Bienal do Mercosul: perspectivas e afetos de uma edição feminista

Thaís Seganfredo
Capa: montagem com obras de Rosana Paulino

Embora evite rótulos e “classificações uniformes”, a próxima edição da Bienal do Mercosul aponta seu leme em direção ao feminismo. A palavra, uma das mais discutidas, cooptadas e divididas dos últimos anos, pode não fazer jus a complexidade de seu significado, mas serve para entender o ponto de partida da Bienal 12. 

Com o tema Feminino(s): visualidades, ações e afetos, a Bienal 12 é calcada por “discursos e sensibilidades fluidas, não-binárias e não-normativas, que admitem o dissenso como mola da argumentação e da deliberação”, explica a curadora da edição, a portenha Andrea Giunta. Tais discursos são historicamente transpostos, fermentados e germinados na arte, mas apenas recentemente foram acolhidos com maior zelo pelas instituições culturais. Se é verdade que o protagonismo das mulheres na arte é uma demanda arcaica (há 35 anos, as Guerrilla Girls provocam o mercado da arte com suas intervenções), as respostas ainda caminham para o futuro.

Ainda sem data para ocorrer devido ao novo coronavírus, a Bienal disponibilizou em seu site um passeio pela edição deste ano. São vídeos, obras e depoimentos de artistas latinas, africanas, asiáticas, cis, trans e não-binárias, de diferentes linguagens e vivências, como a americana Judy Chicago, artista feminista dos anos 1970 cuja obra vem sendo redescoberta e revalorizada, e a brasileira Musa Michelle Mattiuzzi, uma das revelações da arte contemporânea produzida no Brasil.

Performance da chilena Liuska Astete Salazar

Nesse cenário, a Fundação Bienal propõe reflexões contemporâneas e entrelaçadas sobre os femininos, com uma curadoria fundamentada na diversidade e na pluralidade (um aprendizado conquistado depois da última edição, com curadoria exclusivamente branca). Integram a equipe, além de Giunta (professora da Universidade de Buenos Aires), Dorota Maria Biczel (professora assistente visitante em História da Arte na Universidade de Houston), Fabiana Lopes (doutoranda em Estudos de Performance pela New York University) e Igor Simões (Professor adjunto de História, Teoria e Crítica da arte e Metodologia e Prática do ensino da arte na UERGS).

No texto de apresentação da Bienal 12, Giunta aborda a importância desses diferentes olhares. “Trata-se de envolver-se com as aspirações das maiorias a que muitas obras nos direcionam, e que compreendem artistas afrodescendentes e indígenas, cuja presença segue evocando reflexões críticas no mundo da arte, que, no entanto, é excludente. Trata-se de escutar em detalhe e abordar a sério tudo aquilo que os estereótipos marginalizam. Todas as vozes, desde sua heterogeneidade de respostas e propostas, constituem a cultura.”

Um dos reflexos desse amadurecimento é a temática da violência que se faz presente em obras e performances como “Bombril”, da brasileira Priscila Rezende. Aparecem nas obras escolhidas provocações sobre violência de gênero, de etnia, de religião, silenciamentos e estereótipos, inclusive em relação ao que a sociedade “espera” que uma artista mulher aborde em suas obras.

Confort, de Jessica Kaiiré

Nesse sentido, um recurso de linguagem que aparece de forma considerável nesta Bienal é a apropriação de técnicas historicamente consideradas como “próprias para mulheres”, como o bordado e o crochê de nomes como Lídia Lisboa e Eliana Otta. “As experiências que expandem a expressão da comunidade contribuem para a conversa, o intercâmbio e a necessária reconstrução de uma trama social ferida pelo abuso e a precariedade. Essa interação gera intercâmbios a partir dos quais podemos imaginar outras formas de conhecimento. Todas as linguagens nos pertencem sem hierarquias de valor nem segregação de conteúdos”, comenta a curadora.

Questões políticas que estão no cerne dessas estruturas sociais repressoras aparecem em obras como as fotografias da dupla canadense Carole Condé e Karl Beveridg, que abordam o capitalismo e o meio ambiente. Entram aí também os bordados das arpilleras, coletivo de mulheres que criticava a militarização e as consequências da ausência da democracia no Chile de Pinochet.

As Filhas de Eva, de Rosana Paulino

Talvez uma das artistas que mais sintetize todas estas questões – não porque as simplifica mas sim porque as considera de forma complexa, pulsante e urgente – seja Rosana Paulino, artista que “abriu” esta edição da Bienal em evento na Feira do Livro de Porto Alegre ainda em 2018. Nesta Bienal, ela apresenta uma série de obras que repensam o racismo, a desigualdade, a violência contra os corpos femininos, a centralidade do ser humano contra a natureza e ainda questionam a branquitude e o machismo do cânone na arte brasileira (A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical).

 

Conheça outras artistas para ver nesta edição (com contextualização da própria Bienal)

Priscila Rezende

Na performance Bombril, vivenciada pela primeira vez em 2010, Priscila Rezende esfrega, com o cabelo, a superfície de utensílios domésticos metálicos usados na cozinha. Título extraído da conhecida esponja de aço homônima, Bombril serve, com frequência, como adjetivo pejorativo para referir-se ao cabelo de mulheres negras. Na versão apresentada na Bienal 12 | Porto Alegre, Rezende realiza a performance na Praça da Alfândega, espaço público localizado em frente ao edifício do Memorial. A relevância de Bombril está no fato de ela ecoar uma das muitas experiências cotidianas de violência vividas pela população negra no Brasil. A performance também sustenta o tema de relações raciais, um conteúdo social e político ainda evitado ou até proibido na sociedade brasileira, dentro de um espaço de reflexão do qual ele é geralmente abortado. Ao mesmo tempo, a ação provoca uma ruptura: ela desloca o objeto do discurso de uma posição passiva à de protagonista (e enunciador) consciente de sua própria narrativa.

Lídia Lisbôa

Lidia Lisboa (Foto Henrique Saad)

De ligação com performance emerge suas diferentes linguagens artísticas como costura, crochê, amarração ou assemblage de tecidos (em sua maioria) ou outros materiais descartados. No processo, o objeto criado fecha o círculo inspirando a artista a realizar uma nova performance ou ação performativa. Nessa sala, que faz uma ligeira e tangencial referência à experiência de estar no ateliê da artista, Lisbôa apresenta um conjunto de obras dessas diferentes linguagens: as Cicatrizes com seu volume e costuras explícitas; os Chorões e os Cordões—umbilicais para a artista, uma articulação de peças em cerâmica e partes de corpos de bonecas; os Cupinzeiros, esculturas em cerâmica que dão acesso a suas histórias de infância em ambientes rurais no Paraná; e os Casulos: os pequenos, uma referência ao espaço uterino, e o Casulo grande, objeto em crochê comumente ativado pela artista em algumas de suas performances. Sua prática nos permite vislumbrar uma possível transição entre objeto e performance como estratégia artística formal e tática feminista.

Judy Chicago

Judy Chicago foi a artista que estabeleceu a agenda do feminismo artístico nos Estados Unidos desde finais dos anos sessenta. Atmopheres é uma obra que Judy faz entre 1968 e 1974 intervenções com fogos de artifício de diferentes cores (fumaça colorida) em espaços naturais da Califórnia. O objetivo era transformar e suavizar a paisagem, introduzindo um impulso feminino no entorno, ou recriar atividades da pré-história com foco nas mulheres – como acender fogueira ou adorar figuras de deusas.

Lungiswa Gqunta

A artista lida com as complexidades da paisagem cultural e política pós-colonial da África do Sul. Criando experiências multissensoriais que tentam articular os desequilíbrios sociais que persistem como um legado de domínio patriarcal e colonial, Gqunta expõe diferentes formas de violência e desigualdade sistêmica

 Musa Michelle Mattiuzzi

(Foto Joao Henrique Machado)

Para a Bienal 12 | Porto Alegre, a performer e artista visual apresenta a obra Jardim da Abolição (2020), uma instalação que articula cento e onze vasos de tamanhos variados, onze ervas e flores de poder, cultivadas por tradições orais e por curandeiras do Brasil e da América Latina (como Alecrim, Arruda, Pimenta, Guiné, ou amansa senhor, como é conhecida por seu uso estratégico e subversivo por parte dos escravos), terra e a frase em neon, ‘A intuição liberta a imaginação’, emprestada do texto “A Dívida Impagável: Lendo Cenas de Valor Contra a Flecha do Tempo” de Denise Ferreira da Silva. O Jardim da Abolição se apresenta como um monumento-memorial ao uso de vasos de camélias por abolicionistas durante o processo de abolição da escravatura no Brasil. Por outro lado, a obra serve, também, como uma espécie de sugestão que declara a abolição intuitiva no pensamento para imaginar o presente à partir dessas plantas de poder (preto) e relembrar, no presente, gestos significativos, estrategicamente subversivos e radicais.

Pedro Lemebel

Ícone da contracultura, escritor, cronista, artista visual, Pedro Lemebel representou um discurso dissidente. Um discurso em oposição à ditadura e crítico em relação aos parâmetros patriarcais que atravessavam as formações da esquerda. Seu texto Hablo por mi diferencia (Falo pela minha diferença), que leu no ano de 1986 na Estação Mapocho de trem, em Santiago, durante uma reunião de dissidentes da esquerda, marcava a rejeição dos seus colegas políticos frente a (e a sua) homossexualidade. Pedro leu vestindo sapatos de salto alto vermelhos. Escutamos a sua voz na frente do seu autorretrato no qual os signos do Partido Comunista se travestem de rendas e brilhos. 

 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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