Ester Caetano
Foto: Jhony Sul/divulgação
O trabalho de um produtor cultural pode ser extenuante, especialmente em dias de show ou espetáculo. Mas o produtor e roteirista Luis Ferreirah teve que lidar também com a carga do racismo em uma dessas ocasiões quando estava trabalhando no Theatro São Pedro, de Porto Alegre, para a realização de um show no qual ele assinava a produção e a direção do espetáculo. “Em determinados locais sempre me barravam pedindo credenciais, sendo que eu estava ali desde as 8 horas da manhã. Enfim, a estrutura racista”, lamenta.
Luís é um dos muitos trabalhadores da cultura negros no Rio Grande do Sul que teve que passar por situações veladas ou explicitamente racistas durante o trabalho ou no processo de seleção para um emprego. A mediadora de arte Kai Isaías relata que são muitos os “nãos” que os trabalhadores negros recebem até conseguir a resposta positiva para uma vaga. “Quando a gente sonha muito em trabalhar nesta área, sendo uma pessoa preta, qualquer um que esteja trabalhando vai poder falar que recebeu muito não e, quando recebe o sim, o agarra com unhas e dentes.”
A mediadora conta que na sua busca por emprego em uma determinada empresa, chegou a fazer quatro entrevistas nos últimos anos. Na quarta tentativa, ela finalmente entrou para o quadro de trabalhadores e ficou sabendo que não fora contratada na primeira vez por causa de seu cabelo afro colorido, que na época foi considerado um problema para a imagem da empresa.
Assim como Kai, Silvana Rodrigues, atriz e co-fundadora do grupo Pretagô, conta que passou por situações racistas. “Tendo trabalhado no setor público da cultura, infelizmente coleciono experiências das mais requintadas, daquelas que facilmente a gente se questiona se é impressão ou mania de perseguição, mas que conversando com outros colegas, descobrimos que é o modo de operação”, aponta.
A atriz também comenta sobre a forma como caracterizam um corpo negro e dão a ele significados que na realidade não convergem com o que realmente é, rotulam como sempre forte e vestindo uma armadura. “A visão padronizada é que a gente esteja sempre em estado de luta e exaustão, de guerra, de batalha. Eu quero é gozar a vida, quero “fazer nada”, quero essa a utopia do parar, estar parada, só observando os pássaros, o mover de uma árvore, as formas das nuvens, essas coisas de artista, de artista negra”, relata Silvana.
“O nosso corpo é um ‘textão’ mesmo em silêncio. O nosso corpo diz um monte de coisas”, observa Silvana, que também é codiretora da videoarte “Corpos Ditos”. Seu trabalho “Relaxamento Afro”, inserido na programação do Festival Verafro, é uma grande exposição a céu aberto pelas ruas das cidades, com várias imagens de corpos negros em estado de gozo, relaxamento e fruição. “Nosso corpo é vida e estar em combate é também frisar que nossa vida vale a pena, que merecemos tudo, que podemos e devemos parar, que nós nos narramos, nós nos definimos. Um artista branco pode fazer um rastro de tinta e isso não fará com que a crítica, a classe artística, a mídia e o público geral chafurde as suas dores e eu quero isso, que nem toda a minha arte seja uma desculpa para que afundem os dedos na nossa ferida”, destaca a artista.
É falando sobre feridas e dores que Luís pensa em colocar o seu corpo em estado político e logo lembra da ancestralidade. Ele acredita que apoderar-se de lugares que não foram feitos para a negritude é um processo iniciado pelos que já passaram. Ele tem em mente que o seu corpo é revolucionário, atemporal “porque o que pulsa é a ancestralidade”. Ele conclui parafraseando a canção do Emicida: “Eu sou o sonho dos meus pais, que eram sonhos dos avós/ Que eram sonhos dos meus ancestrais/ Vitória é sonho dos olhares, que nos aguardam nos lares/ Crendo que na volta somos mais…”
Padrão europeizante e racismo estrutural são entraves
Nos últimos anos, o boom da diversidade e inclusão nas organizações vem transformando o setor profissional. Empresas, empreendedores, profissionais de diferentes esferas “entenderam” que a sacada do jogo é o incluir e, incluir o diverso. Questões sobre racialidade, sobretudo as complexas e variadas relações raciais, mulheres negras, pessoas LBGTQIA+ tiveram uma ampla discussão no que, de certa forma, abriu mais um leque para as discussões sociais do Brasil e isso não deixa de refletir no campo das artes e da cultura. Mas quais são os resultados efetivos desse debate? De acordo com estudo realizado pelo comitê de diversidade AfroGooglers, em parceria com o Instituto DataFolha e Mindset-WGSN, a inclusão no mercado de trabalho é uma das principais prioridades para as pessoas negras, e ao pensar a atividade na cultura, é perceptível a urgência dessa busca.
No campo cultural, exposições e projetos que visam promover uma maior inclusão racial, de gênero e classe estão florescendo, porém, olhando para os dados das equipes envolvidas, o caminho ainda está muito longe de uma mudança real. Em Porto Alegre, depois de 12 anos, foi só em 2020 que a Fundação Iberê Camargo teve a primeira exposição individual de um artista negro, o carioca Maxwell Alexandre. Para Kai Isaias, mediadora da Fundação, há diversas barreiras que impedem os artistas negros de ocupar esses espaços. “Existe um círculo muito fechado de profissionais que se retroalimentam, um ciclo de indicações muito exclusivas que não tem espaços para os artistas, produtores e curadores negros”.
Thiago Pirajira, ator, produtor e professor de teatro, também integrante do Pretagô, afirma que existe um abismo entre pessoas negras e as não negras no mercado de trabalho, além de outros fatores que tornam as questões ainda mais complexas, como a interseccionalidade. Ele aponta que o acesso e a oportunização a espaços no meio cultural dos artistas negros são totalmente diferentes das oportunidades para as pessoas brancas, também devido aos referenciais comumente adotados pelo mercado cultural. “No meu lugar de trabalho, do teatro, existe uma égide deformativa fundante, do que a gente entende como teatro no Brasil, que tem uma fonte ainda muito europerizante. E, nesse sentido, muito do que se produz, ainda em 2021, relacionado a teatro, está ligado a essa fonte europerizante. Ou seja, que determina quais corpos que vão estar presentes nas produções, que tipos de estéticas vão ser elaboradas e que tipo de estéticas não poderiam estar inseridas nas produções”, explica.
A pesquisa Sistema de Informações e Indicadores Culturais (2007-2018), realizada pelo IBGE, revela que pretos e pardos são minoria entre os trabalhadores do setor cultural, ao contrário dos trabalhadores dos demais setores. Ainda que a população preta ou parda tenha aumentado sua participação no setor em relação a 2014, os dados mais recentes, de 2018, apontam que os brancos são 52,6% do setor, enquanto que trabalhadores negros representam 45,7%. Dos profissionais da cultura que trabalham no estado riograndense, menos de 20% são negros, enquanto os brancos somam mais de 80%.
Essa desigualdade tende a aumentar em relação a cargos e funções mais prestigiadas dentro da cultura. Um mapeamento sobre curadores negros no Brasil, da educadora, pesquisadora e curadora Luciara Ribeiro, retrata a falsa sensação de diversidade no meio criativo. A pesquisa expõe empresas e instituições que promovem a luta antirracista e levantam a bandeira, mas continuam perpetuando o racismo e a falta de inclusão quando se calam para profissionais que erguem suas equipes majoritariamente com pessoas brancas.
Até o momento, a pesquisa identificou 76 nomes de curadores negros e negras e 20 indígenas. Entre eles, somente 7% estão no Rio Grande do Sul. “De acordo com os dados obtidos até aqui, apenas 20% dos curadores indígenas e negres atuam em alguma instituição, enquanto 80% não têm outra saída que não seja apostar na carreira independente/autônoma. Nem sempre o trabalho como curador autônomo/independente é uma opção desejável, pois envolve instabilidade financeira, situações precárias e desgastantes de trabalho, além da falta de políticas públicas que amparem adequadamente os profissionais que atuam nessa modalidade”, revela o estudo.
Não é preciso cavar muito para encontrar a raiz da disparidade. Um país erguido em cima da exploração, do silenciamento e do apagamento da população negra resulta no favorecimento de um grupo opressor, e esse grupo coloniza todas as estruturas da sociedade oprimida – desde as artes, artesanatos, culinária, até a religião. Desta forma, o culto ao “belo europeu” e o racismo se interligam, caracterizando a desigualdade nesta área.
Hoje, como mediadora, Kai Isaías tem como projeto de vida dar espaço e oportunidade a pessoas negras, sobretudo, as mulheres. Por consequência, acredita que vai acabar movimentando as estruturas e preenchendo o meio cultural de mais diversidade. “Estamos muito longe de ter diversidade, ainda temos pouquíssimo espaço, estamos melhor do que estávamos um ano atrás, e vamos estar melhores do que hoje, daqui a um ano. Mas uma questão que se coloca quando nos inserimos no mercado de trabalho, é necessário trazer outras pessoas negras. A gente só consegue a diversidade abrindo espaço para a diversidade”, finaliza, dizendo esse não é um dever somente das pessoas pretas, mas principalmente da branquitude.
Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.