Sem palco: como a cena drag vem se adaptando na pandemia 

Ester Caetano
Foto: Giovanni Ceconello/Festival POA in Drag

A cultura drag vem se ampliando e ganhando espaço como um símbolo de resistência. Gritos em forma de apresentação e representação ecoam no cotidiano das drag queens. Mais do que se montar e performar, estes artistas usam da sua expressão para um ato político e buscam a inclusão de direito e liberdade para afirmar que também fazem arte, poesia e história. 

Fora dos palcos e sem plateia, a essência de uma drag se fragmenta. Em Porto Alegre, Cassandra Calabouço, drag da cena mais antiga da cidade, Sarah Vika e Gabi Granada, da new era, como as “novatas” se auto intitulam, contam um pouco sobre suas histórias e percalços para aguentar a vida sem as badaladas noites.   

Nilton Gaffree Silva dá vida a Cassandra Calabouço, performista há mais de 20 anos, mas presente na vida do bailarino desde sempre. Para ele, a existência da Cassandra passa as barreiras de uma singela expressão artística, é a junção de seus desejos artísticos, das questões sociopolíticas, das possibilidades de ação dentro do campo da arte e do social. Nilton já passou pelo teatro, mas foi na arte da performance que encontrou sua linguagem. “Atuo em duas companhias de dança aqui de Porto Alegre, mas é através da linguagem da drag que eu me realizo mais, que eu consigo dar conta. E me sinto mais completo, eu consigo exercer através da Cassandra. Eu consigo realizar mais, eu consigo fazer mais, eu consigo dizer mais o que eu quero através da drag, do que através de outras linguagens”, revela. 

A drag queen sarah Vika (Foto: Woorkroom/divulgação)

Sarah Vika, nascida na era RuPaul, brilha como as suas “deusas” do pop, Beyoncé e Britney, por quem é influenciada. Criada por Rafael Mello, atualmente  se configura como uma das mais influentes da cena drag: já venceu o prêmio SuperBonita, organizado pelo canal GNT, e foi finalista do prêmio Avon. Para o artista, fazer drag pulverizou os seus lados mais efêmeros e criou uma linha tênue entre a identidade civil e drag. “Acho que isso é um sentimento meio comum a quase todas as drags que eu conheço. Quando nós estamos no nosso personagem, acessamos um lado de confiança de sensibilidade, de autoestima que muitas vezes fora do personagem a gente não tem”, afirma. Rafael também diz que performando Sarah descobriu que poderia ser uma pessoa extrovertida, mais comunicativa. “Eu poderia ser uma pessoa com quem as pessoas iam conseguir se conectar de alguma forma, e aos poucos esse seria o plano fundamental pra eu conseguir trazer esses frascos pra minha personalidade enquanto Rafael”, explica. 

Correndo atrás do sonho, Matheus Wathier, diretor e ator, saiu do interior para capital e, cursando Direção Teatral na Ufrgs, percebeu que o Teatro foi o percurso para seu lado mais artístico. Juntando um intercâmbio para Granada na Espanha com RuPaul’s Drag Race, a drag Gabi Granada veio à vida “Gabi Granada se tornou a personagem de Matheus, a persona que potencializa toda sua expressão artística, que brinca com questionamentos e convenções sociais. Foi na Granada que encontrei meu caminho dentro da arte, minha forma e linguagem para expressar minhas inquietações e também entreter o público!”, diz.

Antes mesmo de RuPaul ser um parâmetro para o mundo drag, existiam outras formas de entender a cultura. “Na época, lá nos anos noventa, a gente não se chamava Drag Queen, a gente ia na boate e assistia show de transformista. Às vezes eram também pessoas trans, mulheres trans que faziam shows, travestis”, conta Cassandra.

O reinventar no virtual

Festical POA in Drag, co-organizado por Cassandra (Foto: divulgação)

A arte de performar, sobretudo, se dá através do público. Porque é com ele e para ele que as artistas crescem e passam a sua essência de encantar, divertir e entreter. É a possibilidade de fazer com que as pessoas saiam um pouco da realidade permitindo voar e sonhar. “O mais importante é entreter, é causar o encantamento,por alguns minutos esquecer dos problemas, das coisas que tem no dia a dia e fica naquele momento de ilusão”, expressa Sarah Vika. 

A pandemia transformou a realidade da performance. O retorno do público, sempre tão esperado em cada apresentação, quase não chega. A drag Sarah compartilha a experiência: “No online, a gente tá aqui performando para a tela, o máximo que a gente tá vendo é o coraçãozinho subindo, os comentários, e eu que uso  óculos eu não consigo ler. Então, assim, isso também mudou muito. A forma como a gente consegue validar o nosso trabalho”. Foi preciso ir além, mas cada coisa a seu tempo. “Da forma que a gente seguiu, fez transformar a Arte Drag nisso: de casa, videochamadas, live no Instagram. Com a sua parede branca no fundo, põe um tecido lá colado com durex, uma luz batida na parede para fazer um cenário. E a gente teve que entender primeiro que financeiramente isso não resolve,” divide Sarah.

Os recursos da lei Aldir Blanc possibilitaram novos eventos e possibilidades. Em abril, o Festival POA in Drag  apresentou uma programação virtual com painéis e espetáculos organizada por cinco artistas, incluindo Cassandra. Foi nos editais emergenciais que saiu um respiro e Gabi Granada pôde se sentir um pouco mais forte para seguir. “Assim estamos tentando sobreviver, alguns poucos editais e concursos virtuais estão gerando lucro, mas muito pouco. Não temos muitas perspectivas, mas a arte é poderosa e já sobreviveu a tempos ainda mais difíceis, então estamos correndo contra o tempo, como sempre fizemos, em performances virtuais, lives de maquiagem, humor, produção de conteúdo audiovisual. As drags estão se reinventando de diversas formas para não deixarem sua arte perecer, coisa que antes já acontecia, mas agora de forma radical”, avisa.

Bar Workroom oferece delivery purpurinado na pandemia (Luís Henrique Fontana/ Divulgação)

Com toda essa inspiração, a Workroom nasceu em 13 de abril de 2017 como o primeiro bar com a temática drag de Porto Alegre. O idealizador do espaço, Rodrigo Krás Borges, conta que o conceito também foi impulsionado pela pouca inclusão dessa arte. “Percebi que existem poucos lugares que dão espaço para artistas drag. Por curtir a gente acaba indo só em festas e ficava em pé até a madrugada. E isso  lá fora tanto nos Estados Unidos e Europa é uma prática muito comum de estar comendo, subindo um drink, comendo uma pizza e um hambúrguer sentado bem próximo da artista, é algo bem interessante. Percebi que era uma possibilidade de mercado e de um projeto que fizesse sentido com a questão social que é o meu forte”, afirma. O cast do bar tem mais de trinta drags locais e do interior do Estado. 

O espaço assumidamente LGBTQI+ recebe também muitas mulheres cis hetéro que gostam da arte. “O bar é aberto a todas as pessoas livres de preconceito”, diz Rodrigo. E, para a inclusão, o proprietário se preocupa na hora da contratação. “A gente emprega na maioria pessoas LGBTI, pessoas trans, as que têm pouco acesso ao mercado de trabalho e a gente tem diversas parcerias e ações sociais com ONG ‘s aqui da cidade que tem essa pauta muito forte”, explica.

No cenário pandêmico, o bar que celebra a diversidade precisou se reinventar para não perder a cena. “Somos um dos segmentos mais afetados economicamente, pois ficamos impossibilitados de abrir e nosso faturamento reduziu drasticamente, e isso resultou em dívidas e pagamentos não executados”. E, como virou necessidade, o virtual teve que se tornar presente: os proprietários criaram um site e entraram nos aplicativos de delivery para manter o bar. “Tivemos que nos readaptar completamente”, diz Rodrigo. No site são vendidos alimentos, mas também produtos com carteiras personalizadas. 

Contra o preconceito

Nilton revela sobre a experiência de muito cedo ter que lidar com o preconceito. “Nós  somos o primeiro alvo do preconceito, e eu acho que era isso que acontecia na minha infância. Eu era o alvo perfeito porque estava no meu corpo, estava em mim. Bastava me olhar pra saber que eu era LGBT, pra saber que eu era uma pessoa da diversidade. E isso sempre me deixou muito exposto e eu nunca tive nenhum tipo de proteção”.

Aqueles que enfrentam a dor na sociedade muitas vezes esperam ser acolhidos em casa, e o pior é quando esse apoio não vem. “No meu caso, o mais marcante foi em família mesmo. Me assumir um menino gay foi o acontecimento mais doloroso e desgastante, um dos piores que vivi. Nós não devíamos ter que reafirmar quem somos e quem amamos, essa não devia ser nossa maior preocupação”, conta Matheus, que escolheu o combate. “Ser gay é, sobretudo, um ato político, então eu escolhi bater de frente com quem discorda. E certamente as drag queens me ensinaram grande parte disso”.

O combate aliado a uma postura de “enxergar da melhor forma possível” pode ser a melhor arma para se defender, concorda Rafael. Para ele, o otimismo pode se revelar como reflexão e trazer mudanças. “Preconceito de uma forma muito otimista. Esse preconceito acontece, se ele me atinge, ele é pesado, ele traz sofrimento, mas eu tenho como enfrentá-lo e eu tenho como mudar essa visão. Eu tenho como conseguir fazer com que as pessoas reflitam e entendam que não é isso que ela faz, reflete. 

É na identidade que se encontra a resistência

Cena drag em Porto Alegre tem histórico de luta e resistencia (Workroom/divulgação)

A questão da identidade é importante no momento de criação artística. Além disso, as artistas querem deixar sua marca por onde passam. Cassandra Calabouço, Sarah Vika e Gabi Granada, com suas singularidades, compartilham dessa experiência. Calabouço afirma: “a identidade da Cassandra é uma drag divertida, é uma drag  que trabalha com humor, que trabalha com alegria e com a arte e que acredita que é possível viver essa experiência montada”. Para Nilton, a experiência é muito libertadora. ”Quando a gente vai e vive uma persona, quando a gente sai da gente e dá vida a um personagem, que existem nossas partes que dão verdade pra esse processo”, completa. 

Ele revela mais sobre o processo de descoberta: “Quando a gente abandona o personagem, a persona e volta pra nossa vida, a gente se vê de outra forma, a gente descobre que a gente consegue fazer coisas que a gente nem imaginava, que a gente nem sabia que desejava, a gente consegue muita coisa, é muito libertador, é muito terapêutico em certa medida e é muito revelador, a gente conhece facetas da gente mesmo, que a gente até então desconhecia”, conta.

A drag queen Gabi Granada (Foto: divulgação)

Resistir, lutar e respirar. Mais do que fazer um show, Sarah Vika sabe reconhecer qual recado quer passar. “Ela tem todo esse mundo lúdico ao redor dela, toda essa fantasia, essa brincadeira, esse encantamento. Muitas vezes, eu acho que a drag quer passar um recado muito importante fazendo algo que, muitas vezes, se não fosse dessa forma teria sido comunicado de uma forma um pouco mais brusca.”  

Gabi Granada vem do teatro e sabe muito bem a ótica de transformar o impossível em realidade mesmo que seja só nos espetáculos. Porque o importante é marcar uma reverberação para sair do óbvio. “Drag é uma arte potente na transformação da perspectiva, tanto de quem assiste quanto de quem faz. Drag pra mim é isto: revolucionar, virar o mundo de cabeça pra baixo e perguntar “por que não?”

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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