Raphael Carrozzo
Foto: Milena Abreu
“O cinema é uma linguagem que sempre privilegiou massivamente a representação de pessoas brancas, do mundo das pessoas brancas, é o meio que mais fez com que as pessoas pretas se sentissem inexistentes. Em 115 anos sem ter um personagem negro montando em cima de um cavalo, você tem um problema. Se a gente pega o Brasil, e demora todo esse tempo pra ter uma mulher negra dirigindo um filme [depois de Adélia Sampaio], você tem um problema”, introduz o cineasta fluminense André Félix, de 39 anos, explicando de forma didática o panorama histórico no qual ele se insere como profissional do cinema.
Integrante da nova geração de jovens cineastas cada vez mais afiados que, pouco a pouco, estão mudando o cinema brasileiro, o diretor, produtor e roteirista agora quer contribuir para que outras mentes possam ter as mesmas oportunidades. Como o elemento basilar dos instrumentos próprios para cortar, o Lâmina – Mostra Audiovisual Preta é um desses pontos que podem determinar a montagem de uma trama. Financiado pela Lei Aldir Blanc, o Festival vai selecionar filmes e conteúdos audiovisuais para cinema web, TV e Video On Demand (VOD). A mostra acontece em maio através do site oficial do evento.
É fundamental que cada vez mais espaços culturais como esse sejam criados para romper a supremacia da elite, comandada por pessoas brancas. Para que possamos ter uma dimensão do privilégio, que nós, brancos, temos no setor audiovisual, basta olhar a última pesquisa feita pela Ancine em 2016. Dos 142 filmes lançados no cinema naquele ano, 75,4% dos longas foram dirigidos por homens brancos e 19,7% por mulheres brancas. Apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra.
Além da falta de espaço atrás das câmeras, outros dois pontos importantes para entendermos essa dinâmica são a falta de representatividade na frente das câmeras e os estereótipos nos quais os negros são apresentados, o que nada mais é que um reflexo de como a sociedade branca olha para pretas e pretos.
Diretor do longa “Diante dos Meus Olhos” (disponível no Prime Video) e co-roteirista de “Entreturnos”e da série “Galera da Praia”, além de diversos curtas, Félix avalia que essa falta de representatividade está diretamente ligada ao processo de escravidão que, nos dias atuais, apenas modificou seu macanismo de funcionamento. “O que nós estamos falando aqui é o sentido do cinema do Jordan Peele, principalmente em “Corra” (Get Out), que é tentar entender como está o status da dinâmica da escravidão. Desde o surgimento da ANCINE, por exemplo, de todos os filmes lançados por pessoas pretas, até 2017 ou 2018, o único que passou de 10 mil espectadores foi o “Bróder”, do Jeferson De”, destaca.
Para Félix, porém, esse campo está mudando, o movimento negro no audiovisual está cada vez mais forte e suas influências estão ditando a forma de fazer cinema, graças ao advento digital, redes sociais. Segundo o cineasta, no âmbito nacional, os incentivos do governo do PT possibilitaram que o movimento pudesse ter condições de fazer produções audiovisuais e em grande quantidade.
“Quem olha para o cinema mundial e não vê que a chegada de, nos últimos cinco anos, Barry Jenkins, Jordan Peele, Donald Glover, Ava DuVernay, entre outros, não é o que vai levar o cinema pra frente, está perdendo tempo. No Brasil, de 2016 pra cá, tivemos pelo menos cinco longas dirigidos por mulheres negras, enquanto que da década de 80 pra cá, só tínhamos um. Quem ainda está colocando o preto nesse lugar subalterno – no contrato social ele continua sendo – está perdendo. O campo semântico da cultura já mudou. Essa expressão de gueto, atribuída aos filmes do Spike Lee, na década de 90, já não cabe mais. Esse movimento não tem volta. Não existe um futuro sem passar, primordialmente, pelas pessoas pretas”, afirma.
Quanto aos assuntos abordados dentro do cinema preto, o racismo e a herança do processo de escravidão sempre vão estar presentes. Para Félix, “A diferença do branco pro preto é essa experiência com relação à escravidão, que acontece a todo momento. O momento não é não falar sobre isso, mas sim de entender como esses efeitos mudam a maneira como olhamos para a imagem do mundo. Sempre vai ter uma tensão quando temos um personagem negro, seja em menor ou maior grau. Ele nunca vai estar em paz. Então, não é o momento de superar isso, mas sim de ser colocado e recolocado”, defende.
Todos esses avanços, segundo Félix, vão continuar apesar do contexto no qual estão inseridos numa dimensão imediata: a pandemia da Covid-19 e, no Brasil, a gerência de um governo “racista, fascista e genocida”. “Dentro da construção histórica, o governo Bolsonaro faz mais sentido do que o advento de um governo distinto como do PT, ou seja, na história do Brasil, nós tivemos mais produção de Bolsonaro do que de um governo de esquerda. Então, quando eu olho pra isso, eu digo: a luta continua. Um passo pra frente, às vezes quatro pra trás, mas a luta continua”. Atualmente, Félix está comandando a mesa de roteiro das séries “Nebulosa” e “Balada”, com previsão de estreia para o primeiro semestre de 2021.