracismo, feminismos, perspectiva indígena, desigualdade, negritude, branquitute, meio ambiente – questões que se inserem na necessidade de outras narrativas para que possamos construir outro país, menos violento, menos desigual. Neste sentido, penso que a presença de alunos e alunas negras, indígenas, de escolas públicas, de contextos diversos, elevou o nível acadêmico de forma extremamente significativa, ativando um campo propício e fértil para a formação de novos profissionais capacitados para atuar em um mundo plural e complexo.
Que é também um mundo e um tempo de esgotamento, injustiças e destruição, que demanda transformação de estruturas e concepções, de modos de existir, individual e socialmente. Para tanto, a circulação de outros saberes é uma urgência, saberes distintos à herança colonial, saberes do corpo, do coletivo, da oralidade, da fauna e da flora, da escuta, que se compõem de outras subjetividades, epistemologias, cosmovisões. Sabemos que o conhecimento e as epistemologias não são neutros ou “ingênuos”, e compõem valores que sustentam práticas sociais. Pensando no Brasil, estamos falando de um país com uma cultura violenta, que mata 180 pessoas por dia, a maioria delas, pessoas negras.
Contemplar a diversidade como imaginário implica em fortalecer outras lógicas de pensamento e ação, de relação social, de estar no mundo. E não é uma tarefa simples, porque temos séculos de destruição da diversidade das gentes para combater, temos uma estrutura social injusta e epistemicida que nos contamina.
Nonada – A academia no geral ainda é bastante ligada ao cânone. Ao mesmo tempo, vivemos um momento de contra-narrativas e descobertas históricas no campo da arte. É preciso se libertar do cânone para que o novo mostre outros caminhos?
Patricia – Como comento na questão anterior, minha experiência na universidade não é muito canônica não. Fiz a graduação em teatro na ufrgs de 91 a 95, voltei em 2004/2005 como profe substituta, voltei em 2010 como substituta e no mesmo ano fiz concurso, em fevereiro de 2011 passei a ser efetiva. Como aluna ou professora, vivi muitos momentos em que agradeci imensamente por estar ali, exatamente onde deveria estar – em um lugar onde se dança, canta, grita, sussurra, roça, inventa. Não estive toda vida na ufrgs, fiz mestrado e doutorado fora do país, mas a vida que tive na ufrgs é constituída por muitas experiências libertárias, de descobertas, de criações, de encontros, de afetos. Por outro lado, reconheço que esta experiência não define o geral da universidade, nem do próprio dad… Há tensões, atritos, burocracia, entraves, hierarquias, recriações das violências da sociedade em que vivemos. Mas também há muitos interstícios, frestas onde se engendram encontros e experiências transformadoras.
Eu não sei bem o que defines como “descobertas históricas no campo da arte“, até porque penso que vivemos em um tempo de reciclagem. Muitas experiências e propostas do século XX, por exemplo, ainda estão sendo exploradas, se oferecem como um arquivo para recriações. Eu gosto da imagem da reciclagem para nosso tempo, que é tanto uma urgência ambiental e social, como uma prática cultural de reinvenção a partir da memória, de arquivos, de histórias e desejos compartilhados.
Nonada – Tu afirmas que “a arte é um movimento de abertura ao tempo e ao outro”. A arte tem vocação progressista? Nesse sentido, que avaliação tu fazes do movimento conservador aplicado a produções culturais e que vem crescendo em setores da sociedade, com a tendência de se transformar também em política de governo?
Patricia – A arte tem vocação transformadora, ela inquieta, balança, revira, remexe, atravessa, emociona. Pode não ser nada disso também… E até pode ser cooptada para objetivos espúrios, ainda que em movimentos conservadores a tendência é ser censurada – como está acontecendo agora no país, pasmem. O momento é estarrecedor sabemos, com tantos ataques sendo continuamente lançados à arte e educação, campos que podem incomodar os desatinos do poder. O desgoverno atual elege absurdos bordões e pessoas para desencorajar-nos à vertigem da aventura criadora, há um plano em andamento de afronta à artistas e educadores, desestabilizar, destituir, destruir, ameaçar. Que vergonha daquele homem patético que foi empossado na Funarte, por exemplo. Política de destruição. Mas bem, a arte continuará apesar de toda boçalidade, porque está no movimento da vida, porque se infiltra, porque descobre interstícios, e vai vingando como planta daninha, causando danos à visões absolutistas, fechadas, tristes.
Nonada – Não sei o quanto tu tens acompanhado do Plano Nacional da Cultura, cuja validade termina em 2020. Achas que o Plano falhou enquanto instrumento de política cultural? E mais do que isso, acreditas que há possibilidade de o governo reformular o Plano segundo seus próprios preceitos?
Patricia – Acho que o plano não chegou a realmente acontecer, é bonito, mas não se efetivou, poderia ser discutido, mas ficou assim como utopia, que também sabemos que serve pra isso, pra caminhar (como nos contou galeano de Fernando birri).
Nonada – Como artistas e coletivos podem fazer para não cair nas armadilhas que podem não considerar a arte como fim em si? Por exemplo, muitos editais exigem ações que favorecem tanto a pedagogia quanto o marketing. Que avaliação tu fazes desses mecanismos das políticas culturais?
Patricia – Pensando junto, mantendo janelas abertas, criando em rede. Ao mesmo tempo, sempre vamos cair em armadilhas, e encontrar modos de perceber e sair é parte do jogo – a criação é um movimento que nos coloca em risco. A arte não serve a nada, apenas a essa coisa humana que há em nós. Por outro lado, esta palavra pedagogia me é muito cara, e penso que todo meu fazer está relacionado ao aprender, ensinar, ensinar-aprender, pedagogias de mundo. E quanto ao marketing, é preciso nos apropriar de suas ferramentos como a publicidade se apropria das nossas, marketing tá na linguagem do tempo, e todo trabalhador precisa pagar as contas. Ou seja, ser esperto para não servir ao marketing, mas usar para o marketin nos servir. Contra apropriação.
Nonada – Qual o peso da atividade jornalística na desvalorização da arte no Brasil e, em especial, no olhar como parte da sociedade percebe o artista hoje em dia?
Patricia – As indústrias de comunicação estão destruindo o jornalismo consistente inteligente do país, outra vergonha nacional– mas ainda existem bons jornalistas no Brasil. Tá cada vez mais difícil, mas existem. A campana de desmoralização dos artistas começou há tempos, penso que teve um momento ajudo em 2016 – quando fizemos (na Cia Rústica) o Cabaré da Vagabundagem, que versava sobre este tema dos artistas como “vagamundos”. Ao mesmo tempo que alertávamos para o quanto um artista trabalha, inclusive encenando trechos de um artigo da pesquisadora Bojana Kunst que aponta o artista como trabalhador ideal do capitalismo pós industrial ( o seu trabalho é sua vida, afinal), incorporávamos o adjetivo como empoderamento… “Vagabundos e vagabundas, reuni-vos. Errantes. Libertinas e libertárias. Andarilhos. Aqueles em estado de vida que contraria a lógica de produção do capital. A lógica do trabalho lógico. Nômades. Vadias. Refugos”. Prefiro estar aí que em tapetes vermelhos.
Por outro lado, penso que estes tristes episódios na era do elogio da burrice reflete um distanciamento dos artistas com a população – de certo modo nos afastamos das pessoas, às vezes os artistas entram em movimentos ensimesmados, deixando de lado a preocupação de diálogo com o público em geral, em contraponto ao reduzido público especializado que leu a bibliografia adequada…Na maré que estamos enfrentando, precisaremos nos reinventar para continuar na batalha, o que inclui perceber nossas necessidades e possibilidades de transformação.