Fernanda Melchionna: “Vamos investir 2% do orçamento da prefeitura em cultura”

Foto: Câmara Municipal de Porto Alegre

O Nonada – Jornalismo Travessia realiza uma série de entrevistas com os candidatos e candidatas à prefeitura de Porto Alegre. As perguntas têm como foco o setor cultural e os direitos humanos. Nesta entrevista, quem responde é a candidata Fernanda Melchionna (PSol).

Nonada – Para a senhora, o que é cultura e qual o papel do Estado no fomento do setor?

Fernanda Melchionna – A cultura deve ser pensada como fluxo, como processo em movimento constante e multidirecional, atuante e deliberativa em todos os territórios. Uma cidade que pensa a sua Cultura e reconhece seu papel fundamental na constituição de programas capazes de desmontar a estratégia capitalista de invisibilizar a periferia é o que nos motiva a pensar a cultura como identidade. Cultura é movimento. Cultura é história. Entendemos o caráter emancipador da Cultura e a possibilidade de construção da cidade de todas e todos, por isso, no nosso governo, a cultura não será “enfeite”, será ação prioritária. Desconhecer a cultura e sua necessidade inclusive do ponto de vista econômico e de geração de renda e emprego é desconhecer a realidade brasileira, mundial, não só de Porto Alegre. 

A periferia da cidade, no entanto, não deve ser vista apenas como território de dificuldades, mas como uma comunidade que constrói sua cultura, sua própria identidade. Essas expressões devem circular em toda a cidade, e o poder público tem a obrigação de oferecer esses meios. Por isso vamos investir 2% do orçamento da prefeitura para diminuir o abismo existente nas comunidades, que precisam se auto-organizar para lutar por suas demandas e resolver seus problemas. A Prefeitura deve impulsionar e respeitar a auto-organização popular. O que precisam é de mecanismos de investimento para descentralizar essas raízes culturais e mostrar cada vez mais esses talentos. Há muito talento, cultura e artistas nessas localidades. Precisamos de investimento em espaços culturais por toda cidade, locais para gravação de música, espaços e eventos culturais.

 Nonada – Quem vai ser o secretário ou secretária da pasta caso seja eleita?

Fernanda Melchionna – Certamente algum representante da área. Alguém que realmente faça parte desta área. Não temos como confiar a cultura do nosso povo e das comunidades em secretários e secretárias biônicas, que desconhecem a realidade da nossa classe artística.

Nonada – Quais serão as prioridades da pasta na sua gestão? Que política deve adotar em relação aos equipamentos culturais do município?

Fernanda Melchionna – Os gastos com as funções Culturais foram e são inexpressivos em Porto Alegre nos últimos anos. Os repasses à Cultura caíram de R$ 58 milhões em 2014 para apenas R$ 24 milhões em 2019, valor que corresponde a 0,37% da despesa total. Quantos milhões são e foram cortados da maior festa da cultura popular de nossa cidade, que é o Carnaval, por exemplo? Agora o povo precisa se organizar para governar e derrotar os que querem seguir usando a prefeitura para interesses privados. E por isso vamos destinar imediatamente 2% do orçamento para a Cultura. Faremos uma forte retomada de editais culturais e verbas para projetos periféricos. Sou uma das autoras da lei federal Aldir Blanc, que garantiu mais de R$ 9 milhões à classe artística de Porto Alegre, a primeira a sentir na pele o desemprego na pandemia.

Nonada – O Fumproarte, de acordo com a Lei 7.328, deveria receber anualmente o mesmo valor destinado ao Funcultura. A senhora reativará os repasses ao fundo? E quanto a realizações de editais para os artistas?

Fernanda Melchionna – Com certeza reativaremos. A previsão de repasses do Fundo de Participação dos Municípios alcança R$ 284 milhões. Segundo a legislação municipal que criou o Funcultura e o Fumproarte, esses fundos deveriam receber no mínimo 3% desse total, ou seja, R$ 8,5 milhões cada. A lei 7.328/93 (Fumproarte) precisa ser cumprida, assim como a Funcultura. E queremos fazer isso também realizando um seminário de reestruturação do Fundo. Vamos fazer com uma construção democrática de critérios transparentes na escolha de projetos, como um projeto claro de descentralização. Quanto aos editais, como falamos, sou uma das autoras da Lei Aldir Blanc, por isso a cultura também é o nosso centro. 

Sabemos da importância dos editais, que inclusive agora começam a ocorrer em função desta nova lei federal. E um dos que já temos traçados para Porto Alegre seria, por exemplo, um Edital Público para o POA em Cena, para a ampliação da curadoria, sendo de fato representativa. Queremos focar também na abertura de um espaço cultural múltiplo (artes visuais, cinema, circo, dança, música, teatro etc) nos galpões da Olavo Bilac, atualmente depósito de compras da prefeitura e estacionamento de ambulâncias. 

É preciso fazer uma discussão de um plano de reformas dos espaços culturais da cidade,que também passa por editais, como Teatro de Câmara, Teatro Renascença, Usina do Gasômetro e Sala Álvaro Moreira, que estão sucateados e necessitam de reparos. Valorização e incentivo à cultura e às manifestações culturais negras e periféricas, como o Hip-Hop, as Rodas de Slam (poesia), o samba e o pagode porto-alegrense. Estas e tantas outras necessidades e possibilidades foram apresentadas no nosso programa de governo, feito a mais de 500 mãos por profissionais em suas áreas. Foram construídos com diálogo e com toda comunidade cultural de Porto Alegre.

Nonada – Quais políticas a senhora pretende adotar com relação aos direitos das mulheres e do público LGBT?

Fernanda Melchionna – A Prefeitura precisa ser, e será, indutora dos processos de participação e decisão da população. Envolvendo aqueles que estão na batalha por um salário ou um emprego, nas entidades de classe, nos movimentos populares, no funcionalismo público, na cena cultural e nas universidades. Por isso, com todas essas personalidades e representações, como negras e negros, LGBTs, mulheres, mães, queremos promover um processo aberto de diálogo para tomar decisões coletivas às quais a Administração deve obedecer. Sempre falamos de um governo de baixo para cima. É para eles e por eles que estamos aqui. Não tem como ser diferente. Por isso propomos desde cedo, também, uma Porto Alegre com um território livre de preconceito, onde a cidade seja construída para as mulheres e por mulheres, com políticas de reparação e promoção da igualdade racial, com direitos para a população LGBT em toda a cidade, inclusive começando de dentro. Ou seja, trabalhamos com uma linha de paridade de gênero dentro da prefeitura e do nosso secretariado. Há grande representatividade em vários campos e precisamos deles para compor nosso governo coletivo. E apesar das mulheres frequentemente serem maioria nas cidades, enfrentam diversas situações que atuam como obstáculos para que elas usufruam plenamente da vida nos municípios, assim como os LGBTs. 

Sabemos que a violência de gênero não atinge todas as mulheres da mesma maneira também. Mulheres negras, trans, lésbicas, indígenas, profissionais do sexo, moradoras das periferias ou mulheres em situação de rua enfrentam de maneira ainda mais acentuada as hierarquias decorrentes dos estereótipos e dos marcadores sociais. Por isso também trabalhamos com a linha da transversalidade, onde não queremos que as mulheres, que a negritude e que a população LGBT sejam chamadas apenas para contribuição neste tipo de pauta. 

Nossa prioridade será combater o preconceito, a discriminação e dar condições para que as pessoas tenham vidas dignas. E isso passa primeiro por trabalhar a discriminação nas escolas, estimulando programas como o que propusemos num projeto de lei em Brasília, o Escola Sem Discriminação, para que professores e técnicos de escolas de todo país estejam preparados para atuar com estas questões nas escolas. E queremos aplicar isso também em Porto Alegre. Também queremos implementar um conceito muito necessário da empregabilidade trans. A nossa luta por saúde da mulheres trans, lésbicas, dos homens trans também será implementada na prefeitura. São áreas muito negligenciadas, com diversas violações. Não se pode estigmatizar, mas a vulnerabilidade e a discriminação fazem com que essas demandas não sejam atendidas pela sociedade e pelo Estado. E isso precisa ser atendido pelo governo. 

Além disso, também criaremos um conselho municipal LGBT, que é uma demanda forte dos movimentos sociais há bastante tempo. E na parte da cultura temos um interesse grande em incrementar políticas públicas de preservação da história e da cultura LGBT, além de apoiar as manifestações dos movimentos sociais, em especial a Parada Livre de Porto Alegre, onde ocorre há mais de 20 anos e nos últimos períodos não vem contando com apoio algum do poder público. 

Nonada – A cultura negra sempre foi muito forte em Porto Alegre, embora com pouco incentivo, inclusive com a falta de reconhecimento oficial dos quilombos urbanos, por exemplo. Como a senhora vê a cultura afro-gaúcha em Porto Alegre e o que pretende fazer para fomentá-la?

Fernanda Melchionna – As gestões em Porto Alegre têm um déficit muito grande com a comunidade quilombola, com toda a cultura negra da nossa cidade. Precisamos potencializar esses territórios, garantindo meios de comunicação e acesso às tecnologias para ampliar as vozes e os espaços de corpos diversos nessa construção. Falamos sempre que, para nós, nossa periferia é o Centro de uma nova Porto Alegre multicêntrica, plural e inclusiva. Por isso é preciso reconhecimento dos saberes e da cultura negra e quilombola, originária e de povos tradicionais, assim como a cultura hip-hop, as manifestações das diversas linguagens artísticas, dança, teatro, circo, música, artes visuais, cinema e as mais diversas manifestações culturais. Por isso temos um compromisso com uma política cultural de Estado, que prime pela liberdade de expressão e seja antirracista, antifascista, antimachista e anti-homofóbica. E, apesar de historicamente mais de 90% dos aparelhos culturais estarem na região central, não vermos nenhuma atitude nas últimas décadas de descentralizar a cultura, e infelizmente vemos o contrário, desarticulando projetos que chegavam até a periferia da cidade, o que mostra o total desmonte da Secretaria Municipal da Cultura. 

Não é à toa que nossa chapa tem como candidato a vice-prefeito o Márcio Chagas. Um negro, um professor, um candidato que luta contra o racismo estrutural na nossa cidade há muito tempo. Que luta contra isso nos esportes. Isso tudo representa nossa luta contra um sistema que exclui e segrega nosso povo nessa cidade. Temos na nossa política a valorização constante da cultura afro-brasileira em Porto Alegre. E tudo isso também representado no carnaval e nas suas Escolas de Samba. 

O carnaval das Escolas de Samba e blocos de rua tem todo nosso apoio. É preciso valorização da cadeia produtiva, apoio às mulheres ambulantes, reversão das políticas de ataque à cultura. Marchezan se elegeu prometendo ser novidade, porém ao assumir o governo virou as costas a todos aqueles que apostaram nisso. No Carnaval não foi diferente. O então candidato fez vídeos tocando (mal) tambores, prometeu mundos e fundos à comunidade carnavalesca de Porto Alegre, mas na prática cortou milhões da maior festa popular da cidade, abandonou o Porto Seco, proibiu e multou Blocos de Rua, além de ter fechado qualquer canal de diálogo com a comunidade que garante a proteção e a promoção do patrimônio cultural que significa o Carnaval de Porto Alegre. 

Entre 2006 e 2016 o Carnaval levou em média ao Porto Seco 30 mil pessoas por noite. Nosso governo terá o compromisso de construir coletiva e democraticamente um Plano Municipal de Cultura Popular do Carnaval em Porto Alegre, em conjunto com a União das Escolas de Samba de Porto Alegre e Região Metropolitana (UESPA), com os Blocos e o conjunto da população envolvida na economia solidária do Carnaval, garantidora de emprego, renda, cultura e memória das comunidades periféricas da capital. 

Também é nosso compromisso fazer valer a Lei 6.619, sancionada em 1990, que estabeleceu o “Carnaval Oficial, e que os desfiles de agremiações carnavalescas serão realizados em Logradouros Públicos deste município, com as condições de infraestrutura e ornamentação colocadas à disposição pelo Executivo Municipal”. Os desfiles das Escolas de Samba são parte de uma tradição de mais de 80 anos em Porto Alegre. O carnaval é um movimento que surgiu nos bairros pobres da capital, como o Areal da Baronesa e a Colônia Africana. 

Nossas propostas aqui expostas com relação ao Carnaval em Porto Alegre, por exemplo, foram construídas a partir do diálogo com a União das Escolas de Samba de Porto Alegre e Região Metropolitana (UESPA) e respeitam as reivindicações expostas na Carta Aberta à Cidade de Porto Alegre para a retomada “pós-pandemia” das atividades da Cultura Popular. Portanto, para retomar esta linda tradição, em primeiro lugar, trata-se de resgatar a dignidade das Escolas de Samba. Além disso, é urgente retomar as atividades nas Quadras. Também se faz necessário ativar o Porto Seco como palco de produção permanente da economia criativa, valorizando o Sistema Municipal de Cultura prevendo a garantia da valorização da cultura do Carnaval como vetor de desenvolvimento econômico local e promovendo a democratização das instâncias de formulação das políticas culturais, a participação e controle social na elaboração, fiscalização e acompanhamento destas. Carnaval é nosso patrimônio social e cultural. Portanto deve ter sua memória e tradição preservadas e difundidas pelo Poder Público em toda a sociedade.

Nonada – Apesar de existirem 23 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, as políticas públicas de acessibilidade cultural ainda engatinham. A senhora pretende incluir o direito das pessoas com deficiência de terem acesso à arte na sua gestão? De que forma?

Fernanda Melchionna – Porto Alegre é uma cidade hostil para pessoas com deficiência. É evidente que Porto Alegre não está preparada para a movimentação de pessoas com deficiência. Os problemas enfrentados por elas vão desde a falta de acessibilidade para circulação nos espaços públicos e de lazer, nas restrições de veículos adaptados no serviço de transporte público coletivo, na ausência de prédios públicos e privados adequados para seu ingresso e circulação, até as diversas situações de discriminação. E na cultura não é diferente, infelizmente. 

Para realizar uma política de fato inclusiva, é necessário garantir também a escuta e participação ativa das pessoas com deficiência em todas as etapas de elaboração das políticas públicas, na definição de metodologias de trabalho e diagnóstico, na elaboração de propostas, nas definições de destinações orçamentárias. Porque pessoas portadoras de deficiência também são espectadoras de teatro, cinema, óperas e frequentam museus, todavia esses espaços não têm políticas de inclusão capazes de proporcionar uma experiência concreta que nos permita falar em termos de acessibilidade ampla e irrestrita. 

Além de garantir a acessibilidade universal das pessoas com deficiência enquanto consumidores de arte e cultura, também é preciso investir na ampliação da atuação das pessoas com deficiência enquanto produtores culturais, abrindo espaço para suas manifestações artísticas. Em Porto Alegre, são muitas as pessoas com deficiência ativistas e produtores de arte e cultura, no entanto, elas sequer encontram espaços adequados para sua presença ou ainda, esbarram em editais de fomento à arte e cultura sem acessibilidade.

Defendemos que 100% dos prédios públicos e privados possuam estruturas para acessibilidade. E principalmente para espaços públicos, pois a recuperação da diversidade da convivência nas praças de Porto Alegre, por exemplo, auxilia a promover a acessibilidade através apresentações culturais com espetáculos de intervenção urbana nas áreas de circo, dança e teatro, bem como sessões de cinema ao ar livre e shows em praças. Inclusive queremos investir Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães, para modernização, renovação de acervo e ampliação das políticas de acessibilidade. 

A capital pode se tornar em 4 anos uma referência em cultura de acessibilidade em Libras e Audiodescrição com formação de profissionais e artistas, além de parceria com outras entidades para a acessibilidade nos equipamentos e nos artigos, matérias, espetáculos, exposições, filmes e produtos culturais produzidos e financiados pela Secretaria Municipal da Cultura. Com isso, é urgente corrigir as disparidades e negligências que deixam à margem das dinâmicas econômicas e socioculturais da cidade uma parcela significativa da população de Porto Alegre.

Compartilhe
Ler mais sobre
Direitos humanos Entrevista

Bela Gil: “Os Ministérios da cultura, saúde e educação precisam se unir para transformar a alimentação no Brasil”

Direitos humanos Reportagem

Como o racismo amplia a sub-representação de mulheres e homens negros na política brasileira

Opinião Políticas culturais

Editorial: governo usa Lei Rouanet como vetor ideológico contra artistas