Anita Carneiro e Laura Galli
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
A coluna Pequena Memória para um Tempo Sem Memória busca expandir a conexão do público com a história da cidade e da ditadura civil-militar através da materialidade de locais pelos quais se passa cotidianamente. São ruas e prédios que possuem marcas – por vezes visíveis, por vezes invisíveis – de um dos períodos de maior repressão no nosso passado recente. A cada edição, as historiadoras Anita Carneiro e Laura Galli abrem o mapa da cidade e apresentam um local marcado pela ditadura civil-militar em Porto Alegre.
Nosso ponto de partida, em setembro de 2020, foi o projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre, que inspira a criação da coluna. Neste segundo texto, começamos a percorrer a cidade, com um dos locais mais emblemáticos dessa história: o Dopinha.
#2 O Dopinha
Na rua Santo Antônio, no bairro Bom Fim em Porto Alegre, funcionou o Dopinha, primeiro centro clandestino de tortura da ditadura civil-militar brasileira. Seu nome é um diminutivo do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que operou, em grande parte do tempo, no Palácio da Polícia. É válido rememorar que o Rio Grande do Sul, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), foi o estado com a maior estrutura repressiva do país, ou seja, o estado que mais abrigou centros de detenção e tortura no Brasil neste período, com 39 locais. Mesmo que muitos leitores talvez conheçam o Dopinha, entendemos que é importante começar nosso percurso desta coluna por esse local, pois a partir dele é possível discutir diversas pautas sobre os locais de memória da ditadura civil-militar brasileira na capital gaúcha.
O Dopinha funcionou até o início da década de 1970, segundo a Comissão Nacional da Verdade, como um centro clandestino de tortura e desparecimento de pessoas que os militares acreditavam serem perigosas para a ditadura. A casa estruturalmente possuía uma passagem subterrânea na parte direita de sua lateral, onde se vê o portão de garagem, por onde os presos políticos chegavam nas dependências do casarão. O caso que revelou o Dopinha na estrutura repressiva dos militares foi o famoso “Caso das mãos amarradas” ainda no início da ditadura civil-militar.
O sargento do exército Manoel Raymundo Soares foi sequestrado no dia 11 de março de 1966 em frente ao Auditório Araújo Vianna, por estar com um “material subversivo” – recortes de jornais carimbados com “abaixo a ditadura”. Manoel lutava pela volta do presidente João Goulart ao Brasil. Seu corpo foi encontrado no dia 24 de agosto de 1966 nas águas do Rio Jacuí, com as mãos amarradas e marcas de tortura. Acredita-se que durante a prisão ilegal que perdurou por cinco meses ele tenha passado pelo Dopinha – além de ter ficado preso e ter sido torturado na Ilha das Pedras Brancas, ou Ilha do Presídio. O assassinato de Manoel Raymundo Soares foi o primeiro caso de crime político noticiado nacionalmente e teve grande repercussão.
Importante ressaltar que esse caso só ganhou notoriedade, pois ainda nesta época (lembramos que foi antes do Ato Institucional nº 5, de 1968) a censura aos meios de comunicação ainda não era tão agressiva e extensiva. Assim, com a repercussão da imprensa ao caso e a forte pressão popular foi instaurado uma investigação pela promotoria de Justiça e também uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. A partir do andamento dessas investigações, revelou-se parte da estrutura repressiva e as atrocidades cometidas no DOPS/RS com os presos, além da existência do Dopinha como centro clandestino de detenção, tortura e assassinato. O major da infantaria Luiz Carlos Menna Barreto, que comandava os dois locais, foi responsabilizado pelo assassinato de Manoel Raymundo Soares e os delegados do DOPS/RS, José Morsch e Itamar Fernandes de Souza, foram indicados como coautores. No Dopinha possivelmente foram torturadas e mortas muitas pessoas, no entanto são apenas três identificadas até o momento, como é o caso de Manoel Raymundo Soares, Carlos Heitor Azevedo e Gilda Marinho.
Segundo a historiadora Jocyane Baretta, outros dois casos contribuem para evidenciar a existência desse centro de tortura clandestino em pleno bairro Bom Fim. O primeiro é o caso Savi, em que o delegado da Polícia Civil de Porto Alegre José Luiz Carvalho Savi, teria solicitado tempo de serviço em que trabalhou como informante junto à Polícia antes de ser funcionário público – e possivelmente no Dopinha. E também o depoimento do médico Ênio de Oliveira, um dos raros civis que trabalharam no local, ao jornalista José Mitchell na década de 1980, em que admite ter trabalhado com a função de separar fichas dos “subversivos” e grupos contrários ao regime. No depoimento, o médico relatou forte aparato de controle, como gravações de conversas rotineiras e pouco contato com outros agentes.
Direito à memória, à verdade e à justiça
O Dopinha foi identificado como centro de tortura em 2011 e em 2013 foi realizado um ato público de abertura do casarão que envolveu o Comitê Carlos de Ré (Comitê do RS da Verdade, Memória e Justiça), governador Tarso Genro, prefeito José Fortunati além de familiares e do público. Esse ato seria a marca para transformar o antigo Dopinha no Centro de Memória Ico Lisbôa (apelido de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, militante gaúcho assassinado em São Paulo em 1972 e cujo corpo, encontrado em 1979, foi o primeiro de um desaparecido político durante a ditadura civil-militar brasileira a ser identificado).
Apesar do ato realizado e da luta contínua de militantes pelo direito à memória, à verdade e à justiça, o processo de transformar o Dopinha em um Centro de Memória está parado, a casa atualmente é de propriedade privada e está habitada. Em 2015 foi instalada uma placa na calçada da rua Santo Antônio, em frente ao casarão, pelo projeto Marcas da Memória, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da capital, que identificava o local como centro de detenção, tortura e morte. A placa foi um primeiro passo para reconhecer aquele como um lugar de memória da ditadura civil-militar brasileira, na busca por fazer justiça à memória daqueles e daquelas barbaramente torturados. Enquanto a disputa pelo casarão e instalação do Centro de Memória Ico Lisboa não está resolvida, a placa faz o papel de não deixar que se esqueça o que aconteceu ali.
No dia 29 de outubro de 2020, foi relatado através de uma postagem nas redes sociais do Grupo por Verdade e Justiça, que a placa pertencente ao projeto Marcas da Memória, que sinalizava a marcação do prédio como um local ligado à ditadura civil-militar brasileira, havia sido coberta com cimento e, assim, impossibilitando a leitura do texto sobre o Dopinha.
Em tempos negacionistas em que vivemos não é estranho que esse tipo de atitude tenha sido tomada e é necessário apurar o quanto antes quem realizou o ato e suas intenções. Por fim, somamos nossas vozes ao Grupo por Verdade e Justiça: A História não se apaga com concreto, para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça!
Referências
- Volume 1 do Comissão Nacional da Verdade (2014). p. 812. Disponível em http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf
- “Não calo, grito: memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul” de Carla Simone Rodeghero, Dante Guimaraens Guazzelli, Gabriel Dienstmann (Orgs.), 2013, p. 55 e 56.
- Carta pública pela criação do “Centro de Memória Ico Lisboa” em Porto Alegre https://bit.ly/3hH3h3E
- Dissertação de mestrado de Jocyane Baretta – Arqueologia e a construção de memórias materiais da ditadura militar em Porto Alegre (1964/1985) http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/279726/1/Baretta_JocyaneRicelly_M.pdf