Todos os Mortos, um (nada) anacrônico thriller sobre as feridas sociais do Brasil

Com estreia no país no 48º Festival de Cinema de Gramado, Todos os Mortos eleva o nível da recente lista de filmes brasileiros que tensionam os privilégios da branquitude, a exemplo do ótimo Praça Paris (2018), de Lúcia Murat. Desta vez, os diretores e roteiristas Caetano Gotardo e Marco Dutra entregam um thriller de época que consegue chegar até a raiz dos principais problemas sociais do Brasil. Sem nunca se esquivar de tocar nas feridas raciais nem de escancarar o papel da elite branca como causadora e, portanto, protagonista do abismo social que se impõe sobre o país até hoje, o filme foi exibido este ano na mostra principal da Berlinale.

O longa inicia no ano de 1899, mostrando a rotina de Josefina (Alaíde Costa), ex-escravizada que, mesmo após pouco mais de 10 anos do fim da escravatura (no papel) no Brasil, continua trabalhando na casa dos Soares, uma família da aristocracia cafeeira de São Paulo. Um corte na montagem precede o anúncio brusco da morte de Josefina, e neste momento também somos apresentados às sinhás da família: Isabel e suas filhas, Ana e Maria, reclamam da morte da mulher que amamentou a matriarca e que passava um café como ninguém, sem nunca lamentar a perda de Josefina por sua individualidade.  

Estabelecidas as bases deste sistema inerte, o filme passa a movimentar as peças do tabuleiro, com a chegada de Iná (Mawusi Tulan), também ex-escravizada da família, que decide ir a contragosto até a mansão em São Paulo devido a um pedido de uma das irmãs Soares. É neste ambiente doméstico de refúgio para as brancas e de opressão para Iná que o jogo narrativo acontece, como numa espécie de microcosmo da sociedade brasileira. Enquanto a elite branca trabalha para a manutenção de seus privilégios, Iná representa a força que tenta romper com o status quo, ao menos na sua própria vivência e na de sua família, que ela está tentando reestabelecer na capital.

Impregnada por uma crescente tensão, esta dinâmica se dá em diferentes camadas simbólicas, que podem ser representadas de acordo com cada integrante da elite branca: para Isabel (Thaia Perez), Iná só existe para servi-la, assim como seu filho, que deveria ser “civilizado” através da cultura branca – um pensamento que deveria ter permanecido no século XVIII. Para a freira Maria (Clarissa Kiste), Iná é o desvio em sua própria fé, uma vez que os ritos das diferentes religiões de matriz africana (diversidade que o filme faz questão de frisar) tem papel essencial na narrativa.

Cena de Todos os Mortos (foto: divulgação)

Já Ana (Carolina Bianchi), de saúde mental fragilizada, embora tenha a chance de romper com o sistema, é incapaz de sair de sua zona de conforto – e privilégio. Mesmo enxergando o elefante na sala, ela decide não apenas fugir da realidade, como também assumir o papel de opressora. 

A personagem representa todos nós brancos que escolhem não agir contra o sistema, que se recusam a reconhecer que o antirracismo também é dever da branquitude. Sua importância no terceiro ato do filme contribuir para a construção de um dos melhores desfechos do cinema brasileiro contemporâneo, na medida em que a dualidade entre violência e medo que compõe a personagem se mostra na superfície. 

Apesar das relações que simbolizam tão bem o racismo no Brasil, a narrativa nunca é apresentada por meio de arquétipos. Ao contrário, todas as mulheres do filme têm suas subjetividades e fraquezas. Neste sentido, é surpreendente o quanto o roteiro possui densidade e sutileza nos diálogos, abordando temas como o preconceito religioso, o branqueamento de artistas e intelectuais negros, a chegada dos imigrantes europeus e e a modernização de São Paulo, que a partir de então se torna cada vez mais desigual urbanística e socialmente.

Cena de Todos os Mortos (foto: divulgação)

A cidade de São Paulo, aliás, ocupa um papel especial no filme, principalmente pela marcante presença de um anacronismo  – pouco visto de forma tão criativa no cinema brasileiro -, que vai se intensificando e ressignificando a diegese da obra. Como explicou Caetano Gotardo na coletiva de imprensa do filme no Festival de Gramado, a ideia era “pensar como o desenho da estrutura social se manteve até hoje”. Neste sentido, a trilha sonora de Salloma Salomão, juntamente com o desenho de som é brilhante, embora tenha sido prejudicada no festival por problemas técnicas na exibição, feita pelo Canal Brasil.  

Fazendo uso até mesmo de instrumentos como a kalimba e som de correntes e tambores, e de uma mistura entre a cenografia de reconstrução histórica com elementos contemporâneos como prédios e grafites, o filme cria novas camadas narrativas que estranhamente fazem todo o sentido. Isso porque ainda que estes elementos sejam sim fora de época, sabemos que o roteiro em si não é nada anacrônico, uma vez que poderia ser ambientado nos dias atuais, argumento que ganha força à medida que a história caminha para o final. E é aí que se encontra o verdadeiro terror de Todos os Mortos

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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