Revista Continente completa 20 anos de cultura e diversidade no jornalismo

Thaís Seganfredo
Foto: Breno Laprovitera/divulgação

Se fazer jornalismo cultural de qualidade hoje em dia é um desafio, imagine tocar uma revista por 20 anos. Essa é uma conquista da revista Continente, publicação da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), que completou duas décadas em dezembro de 2020. Entrevistando artistas que estão surgindo na cena local, como também nomes consagrados da cultura brasileira, a Continente se mantém relevante, inspirando veículos do nicho. É uma das poucas revistas impressas de cultura do país, mas também está disponível de forma gratuita em diversas plataformas na internet.

Na última década, sob a editoria de Adriana Dória Matos, a revista se renovou para abarcar novas visões acerca do conceito de cultura. Entendendo que a cultura engloba não apenas a arte mas também saberes e manifestações populares, a equipe fez uma espécie de revolução no seu design editorial. Trocou as clássicas editorias relativas às produções artísticas (artes visuais, literatura, cinema…) para classificar o conteúdo a partir do gênero jornalístico (reportagem, entrevista, resenha, perfil…), o que permitiu maior liberdade à redação, conta Adriana em entrevista por vídeo.

Receber em casa a revista que tem circulação de  mil exemplares é um privilégio (mesmo com o valor acessível da assinatura), mas a Continente também soube repensar seu modelo de distribuição para se adaptar aos novos tempos, investindo no site, mídias sociais, podcast e newsletter. E, neste contexto em que políticas públicas de cultura estão sendo atacadas no país, ter um veículo jornalístico como a Continente é vital para a área da cultura – e do jornalismo. Como diz Adriana, “a minha visão é no sentido de que precisamos nos fortalecer como rede, incluindo também a educação”.

Confira a entrevista:

Foto< reprodução

Nonada – Nesses 20 anos de história, a Continente passou por mudanças editoriais, com cada vez mais espaço para a cultura popular e a diversidade. Como foi esse processo?

Adriana Dória – A Continente existe há 20 anos, e eu estou lá há 12. No início, o impresso era a grande fortaleza, a cultura de internet tal como ela é hoje era incipiente. Então eu não participei desse início da revista mas, como jornalista cultural, para a gente aqui no mercado local foi maravilhoso quando surgiu a revista. Existiam os cadernos nos jornais, eu inclusive trabalhei no Jornal do Comércio, mas não existia uma revista. Quando eu comecei a trabalhar na revista, o site era muito incipiente, porque a revista era nosso carro-chefe. Os impressos de forma geral precisam de circulação, é mais oneroso, por mais que a gente veja que as pessoas buscam. Mas a revista Continente surge dentro da imprensa oficial do Estado, que inclusive tem seu parque gráfico, o que é um privilégio. 

A Continente de certa forma foi inspirada no projeto da Bravo, que tinha conteúdo jornalístico, aliado a um conteúdo mais ensaístico e opinativo. Nós, que somos de estados que não estão no centro editorial e econômico do Brasil, sempre ficamos nessa carência, de ter como referência as revistas que conseguem se distribuir nacionalmente. Então imagina quantos projetos podem ter surgido em Porto Alegre, em Fortaleza, em Belém, e que a gente desconhece porque não chegou pra gente. E o que foi massa nessa história de surgirem as redes e ter um ambiente na internet é que a gente começou a ter acesso a coisas que não tínhamos no Brasil. Isso tudo foi a evolução do ponto de vista dos veículos.Hoje a gente tem uma revista que não sobreviveria se não tivesse esse complexo, de ter a impressa, o site, as redes, vários produtos. Hoje a gente fala que a Continente é muito mais uma marca, um conceito. 

Do ponto de vista do conteúdo, posso te falar de duas mudanças no design editorial e gráfico. Quando eu entrei em 2008, foi justamente porque a Cepe queria fazer uma mudança do perfil editorial da revista. Pude levar algumas pessoas para trabalharem comigo, foi ótimo. Essa primeira reforma que a gente fez ainda era mais conservadora do ponto de vista de como se vê a cultura.O projeto abarcou também as diretorias, foi levado a frente por mim, mas com as decisões das diretorias. Então lá em 2009, nós mudamos o logo, mudamos as fontes, criamos seções, mas ainda considero naquele momento – e a gente tinha consciência disso – ainda era muito com essas marcações do jornalismo cultural tradicional, muito focado na produção artística. 

Ainda tinha a seção para cinema, para música, para as artes cênicas, para as artes visuais e tal. Minha compreensão é que isso aprisiona a compreensão da produção, fica careta. A gente não queria isso, queria dar um passo maior nesse sentido. Em 2017, a gente fez uma nova investida, porque os processos editoriais também envelhecem, não é só o design que envelhece, é como você vê o mundo também. A gente queria muito ampliar esse escopo do que é cultura, que não é somente o fazer artístico, é onde estamos, nossa imersão no mundo, nossas práticas. Isso a gente já fazia, já discutia as manifestações das tradições, daquilo que a gente vem chamando de cultura popular, mas ainda era uma coisa engessada nessas caixinhas que eu te falei. Então jogamos fora essas caixinhas, fizemos um novo projeto editorial, aprovamos e aí foi massa porque nos sentimos muito mais livres. 

Nonada – Como é fazer uma revista com alcance público e relevância nacional fora do eixo Rio-São Paulo? 

Adriana Dória – Essa pergunta me deixa muito lisonjeada, poderia dizer que é muito bom, mas a gente tem muita dificuldade de chegar a outras praças. Fizemos um acordo com algumas livrarias que a gente acha bacana. A revista impressa tem uma tiragem super pequena, a gente só imprime mil exemplares. No Brasil, o maior problema dos impressos é a distribuição, mas por sorte a gente tem outros canais. A gente tenta fazer um meio campo bem legal com assinantes, leitores, mas não é a nossa competência, é competência do setor comercial. 

Nosso leitor não pode estar naquela vibe da revista tem chegar no dia 5 todo mês.  A gente contorna isso com um papo bem próximo na rede. No início era no Facebook, que perdeu a força. A galera migrou muito para o Instagram, foi sempre uma mídia menos relevante para a gente, porque tem que ter uma equipe de rede para administrar tudo. Hoje, o site tem mais de 23 mil pessoas que frequentam, isso é um luxo para uma revista que só tira mil impressos. A gente sabe que chega a leitores de várias faixas do Brasil, mas nada comparado aos megas números que os outros veículos estão acostumados. Mas eu, que venho trabalhando com jornalismo cultural desde o início da minha carreira, acredito que o jornalismo cultural tem um público específico e é sempre menor do que qualquer outro público. O mercado mudou muito, a gente hoje está em nichos. Hoje tem os youtubers, os influencers…

Nonada – Pois é, você acha que o jornalismo cultural caminha mais para o lado dos influencers? Como é que fica esse jornalismo cultural profissional? 

Adriana Dória – A gente tem que viver a cada dia. Tem que ter muita serenidade para fazer o trabalho profissional, para saber o lugar que a gente ocupa, o conteúdo que gostaria de trazer. Eu amaria que pudéssemos estar mais colados com a educação, eu acho que a única solução pra gente é a educação, pois educadas, as pessoas têm uma visão crítica do mundo. Esse é o ponto chave. A gente está no lugar que está porque não é um país que lê, temos índices de leitura reduzindo a cada ano. Procuro ser otimista, sei que o nosso papel é um pequeno papel em um grande contexto. 

A gente perdeu relevância, no sentido amplo. O jornalismo cultural como era entendido, com a  comercialização e com a figura do crítico, que era a pessoa que elevava e demolia obras – figuras como Barbara Heliodoro que era temida pela galera de cênicas – ou seja, o jornalismo tal como a gente conhecia ou como perdurou alguns anos, é claro que perdeu relevância. Isso tem um aspecto bom, porque a gente tinha muito uma soberania de certas pessoas, e isso se a gente observar significava a própria hegemonia de autores, editoras, casas de espetáculos, tudo era muito vertical. Então, de um lado, acho maravilhoso que a gente tenha perdido relevância, mas [só] se isso significar uma ampliação da discussão crítica. Sinto muito, queridos, vocês perderam espaço (risos). Mas em compensação, tem muita gente fazendo reflexão acerca das obras.  

Por outro lado, a gente tem um contexto de políticas culturais no Brasil que é uma tristeza absoluta. O que a gente conseguiu que fosse construído em uma década e meia está sendo rapidamente destruído, isso gera uma violência, uma angústia. Acho massa o Observatório de Censura de vocês, é um projeto show, super necessário. É importante que a gente tenha iniciativas de vigilância. Mas como é difícil a gente se erguer e se manter. A crítica cultural perdeu relevância, e não é questão só de hegemonia. Os jornais desvalorizaram esse mercado, os jornalistas que eram contratados não estão sendo mais contratados, houve um empobrecimento do jornalismo. É tudo muito minguado, lutado, tudo muito difícil, para a cena cultural também. A minha visão é no sentido de que precisamos nos fortalecer como rede, mas tendo que incluir a educação. A gente vai ter que fazer um esforço para pensar também em quem vem.

HQ sobre a vida e obra de Basquiat publicado na edição de novembro de 2020, com ilustrações de Raul Souza (Foto: reprodução)

Nonada – Como você avalia a diversidade nos veículos independentes? Esse trabalho vem pautando também a grande mídia?

Adriana Dória – Hoje a gente não consegue pensar uma redação sem uma pluralidade de vozes, de origens, de lugares. Agora, a gente tem um diálogo mais próximo em rede, com veículos independentes, do que com a grande imprensa. Trabalhei no jornal de maior circulação daqui, o Jornal do Comércio, que há alguns anos acabou com o caderno cultural. Eu não vejo muitas trocas com a grande imprensa, porque eles fazem jornalismo de agenda, de assessoria e quase não sobra tempo para fazer jornalismo. A reportagem requer tempo, investimento, e a gente paga todo mundo que colabora e escreve na Continente, a gente investe, por exemplo, em HQ exclusiva. É muito massa poder fazer isso, criar obras, fomentar o mercado, é um negócio que para mim não tem preço. Me sinto muito recompensada pela possibilidade de pensar e realizar projetos. Acho que hoje a gente pensa mais em formas de se viabilizar. Antigamente, você fazia o curso para trabalhar em um determinado veículo. Hoje, você já sabe que não existe isso, e pensa em como pode criar coisas. Nós somos mais criativas, mais guerreiras. Em um ambiente de escassez, ou você cria ou você não existe. 

Nonada – O que você diria para um estudante que quer trabalhar com jornalismo independente no Brasil?

Adriana Dória – Além de ser editora, eu sou professora universitária no curso de Jornalismo e acho que  o jornalismo sofreu uma pancada desde a abolição do diploma. Foi uma metáfora de desprestígio, como se dissesse que a profissão não precisa de estudo. Sempre digo aos alunos que, do ponto de vista do aprendizado, no curso a gente aprende como ser humano e aprende muito sobre independência. Acho que a gente faz o curso para abrir portas, abrir mentes. Continuo a achar que vale a pena. Se a gente pensar no apogeu do jornalismo, será que a gente continua a fazer isso? No século XIX, por anos as pessoas trabalhavam como jornalistas e não recebiam nada. Boa parte do cânone literário brasileiro trabalhou em redação de jornal. Mas durante muito tempo, esse trabalho não era reconhecido, era um ganho político, metafórico. Então essa ideia de que se perdeu mercado de trabalho, sim, se perdeu. Mas também nunca se ganhou dinheiro com jornalismo. Na minha geração, a gente sabia por exemplo que ia trabalhar em redação e não ia ter dinheiro para comprar uma casa. A pessoa que faz jornalismo, se imagina que vai ganhar dinheiro, imaginou muito errado. Hoje tem várias possibilidades de criar canais no youtube, instagram, outros mercados vão surgir, porque é muito dinâmico o processo. A comunicação é como uma cidade, e as cidades se movem, mesmo que sejam de cal e pedra. Temos hoje áreas de abandono nas cidades, que foram vivas, pulsantes um dia. Vejo muito o campo na comunicação nesse sentido. Hoje a gente faz mais esforço, mas o jornalismo não vai acabar. Acho que o que o curso de jornalismo faz é a gente ficar esperto. 

Nonada – Pode nos contar um pouco sobre os próximos projetos da Continente, a celebração dos 20 anos?

Adriana Dória – A gente queria poder fazer mais eventos, mas com o isolamento e as restrições, uma das formas que pensamos foi oferecer um poster com ilustrações exclusivas para os leitores ao longo das 12 edições de 2021. E criamos um podcast, que é mais um produto que a gente faz por nós mesmos. A gente pretende fazer um evento, claro que não presencialmente, mas trazer uma discussão. Ano passado, lançamos um livro pela Cepe de 30 entrevistas da Continente e a ideia é que esse ano a gente publique mais dois livros pelo selo. Mas a gente precisa ter serenidade nessa pandemia e não querer fazer coisas loucas. E sobreviver a todas as dificuldades que se apresentam. Por mais que a revista seja um lugar de privilégio, porque é publicada pela imprensa oficial, não tem intervenção de pauta, e isso é incrível, ela passa por dificuldades também, somos cobrados para não ser um peso pra CEPE, temos dificuldades de distribuição. Tudo isso é um problema da redação. Então vivemos sempre nos justificando, sempre mostrando tudo o que fizemos. Então a ideia é que a gente consiga continuar sendo relevante e fazer projetos, abrir cada vez mais a possibilidade de comunicação com as pessoas, trazer vozes para dentro da revista. É que nem aquela obra que o prefeito faz que ninguém vê, mas que foi fundamental. Se a gente conseguir fazer isso, já é lindo.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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