Thaís Seganfredo
Fotos: Diego Lopes/CRL
O início da Feira do Livro de 2019, em Porto Alegre, que chega à sua 65ª edição, está sendo marcados por atividades que colocam em pauta as questões raciais e sociais no Brasil, bem como sua intersecção com o mercado editorial. Os temas foram debatidos neste domino (03) por Laurentino Gomes, com uma conferência sobre seu livro “Escravidão” (Globo), que coloca o racismo como principal problema do país atualmente, e por Juremir Machado da Silva, Luiz Maurício Azevedo e Luís Gomes, que debateram sobre a hegemonia no mercado editorial, marcada pelo poder do capital e também pela discriminação no que se refere a questões indentitárias.
Nesta segunda-feira (04), às 18h30, Fernanda Bastos, Henrique Schneider e Julia Dantas abordam as cicatrizes do Brasil na mesa “Quando os traumas brasileiros viram literatura”. Fernanda é autora de “Dessa Cor” (Figura de Linguagem), livro no qual ela buscou abordar a escravidão e o racismo, respectivamente, o trauma brasileiro fundador e o trauma vivenciado no cotidiano. “No livro, tentei abordar essas perspectiva que eu devo a autoras como Lélia González”, explica a escritora. Em “Setenta” (Dublinense), Henrique Schneider fala de outro trauma do país que também estará no debate: a ditadura cívico-militar.
Laurentino Gomes e a disputa de narrativas
Mais de 200 pessoas – brancos, em sua maioria – lotaram o auditório Barbosa Lessa, no centro Cultural CEEE Erico Verissimo, na tarde de domingo, para ouvir o jornalista Laurentino Gomes. Autor dos best-sellers “1808”, “1822” e “1889”, ele lança este ano a trilogia “Escravidão”, no qual aborda, principalmente, os traumas e as consequências da escravidão no Brasil. Segundo o autor, o país segue há séculos um pacto proposto pela aristocracia para silenciar as discussões raciais. “A história muda de acordo com a maneira de a gente olhar o passado. Às vezes, a história é contada com o objetivo de perpetuar as estruturas de poder”, disse.
Citando a disputa no calendário cívico entre o dia 13 de maio (data determinada pelos brancos que traz o foco para a princesa Isabel) e 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Negra que homenageia Zumbi dos Palmares), o autor afirmou que o que está em jogo nessa disputa é a memória do Brasil. “O Brasil desenvolveu uma série de imaginários sobre a escravidão”, disse, criticando “Casa-grande e Senzala”, obra de Gilberto Freyre que contribuiu para a consolidação do mito da democracia racial.
Para Laurentino, somos um dos países mais segregados do mundo mesmo sem leis formais, tanto na geografia das cidades como nas estatísticas, uma vez que essa desigualdade é, para ele, o principal problema do país. “Há um abismo de oportunidades. O principal racismo brasileiro está na impossibilidade de a maior parte da população realizar seus talentos e vocações. Falar sobre a escravidão não é só dívida história, é um investimento fundamental no futuro”, destacou, defendendo mais políticas públicas.
O autor também criticou Jair Bolsonaro por seu discurso de ódio, e foi interpelado por um espectador bolsonarista, que quis mais detalhes sobre por que Laurentino considerava o presidente preconceituoso. “Se o que Bolsonaro falou sobre os quilombolas e sobre a Maria do Rosário não é racista e misógino, não sei o que é”, respondeu, ovacionado pele público. Laurentino também lembrou do extermínio de mais de 1 milhão de indígenas no Brasil e defendeu que brancos também falem sobre a escravidão e sobre o racismo. “A escravidão deveria ser assunto de todos os brasileiros, mas eu tenho que reconhecer que o fato de seu ser um homem branco limita o meu olhar.”
Desigualdade no mercado editorial
Também na tarde de domingo, o escritor e jornalista Juremir Machado se uniu aos editores Luiz Maurício Azevedo (Figura de linguagem) e Luís Gomes (Sulina) para refletir sobre quem manda no campo literário. O autor está lançando “Acordei negro”, por ambas as editoras, obra em que traz um narrador “que ora mistifica os indivíduos negros, ora os adula, em um duelo simbólico em que méritos íntimos e vergonhas históricas se misturam”.
Adotando o conceito de campo do sociólogo Pierre Bourdieu, ou seja, um espaço simbólico no qual ocorrem disputas pela legitimação de representações, Juremir criticou o campo literário brasileiro, segundo ele, dominado pela tríade “Flip-Folha de São Paulo-Companhia das Letras”, que se articulam no sentido de perpetuarem seus papeis de dominantes.
É neste meio, segundo Juremir, que autores como Laurentino Gomes e Lira Neto são consolidados como dominantes, ainda que não apresentem inovações, enquanto os dominados, ou seja, autores que não ganham visibilidade, são vistos como ressentidos. “Os dominados precisam estabelecer estratégias”, defendeu, criticando também o desprezo em relação a obras fora do eixo Rio-São Paulo, promovido pela mídia hegemônica do país. O autor contou que esse desprezo era realizado por ele próprio, quando editor de cultura da Zero Hora, com os livros que chegavam do interior do estado.
Para Luiz Maurício Azevedo “esse campo é totalmente marcado por duas questões principais no país: o dinheiro e a cor”. O editor e escritor relembrou um episódio no ano de 1999, quando tentava apresentar originais em editoras de Porto Alegre e, mesmo levando seus poemas pessoalmente aos editores, não foi reconhecido como escritor, nem ao menos acreditavam que ele pudesse usar o computador para escrevê-los. Um ano depois, venceu um concurso literário, que possibilitou que ele publicasse a obra. Ainda assim, enfrentou dificuldades na distribuição do livro, uma vez que só a livraria Bamboletras aceitou colocar o livro à venda.
“O maior problema no campo literário no Brasil hoje são as cotas para os autores brancos”, avaliou. Azevedo exemplificou com autores que, para ele são irrelevantes, e que são sempre protagonistas na academia: José Lins do Rego e José de Alencar. “Criamos um campo literário brasileiro que é artificial, racista, homofóbico e misógino”, disse, destacando a falta de diversidade e também de pensamento crítico ao sistema dentro da academia.
Segundo Azevedo, mesmo com os avanços sociais nos últimos anos, “a literatura é um campo de batalhas reflexo da sociedade ideal seria que eventos como a Flip fossem democratizados, mas isso não acontece porque as instituições brasileiras não são democráticas. Estamos em um país que confunde autoritarismo com segurança.”