Thaís Seganfredo
Imagem: ilustração de “A Morte e o Meteoro”/ Shinya Kato
Se Eduardo Galeano estivesse vivo, talvez se perguntasse para que servem as distopias, visto que é considerável o número de obras literárias que se voltam para esta temática no cenário contemporâneo. Em um panorama mundial no qual as democracias estão cada vez mais enfraquecidas e líderes desumanos são anistiados pela sociedade e pela mídia pelo bem do mercado, não há dúvidas de que as distopias servem para pensar. Em meio a muitas obras de qualidade publicadas recentemente no Brasil, o Nonada – Jornalismo Travessia escolheu duas publicações que dialogam entre si por provocar uma dicotomia entre ação e resignação.
Em “A Morte e o Meteoro” (Todavia, 2019), Joca Reiners Terron ambienta uma encruzilhada ética no pior dos cenários brasileiros: a destruição da Amazônia. Construindo uma realidade na qual astronautas chineses estão no caminho para colonizar Marte enquanto na América diversas etnias de povos originários estão extintas, o escritor centra a história em um povo fictício – os Kaajapukugi -, cujo território foi aniquilado. Assim, os 50 remanescentes da aldeia passam a ser os últimos indígenas brasileiros existentes, e o mundo se mobiliza para salvá-los, conseguindo asilo político para eles em uma aldeia do México.
Narrado sob o ponto de vista de um funcionário ligado ao indigenismo, mas leigo em relação à cosmogenia dos kaajapukugi, o livro traz desconforto ao fazer o leitor se deparar com atitudes movidas pelo exotismo que move tanto o narrador quanto o verdadeiro protagonista, o antropólogo Boaventura, único branco que teve contato com a etnia. Ao trazer o viés da branquitude para o cerne da narrativa, Joca Terron imanta a reflexão invisibilizada acerca das relações branco-indígena no país.
Assim, o autor escolhe escancara a relação predatória da curiosidade que os brancos têm para com a imensa diversidade das culturas originárias no país, a partir de uma trama que vai ganhando ares de terror à medida em que vamos desvendado o passado dos kaajapukugi – e, portanto, também entrando em contato com esse povo isolado, enquanto leitores. Na história, porém, diferentemente dos clichês do gênero, o “outro” não é a ameaça, e sim o ameaçado.
Trazendo também reflexões sobre ancestralidade e pertencimento, “A Morte e o Meteoro” tem como pano de fundo um cenário que instiga: Em uma espécie de 2001 – Uma Odisseia no Espaço distorcida no espaço-tempo, o escritor traça linhas paralelas entre o destino dos kaajapukugi, retirados de seu território, e a jornada dos chineses para fora da Terra, em um breve exercício de pensar nossa relação com a territorialidade.
Já em “Enterre seus Mortos” (Companhia das Letras, 2018), de Ana Paula Maia, a territorialidade se dá nos corpos dos indivíduos. Na história, acompanhamos a rotina de um trabalhador de uma empresa que remove animais mortos das estradas. O cenário é uma pequena cidade na qual o impacto de uma mineradora de calcário chegou a tal ponto que os cidadãos precisam se proteger de pedras que caem do céu quando a pedreira é dinamitada. Ainda que o panorama social não seja muito desenvolvido pelo autora, ela nos dá pistas sobre o futuro distópico construído na obra, com sinais de ultraviolência e extremismo religioso, ilustrado por meio de intensos poderes de persuasão desses líderes de alguma religião cristã.
Nesse universo caótico no qual o Estado parece não cumprir com obrigações legais, como regular as atividades de uma mineradora ou manter o funcionamento de necrotérios (que se tornam hiperlotados), até que ponto normas podem ser quebradas para reestabelecer o mínimo de humanidade?
Resignado com o ofício de retirar corpos de animais das estradas para não atrapalhar a passagem dos carros, Edgar Wilson, o protagonista, passa a travar uma luta interna pela resistência de sua própria humanidade. Como manter a ética em um mundo no qual os animais são enterrados muito mais rápido que os humanos mortos, que chegam a ficar dias abandonados nos acostamentos? Aliás, ainda existe ética nesse mundo distorcido?
Mais do que realidades distópicas, ambas as obras trazem como questões centrais dilemas morais vivenciados pelos protagonistas, homens brancos, que são chamados a agir frente a situações de injustiça social. Nesse sentido, as questões ecoam na conjuntura brasileira atual, na qual, embora estejamos longe de cenários apocalípticos, a empatia e a reflexão sobre alteridade se fazem cada vez mais necessárias para que não percamos o juízo em meio à barbárie social e intelectual.
A aproximação entre as obras ocorre também nos respectivos desfechos (e, nesse ponto da resenha, os spoilers tomam conta do texto), uma vez que os abutres à espera dos cadáveres em “Enterre seus Mortos” são como o meteoro do livro de Terron. Embora o final do livro de Maia tenha sido derramado a conta-gotas, enquanto o de Terron provoca estranhamento por ser abrupto, eles convergem no estridente tom de pessimismo de seus conclusões. O recado é alarmante: não há solução possível quando se descobre que a verdadeira barbárie são as consequências extremas do capital. Não há nada a fazer quando as veias da civilização estão abertas.