Ainda é importante respeitar a arte

Uma obra de arte que aborda violência policial foi removida de uma exposição pela prefeitura de Porto Alegre. A obra, composta por um Boletim de Ocorrência registrado por um guarda municipal contra o artista sob a acusação de crime ambiental por outra obra de arte realizada anteriormente, foi removida com a justificativa de ferir a Lei de Proteção de Dados. Mesmo após o artista concordar em suprimir os dados pessoais do agente público, ela continua fora da exposição. O professor de artes visuais Guilherme Mautone escreveu sobre o assunto neste artigo.

por Guilherme Mautone*

Foto: artista Santiago Pooter em frente à sua obra no dia de inauguração da mostra (Crédito: Aliança Francesa de Porto Alegre)

Depois dos acontecimentos que encerraram a exposição Queermuseu em 2017, os casos de censura às artes passaram a receber mais atenção por parte da sociedade, já preocupada com o recrudescimento de uma cultura pouco favorável às manifestações artísticas no Brasil e que marcou a história recente do nosso país antes da redemocratização. No mesmo ano do fechamento da mostra, inaugurou-se o Observatório de Censura à Artevinculado ao Nonada – Jornalismo Travessia, e que se empenha em mapear os diferentes atos censórios para poder deles se lembrar no futuro, comprometendo-se também com a memória coletiva e com a história brasileira recente. Desde 2017, o projeto já registrou 50 casos em diferentes cidades brasileiras, do norte ao sul.

Há pouco mais de um ano, em 2019, a Pinacoteca Aldo Locatelli, no Paço dos Açorianos em Porto Alegre, censurou uma obra de David Ceccon, o que lhe rendeu reproche de boa parte da comunidade artística e de parte da sociedade civil. Na época, as razões dadas para a remoção da obra se tornaram insustentáveis com o passar do tempo, pois a tendência moralizante que motivou a ação se tornou bastante clara. Fato é que, em terras gaúchas, quem deveria por princípio defender a produção artística contemporânea — fornecendo assim condições para sua produção, exibição e acesso — parece, na verdade, mais interessado em advogar em causa própria, esquecendo do compromisso com o desenvolvimento das artes na capital. Hoje, em dezembro de 2020, vemos a reincidência da supressão de obras em outro caso no mesmo espaço expositivo, o que evidencia novamente a dificuldade da sua gestão em resolver os conflitos do campo artístico de modo criativo e implicado, sustentando assim o que a arte contemporânea talvez tenha de mais valioso: a sua insurgência.

No último dia 11 de dezembro, o trabalho Enquadro do artista Santiago Pooter foi removido da exposição Insurgentes, a coletiva dos finalistas do Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea, sob a excelente e cuidadosa curadoria de Izis Abreu. A obra de Pooter consiste em uma fotografia, um Boletim de Ocorrência emoldurado e duas definições de dicionário impressas. Sua remoção foi justificada pela gestão do espaço como potencialmente geradora de litígio para o artista e para a instituição e foi amparada por argumentos da assessoria jurídica da Secretaria Municipal de Cultura, baseados na Lei de Proteção de Dados. O BO exposto na obra apresenta informações sensíveis do comunicante (um efetivo policial) e seu pedido de remoção foi inicialmente solicitado por agentes da própria Guarda Civil Metropolitana que travaram contato com o trabalho. E o artista foi simplesmente notificado, na sexta-feira passada (11), da remoção de sua obra.

Parte da obra que foi removida da Pinacoteca Aldo Locatelli (Foto: arquivo pessoal)

Nessa complexa cadeia de demandas, prevaleceu, ao fim, a iniciativa — unilateral, arbitrária e à revelia do devido processo legal — da própria corporação policial e da gestão do espaço; iniciativa que, ao que tudo indica, encontra-se em clara tensão com o direito à liberdade de expressão do artista e com a prerrogativa do respeito à arte nas democracias consolidadas. Embora Pooter tenha procurado a gestão do espaço expositivo para propor uma alteração do trabalho diante do impasse, suprimindo os dados sensíveis do comunicante, não houve acordo e a gestão pública permaneceu, como se diz popularmente, ‘na retranca’, dificultando qualquer resolução e adiando reuniões.

A alternativa sugerida pelo artista previa, além da supressão dos dados, a inserção de novas camadas documentais no trabalho que tornassem pública toda a cadeia de tratativas institucionais — uma prática comum na arte contemporânea e que prevê uma ‘processualidade’ da obra diante do reconhecimento das múltiplas reverberações contextuais de sua apresentação, suscitando a ideia de Umberto Eco sobre a ‘obra aberta’, continuamente em acontecimento. A curadora, que contundentemente se posicionou ao lado do artista, também não teve sua posição considerada, sendo igualmente ignorada em seu ofício e competência curatoriais.

A obra se encontra, neste momento, removida da exposição há mais de uma semana, na reserva técnica da Pinacoteca, conforme informou por e-mail a coordenação das Artes Plásticas da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Tanto a Aliança Francesa de Porto Alegre, quanto a Coordenação de Artes Plásticas da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre divulgaram notas nas quais, aparentemente, procuram explicar o ocorrido, ainda que transpareça uma clara intenção de se isentarem de maiores responsabilidades, não se implicando de modo efetivo na resolução.

Pooter reflete artisticamente sobre intervenções urbanas variadas nascidas da cultura contemporânea e suas relações com a pintura, a fotografia e a colagem, suportes autônomos e tradicionais das artes. Em Enquadro, seu trabalho suprimido pelo poder público, Pooter procurou desdobrar conceitualmente o verbo ‘enquadrar’, polissêmico na língua portuguesa, ao brincar com dois de seus sentidos: o de um ‘enquadramento’ artístico dentro da pintura e da fotografia que recorta naquilo que se vê um tema ou conteúdo a ser representado e, por outro lado, o ato de ‘ser enquadrado’, ou flagrado, pela polícia.

Santiago Pooter, ‘Enquadro’, 2020

O trabalho poético de Pooter suscita uma discussão importante sobre as formas pelas quais a expressão humana se incorpora por meio de visualidades urbanas nos espaços compartilhados das cidades; mas debate igualmente os processos que documentam a formação coletiva de um sistema sensível comum, aludindo às ideias do filósofo Jacques Rancière. Para o pensador francês, essa ‘partilha do sensível’ nunca se dá sem disputa, sem interesse; o que suscita recortes, oportunidades, acessos, impedimentos e, igualmente, violações. Cumpre perguntar, por exemplo, sobre quem disputa o sensível e sobre como essa disputa ao nível estético engendra, por sua vez, conflitos ao nível político. A questão do documento também é indispensável para Pooter, pois a documentação, amplamente cogitada, é o que permitiria pensar na garantia da memória coletiva e da história. E, assim, problematizar igualmente narrativas oficiais, a história que se conta e as limitações historiográficas.

Por que esse trabalho foi suprimido? Não estariam essa supressão e essa resistência em resolver o impasse configurando um ato censório por parte da gestão pública? O que a obra problematiza? Que tipo de mal-estar ela causa? E a quem? O que esse documento, ao se transformar em obra de arte, exibe para nós mesmos enquanto sociedade? Por que não aceitar as sugestões de alteração propostas e que evitariam a exposição dos dados do comunicante e, também, o suposto litígio? Por que os agentes da Guarda Civil tomaram uma ação unilateral, aparentemente arbitrária, sem devido processo legal? Um BO não é um documento público que atesta a atuação dos agentes do Estado? (Atuação, inclusive, que deve por princípio ser sempre passível de questionamento público, pois de seu interesse). Por que os casos de censura às artes têm aumentado nos últimos anos em território nacional? E, por fim, por que em Porto Alegre, duas vezes, no mesmo espaço expositivo? Parece, respondendo algumas das questões aventadas, que quanto mais se tenta esconder alguma coisa, mais ela vem à tona em sua urgência em ser vista e reconhecida. O que se recalca convenientemente insiste, assim, em voltar. Não há escapatória.

Documentos, entre outras fontes, são parte importante da garantia da própria história. O esforço em contá-la sempre movimenta um trabalho peculiar da memória e da lembrança através do qual tornamos presente tudo aquilo que se ausenta de nós com a passagem do tempo, oportunizando, portanto, sentidos e destinos para tais ausências. Essa lógica se aplica ao contexto social, no qual os documentos da sociedade, mas também as categorias que inventamos para reuni-los e organizá-los, permitem-nos contar a história da vida compartilhada. São ideias que remetem, embora de modos distintos, ao pensamento de Jacques Le Goff, Michel Foucault e Carlo Ginzburg, quando assinalaram a importância documental, num sentido amplo, para a estruturação da história humana.

A supressão do documento, expediente típico de ditaduras, cria uma situação peculiar na nossa vida social, porque embora recubra as relações sociais de burocracia, evidencia também um esforço em manter as ações estatais escondidas sob um sigilo que (embora algumas vezes relevante) perde sua razão de ser, tornando-se hábito de Estado. O esforço dele em ocultar um documento que ele mesmo produziu sem que produza junto desse ocultamento uma razão adequada para explicá-lo, evidencia uma fobia persecutória do Estado em relação à burocracia que documenta sua ação, ou seja, precisamente aquilo que o acusa e o implica. Mas também é algo que alicerça a espinha dorsal de uma censura generalizada: pois a trivializa e a torna, no jargão popular, café pequeno. Ações à revelia de um arrazoado capaz de justifica-las também parecem ser, em nossos anos recentes, outros tantos convenientes cafezinhos. E modelos viciosos se disseminam rápido pela política nacional. As pessoas, no entanto, ainda têm memória. E algumas delas estarão comprometidas com a história; seja fazendo arte, ousando exibi-la, enaltecendo sua produção e sua circulação ou, simplesmente, falando dela sem medo. É como sugeriu Rosa em Grande Sertão: Veredas, o que a vida quer da gente é coragem.

*Professor, doutorando em Filosofia pela UFRGS, membro do Colegiado Setorial de Artes Visuais da Secretaria da Cultura do Estado do RS, editor da Revista PHILIA e docente da Casamundi Cultura.

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