Thaís Seganfredo (com a colaboração de Ester Caetano)
Foto: MC Cabelinho/reprodução
Antes da pandemia, que paralisou quase por completo atividades culturais, a censura aos artistas no Brasil acelerava em número de casos. Como indica o Observatório de Censura à Arte (iniciativa do Nonada – Jornalismo Travessia), desde a posse de Jair Bolsonaro (sem partido) até o momento foram registrados 37 casos de censura, dos quais 6 tiveram como justificativa críticas ao presidente por parte dos artistas. Diferentemente da época da ditadura militar, a censura hoje em dia é concretizada por diversos meios, de decisões individuais de gestores culturais e de prefeitos a restrições econômicas.
Em 2020, a classe tem estado alerta a uma crescente tentativa de criminalização dos artistas por meios jurídicos. São casos em que instituições como Igrejas e até órgãos do governo Federal têm entrado com pedidos de investigação a artistas na Polícia Federal ou mesmo processado escritores no Judiciário por danos morais, calúnia ou apologia ao crime. Ainda que o movimento não seja inédito – o Observatório registrou, por exemplo, uma apreensão da PF à mostra Cadafalso em setembro de 2017 -, chama a atenção o volume de novos casos.
Na última quinta-feira (29), os MCs Cabelinho e Maneirinho prestaram depoimento na Polícia Civil devido a uma notícia-crime aberta pelo deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) – o mesmo que quebrou a placa em homenagem a Marielle Franco, como informa a Ponte. Os funkeiros estão sendo investigados por apologia ao crime devido às letras de um álbum lançado este ano, em que narram o cotidiano das comunidades.
No instagram, MC Cabelinho fez um desabafo após prestar depoimento: “é impressionante como preto favelado, quando faz sucesso, pra essa gente só pode ser bandido. Nasci em comunidade, cresci em comunidade, o tráfico, a morte e o medo me cercam desde que eu era moleque. O Estado nunca me deu nada, pelo contrário, patrocina há décadas o genocídio do meu povo. Vocês querem que eu cante sobre o que? Em muitas das minhas letras falo mesmo o que eu vi e do rolê violento da vida de todo morador de comunidade”. Em 2019, o DJ Rennan da Penha foi preso e acusado por tráfico de drogas, gerando indignação por parte de nomes da música popular e periférica.
Ameaças e intimidações também têm sido direcionadas aos chargistas, como foi o caso de Renato Aroeira. Após ele ter publicado um cartum com teor crítico a Bolsonaro em junho deste ano, o Ministério da Justiça (MJ) pediu que a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República abrissem um inquérito para investigar Aroeira e o jornalista Ricardo Noblat, que publicou a charge em sua rede social. No mesmo mês, cartunistas da Folha de São Paulo foram interpelados na Justiça pela Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo, devido a charges que abordavam a violência policial.
Aroeira já havia sido processado por ter publicado outro cartum crítico a Bolsonaro, ocasião em que foi absolvido em primeiro grau, além de ter sido ameaçado por queixa-crime do advogado Rodrigo Fux, filho de Luiz Fux, por outro trabalho, sobre Bolsonaro e Benjamin Netanyahu. No caso mais recente, o ataque foi diferente, não apenas pelo envolvimento do próprio Ministério da Justiça, mas também pela acusação que motivou a abertura do inquérito: para o MJ, o chargista deve ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional, ferramenta utilizada nos tempos de ditadura militar.
O Artigo Quinto, rede nacional de profissionais da cultura formada com o objetivo de defender a classe artística, atua rastreando casos de violência contra os artistas e prestando orientação jurídica sempre que necessário. “Temos uma rede de pessoas muito diversas e um entendimento muito claro que o Artigo Quinto é um espaço pluripartidário. A nossa atuação é de dar visibilidade ao que está acontecendo e encaminhar [juridicamente]”, diz Alexandre Vargas, curador de artes cênicas, diretor do INTERCENA e do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre.
Para o produtor cultural, os artistas sofrem atualmente uma espécie de condenação moral de parte da sociedade, além de serem penalizados com o processo de desestruturação do setor pelo próprio governo Federal. “Podemos entender este fenômeno contemporâneo como um movimento pelo qual o aparelho jurídico produz um sujeito político marginalizado, silenciado e com medo. Isso tem evidentemente se intensificado no país e está no conjunto de transformações que vem acontecendo, um presidente que defende as milícias, que basicamente é um paramilitar e um porta-voz do conservadorismo”, diz.
Jurisprudência assegura liberdade de expressão
Decisão recente do Supremo Tribunal Federal reafirmou a proibição de censura e a liberdade aos artistas no país. Após ter sido censurado pela Justiça nas instâncias inferiores, o especial de Natal do Porta dos Fundos exibido na Netflix (que trazia um Jesus LGBTQI) foi liberado por ordem do ministro Dias Toffoli em janeiro de 2020. Na decisão, o ministro declarou: “Não é de se supor que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2 (dois) mil anos, estando insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros.”
Nesta terça-feira (3), o STF decidiu manter, por unanimidade, o entendimento contra a censura, negando diversos processos movidos por presidentes de igrejas, a exemplo da igreja Templo Planeta do Senhor. Já na lininar em janeiro, Toffoli lembrara que a jurisprudência da corte já assegurou a ilegalidade da censura no país em outros processos semelhantes, reconhecendo “a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais”. Em 2019, o Supremo também declarou ser ilegal a censura à Bienal do Rio por parte da prefeitura do Rio de Janeiro, cujo cargo é ocupado pelo pastor Marcelo Crivella.
Ainda assim, processos contra os artistas continuam a ser movidos no Judiciário, incluindo decisões favoráveis à censura por parte de juízes e desembargadores – caso do Porta dos Fundos, da Bienal do Rio e do espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, por exemplo. Até mesmo a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, parece ir contra a essência da própria pasta que comanda, enviando ao Ministério Público um pedido para que o órgão busque na Justiça a suspensão do filme francês “Lindinhas” na Netflix. Acusado pela ministra e por internautas de promover “pornografia infantil”, a obra conta a história de um grupo de meninas de 11 anos que integram um coletivo de dança, sem qualquer cena erótica ou sexual.
O escritor João Paulo Cuenca sofre uma série de ataques orquestrados, segundo sua defesa, pela Igreja Universal. Tramitam na Justiça mais de 80 processos contra ele, com acusações como danos morais, além de pedidos de investigação criminal ao Ministério Público (cabe lembrar que ações na área criminal só podem ser movidas pelo MP).
Nos processos, que possuem textos semelhantes, o autor é acusado por diversos pastores de 21 estados brasileiros por ter publicado em seu twitter que “o brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. A frase é uma paráfrase ao autor Jean Meslier, que escreveu no século 18 que “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”.
Para o integrante do Artigo Quinto Alexandre Vargas, mesmo que a tendência seja de absolvição do artista, ele acaba sofrendo emocional e financeiramente com o litígio. “Há muito desgaste durante o processo, é como se fosse uma trincheira que te colocam e o artista fica brigando até dizer que não está fazendo nada errado”. Segundo o produtor, é preciso ficar alerta, já que o cerco aos artistas acontece de forma estruturada no país. “O cenário cada vez se torna mais e mais autoritário. Sabemos que o conteúdo dos projetos são sim analisados em editais e há o chamado ‘filtro’, que na prática é censura”, lamenta.
Entrevista com Alexandre Vargas, do Artigo Quinto
Nonada – A Judicialização tem sido um dos meios das instituições conservadoras (como igrejas) e da própria polícia para criminalizar artistas com base no discurso de suas próprias. Isso tem se intensificado nos últimos tempos?
Alexandre Vargas – Posso entender esse fenômeno contemporâneo como um movimento pelo qual um aparelho jurídico produz o campo de possíveis sujeitos políticos, um sujeito político marginalizado. Temos o uso do aparelho jurídico para forjar esse sujeito político preso, aprisionado, calado, silenciado, com medo. Isso tem evidentemente se intensificado no país. É claro que a gente não pode olhar como um fato isolado só no campo das artes, isso está no conjunto de transformações que vêm acontecendo no país. Temos um presidente que é um cara que defende as milícias, basicamente um paramilitar. Ele é um porta-voz de todo o conservadorismo, ele é o cara capaz de dizer que tem que torturar, que tem que matar, que foram poucos mortos em Carandiru. Ele diz tudo aquilo que o Exército na verdade não diz. E a ação dele é essa ação bélica que a gente conhece, como um homem público que estimula o ódio e tenta fazer das instituições públicas a ruína.
Os efeitos dessas ações são devastadores, além de impedir o trabalho, isso é impedir o ganho desses artistas. São ações de ruptura dos afetos muito tragicamente potente essas ações que são feitas pelo governo. Porque, mesmo quando não é ação direta do governo, ele libera para aquela outra ponta autoritária, ela se autoriza a fazer determinadas questões que são feitas.
Nonada – Depois da ação movida e da tramitação nas diferentes instâncias, a tendência maior é de absolvição ou de condenação dos artistas?
Alexandre Vargas – O artista já é condenado, se não no campo jurídico, já é condenado no campo moral, da integridade, no campo humano. Nós já temos uma restrição imensa em relação ao nosso trabalho. É curioso que a economia criativa lança como traço característico do setor a informalidade. E nós não podemos aceitar isso. Quando se é impedido de fazer o seu trabalho, impedido de ter os seus ganhos, quando é interrompido um processo no Brasil de estruturação no setor, [o artista] é penalizado, tem poucos recursos, o dia-a-dia se limita muito. Ele perde condições de cuidar da família, de cuidar da casa, questões de subsistência mesmo. A gente não tem um estudo que consiga te dizer se essas ações depois não dão em nada. Mas é todo aquele desgaste, é como se fosse uma trincheira, uma redoma que colocam o artista e ele fica brigando até dizer que é honesto e que não está fazendo nada demais.
Nonada – Existe risco concreto, analisando politicamente o cenário brasileiro atual, desse cenário se tornar mais autoritário e perigoso para os artistas?
Alexandre Vargas – Não tenho dúvidas que o cenário se torne cada vez mais autoritário. O que evidencia isso é a fraqueza dos outros poderes institucionais. [Temos] um presidente que é o grande gatilho disparador desse processo. Há a inação do Senado, a inação da Câmara dos Deputados, do próprio Supremo Tribunal Federal, então a tendência sim, é de aumento disso. Acabar com o Ministério da Cultura é não ter as regulamentações necessárias para o setor, uma desestruturação total. Na prática tem um aumento de desemprego, uma redução da capacidade, menos fontes geradoras de renda, precarização no trabalho.
A gente pode também visualizar o efeito dessa mudança, se observar a própria cidade de Porto Alegre. Porto Alegre não teve na área da cultura, coordenada pelo Luciano Alabarse, que foi o pior secretário de cultura dos últimos tempos, nenhuma ação concreta, efetiva, positiva dentro da área da cultura. E, isso não quer dizer que tenha que ter dinheiro em caixa para isso. O campo artístico é muito propositivo nesse sentido, no sentido do encontro, do debate, de troca de ideias. Isso em momento algum foi estimulado. O autoritarismo também se revela e se expressa dessa maneira. Agora, por outro lado, tem algo muito significativo acontecendo, que é o movimento dos artistas nacionalmente, de uma forma muito consciente lançando candidatos municipais para vereadores. Há um time significativo buscando isso de uma forma consciente.
Nonada – Quais são as principais acusações que os artistas têm sofrido no Judiciário?
Alexandre Vargas – A principal questão que tem surgido é o cerceamento de expressão. Um espetáculo que foi apresentado ou que está sendo apresentado e o gestor identifica alguma coisa que ele não gosta, que acha que está falando do governo ou que acha que não cai bem, ele se sente no direito de interromper o contrato, trancar as apresentações, não contratar mais. Esse cerceamento mais corriqueiro que tem acontecido e é um pouco isso que te falei, é como se a fala do Presidente fosse o disparador desse processo.
Nonada – Como é o trabalho do Artigo Quinto neste sentido? Em todos os casos de censura mapeados por voces, sabe me dizer quantos envolvem o Judiciário ou investigação da Polícia Civil/Federal?
Alexandre Vargas – O Artigo Quinto é esse movimento que nasce puxado pela Tatyana Rubim, de Minas Gerais, mas que de um dia para o outro toma uma força muito grande com aderência de muitas pessoas e de muitos estados, com uma metodologia de comunicação que foi se estabelecendo e que facilitou que isso fosse irrigado pelo Brasil. Nós temos uma rede muito grande de pessoas, de conhecimento, de tudo que foi construído ao longo de muitos e muitos anos de trabalho, nos campos muito diversos das artes. A gente tenta fazer uma rastreamento das ações que foram acontecendo, desde o início do governo, de censura. Também atuamos criando campanhas, como o “cadê a Regina?” que deu super certo, ou no caso do presidente da Fundação Palmares. Outra ação que a gente vem desenvolvendo ao longo do tempo é deselitizar a linguagem, a gente acha que também é importante essa comunicação.
Nonada – Como o Artigo Quinto age legalmente? Os artistas procuram para orientação jurídica?
Alexandre Vargas – Sim, os artistas procuram orientação jurídica e muitas vezes, mesmo eles não procurando, a gente entra em contato, tenta entender o que está acontecendo. Respondendo objetivamente, agimos legalmente no caso, fazendo o estreitamento desses casos com pessoas que nos dão subsídios jurídicos. Muito do nosso trabalho do Artigo Quinto é o combate à postura do governo Federal, que se replica para os estados e para os municípios. É um combate incessante, de forma que a comunicação possa ser acessível, que a gente consiga furar a bolha, falar com os brasileiros.