Thaís Seganfredo
Foto: Carlos Stein
As obras do acervo do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS) agora podem ser conhecidas ao alcance de um clique. Na semana passada, foi lançado o catálogo que identifica as mais de 1800 obras do museu estadual, resultado do esforço de um time de pesquisadores. O projeto foi financiado com recursos de um edital estadual da Lei Aldir Blanc, através da Associação de Amigos do MACRS, e a publicação pode ser conferida neste link.
Para marcar o lançamento, a equipe selecionou 70 artistas cujas obras estão em exposição até 22 de agosto no museu, com nomes de diferentes vivências, como Carlos Vergara, Romy Pocztaruk, Yuri Firmeza, Nuno Ramos e Vera Chaves Barcellos. “São obras que rompem com a visualidade modernista preponderante por um longo período, criando fissuras no sistema da arte local, em suas tendências conservadoras. Ao sugerir proximidades entre as obras apresentadas, coloca-se para o espectador o desafio de descobrir relações e criar seus próprios caminhos de fruição, pensando as obras em sua época de produção, sua ousadia, as novidades que introduzem”, explica a pesquisadora e curadora Maria Amélia Bulhões. O MACRS está localizado no 6º andar da Casa de Cultura Mario Quintana (nas galerias Xico Stockinger e Sotero Cosme), em Porto Alegre.
A catalogação revelou uma predominância de artistas do Rio Grande do Sul (463), embora exista uma presença considerável de profissionais de São Paulo (112) e Rio de Janeiro (27). Obras de latinos, como León Ferrari, Marta Minujin e Gonzalo Mezza também figuram no acervo. Entre os artistas mais presentes no MACRS estão Luiz Carlos Felizardo (80), Marta Loguércio (46), Xico Stockinger (18), Maria Tomaselli (22) e Teresa Poester (14), um resultado das doações feitas diretamente dos artistas ao museu. Segundo a pesquisa, do total de 1.843 obras, 1.370 foram adquiridas por doação. Com relação às linguagens artísticas, o estudo mostrou que formatos como a performance em vídeo e a arte digital passaram recentemente a ser mais incorporados ao acervo, que atualmente é composto majoritariamente por fotografias, gravuras e desenhos.
Na avaliação da pesquisadora Maria Amélia Bulhões, que liderou o estudo, chama a atenção a forte presença da paisagem como temática, mas a partir de olhares bem distantes da tradicional atitude contemplativa. “Esses novos enfoques perdem o caráter contemplativo da tradição paisagística para colocar em cena olhares mais poéticos e instigantes, propondo fragmentações, distorções e outras abordagens, como se o artista conduzisse nosso olhar por lugares desconhecidos de nosso próprio entorno”, escreve a pesquisadora no texto de apresentação da publicação. Também destacam-se temas sociais com enfoque nas mulheres e nos negros, bastante pautados pela questão da corporalidade.
Como explica Bulhões, a arte contemporânea começou a ganhar força no Rio Grande do Sul a partir do final dos anos 1960, na esteira de movimentos como a Arte Pop e a Nova Figuração e a partir do protagonismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nos anos seguintes, coletivos de artistas como o Nervo Óptico e o KVHR propuseram uma maior liberdade de experimentação na arte, assumindo a vanguarda da produção no estado.
A partir da década de 1990, “o MACRS, mesmo sem uma sede própria, sem reserva técnica e pessoal permanente, conseguiu abrir espaço para grandes exposições, trazendo artistas consagrados no âmbito nacional e oferecendo aos artistas locais a possibilidade de participar em um leque de mostras bastante amplo e diversificado, dinamizando a cena de arte e, através dessa política, construindo seu acervo”, conta a pesquisadora. “A Bienal Mercosul, com sua magnitude e verbas disponibilizadas, fez fervilhar o pacato e provinciano meio de arte local”, complementa. Esse cenário abriu espaço para que a arte contemporânea se tornasse hegemônica no sistema de arte do estado a partir dos anos 2000, com o surgimento de diversas galerias, instituições e coletivos.
Este movimento, pelo menos de acordo como o indicativo da catalogação do museu, ficou restrito a artistas brancos e, em sua maioria, homens. Dos 928 artistas presentes no acervo, 426 são mulheres cis (para 471 homens cis), 11 são negros e negras (como Rommulo Conceição e Maria Lídia Magliani, por exemplo), 3 são transgêneros e 2 são indígenas. Vale lembrar que, de acordo com pesquisa da curadora e pesquisadora Izis Abreu, na soma das obras de todos os acervos públicos presentes no estado, 2.143 artistas são brancos e 34 são negros.
Segundo Bulhões, a falta de estruturação e incentivo da sociedade e do mercado ao sistema de arte no Rio Grande do Sul prejudica avanços mais céleres no sistema. “É possível perceber que a crise dos grandes relatos que sustentam a história da arte ocidental, de base europeia, abriu possibilidades para que os artistas criem micronarrativas voltadas aos seus próprios universos e a suas histórias, para dar conta das múltiplas subjetividades nos diferentes mundos dispersos pelo globo terrestre. Entretanto, nas regiões periféricas como o Rio Grande do Sul, a situação da arte contemporânea é problemática e complexa, uma vez que o ecossistema local é rarefeito, não tem uma forte presença social, nem um sólido mercado e carece de instituições consolidadas que apoiem os artistas. Sua estrutura não tem muita sustentação na sociedade, pois a arte é considerada, por muitos, um signo de status que não alcança o imaginário da maioria das pessoas”, avalia. Nesse sentido, o conhecimento do acervo é fundamental para embasar ações que possam ampliar a diversidade, já que o mapeamento possibilitará novas pesquisas, olhares e possibilidades sobre o acervo do MACRS, um dos primeiros museus dedicados à arte contemporânea fora do eixo Rio-SP.
Na avaliação da coordenadora do projeto, Vera Pellini, além de abrir caminhos para pesquisa, o trabalho “possibilitará ainda o crescimento e o desenvolvimento da economia da cultura, uma vez que a o catálogo valorizará as obras dos artistas em relação ao mercado de arte, pois a presença das mesmas em um acervo museológico contribui para a legitimação do trabalho do artista, trazendo reconhecimento e possibilitando que sejam conhecidos com profundidade, tanto pela sociedade em geral, como por galeristas, colecionadores e investidores de arte. Será um fator favorável para a expansão do setor, ampliação da cadeia produtiva setorial, por intervenção de novos projetos expositivos e postos de trabalho que engrandecerão a arte e a cultura no Rio Grande do Sul.”
Em artigo publicado no catálogo, a pesquisadora Maria Amélia Bulhões faz uma análise do histórico da arte contemporânea no Rio Grande do Sul e suas implicações na formação do acervo do MACRS. Leia um trecho a seguir:
Caminhos percorridos
Maria Amélia Bulhões*
Como desenvolver este projeto que pensa o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul e seu acervo sem nos debruçarmos na compreensão de alguns aspectos da arte contemporânea? Essa arte em que todos os meios se equivalem em uma complexa convivência, possibilitando que objetos oriundos de diferentes campos sejam integrados ao circuito artístico por meio de inúmeras estratégias.
As categorias artísticas, que estiveram durante longo tempo restritas à pintura, à escultura e à arquitetura, foram ampliadas na modernidade, com a incorporação do desenho, da gravura e da fotografia. Entretanto, esse panorama se tornou muito mais diversificado, com o cruzamento de várias delas em objetos difíceis de classificar. Ao cultivar aproximações com o banal, ao substituir a obra acabada pelos documentos do processo de trabalho e ao adotar o hibridismo como proposta estética, se estabelece um novo paradigma. Os artistas buscam formas mais diretas de relacionamento com o público, com o uso de objetos e temas cotidianos. Contraditoriamente, no entanto, mesmo voltada ao envolvimento com o espectador, a arte contemporânea necessita da presença de dispositivos (ou instrumentos) de mediação, tais como a ação de monitores, textos nas paredes ou livros informativos que são colocados nos espaços expositivos. Isso porque a grande maioria das pessoas reconhece apenas os paradigmas tradicionais da arte, tendo dificuldade para compreender o que está sendo proposto no contexto contemporâneo. Evidencia-se, por parte de alguns artistas, o desejo e o esforço de sair do sistema, por considerá-lo restritivo e asfixiante para sua criatividade. Porém, ao romper com as tradições da história da arte e da estética, ao abandonar o abrigo das categorias artísticas e esgarçar os contornos de um espaço socialmente reconhecido, eles transitam entre a transgressão e a assimilação. Como diz Néstor García Canclini, “A história contemporânea da arte é uma combinação paradoxal de condutas dedicadas a afiançar a independência de um campo próprio e outras obstinadas em derrubar os limites que o separam” (CANCLINI, 2012, p. 23).
Para o desenvolvimento destas análises sobre a arte contemporânea no Rio Grande do Sul utilizo o modelo conceitual que trata essas práticas a partir de uma rede de relações, envolvendo artistas, críticos, galeristas e instituições em um complexo sistema da arte. Como essa produção é cada vez mais internacional em seus circuitos de feiras, bienais e grandes instituições, e, paradoxalmente, mais local na construção de relações com as realidades e as sociedades particulares, incorporo a ideia de Bruna Fetter sobre ecossistemas da arte:
“…uma série de sistemas da arte conectados, sobrepostos, entrecruzados,
interseccionados, que possuem diferentes escalas, localizações geográficas
e níveis de poder para interferir no próprio sistema. Assim, ao invés de pensar
em um grande sistema da arte, representado por atores do mainstream
global e afastado das realidades locais, defendo o uso corrente do termo no
plural, e sempre localizado…” (FETTER, 2018, p. 112)
É possível perceber que a crise dos grandes relatos que sustentam a história da arte ocidental, de base europeia, abriu possibilidades para que os artistas criem micronarrativas voltadas aos seus próprios universos e a suas histórias, para dar conta das múltiplas subjetividades nos diferentes mundos dispersos pelo globo terrestre. Entretanto, nas regiões periféricas como o Rio Grande do Sul, a situação da arte contemporânea é problemática e complexa, uma vez que o ecossistema local é rarefeito, não tem uma forte presença social, nem um sólido mercado e carece de instituições consolidadas que apoiem os artistas. Sua estrutura não tem muita sustentação na sociedade, pois a arte é considerada, por muitos, um signo de status que não alcança o imaginário da maioria das pessoas. Cria-se uma grande ambiguidade nas relações dos artistas contemporâneos com as diferentes instâncias deste circuito. Como seria possível criticar e subverter este frágil ecossistema local sem derrubá-lo completamente e assim deixar de ser reconhecido como artista? Essa é uma complexa equação.
Assim, gostaria de destacar que a entrada da arte contemporânea no Rio Grande do Sul deu-se de forma lenta e descontínua, iniciando na década de 1960, quando, por trás da hegemônica continuidade modernista e da formação de um sistema moderno das artes, emergiram, ocasionalmente, algumas vozes preocupadas em atualizar-se com o que se fazia nos grandes centros do País e do exterior. Irrompiam, ocasionalmente, insurreições de artistas que buscavam novos caminhos num processo de renovação. A Arte Pop e a Nova Figuração eram os movimentos que mais estimulavam a renovação que se processava no País a partir da segunda metade dos anos 1960. É interessante observar que ambos os movimentos preservavam as tendências figurativas, que sempre foram dominantes na produção local. No caso dos artistas gaúchos, não se tratava de um retorno à figuração, uma vez que essa nunca fora abandonada, mas sim uma nova forma de abordagem. Mesmo assim, em algumas oportunidades, abriu-se acirrado debate contra essas inovações, como, por exemplo, quando as influências Pop se evidenciaram na mostra 5 Artistas de Vanguarda, apresentada no MARGS, em 1965, ou em 1967, na exposição de Vera Chaves (Barcellos), na galeria do IAB e, ainda, em 1969, quando Totem de interpenetração, de Romanita Disconzi Martins, foi premiado no 4o Salão Cidade de Porto Alegre. Também participou dessa mobilização internacionalizante a artista Regina Silveira, que, em 1969, retornando de sua estada na Europa, convidou para ministrar um curso de serigrafia na Escola de Artes o artista espanhol Julio Plaza. Mais do que aspectos específicos dessa técnica, ele trouxe uma nova perspectiva de abordagem da arte, dentro dos conceitos da semiótica e do concretismo. Foram alunos desse curso, entre outros, Romanita Disconzi Martins, Vera Chaves Barcellos, Eduardo Cruz e Leo Fuhro.
Dentro dos limites institucionais do meio de arte no estado, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul constituiu-se como espaço decisivo atuante em prol de novas tendências estilísticas nos anos 1970, rompendo, de certa forma, com a orientação modernista que mantivera ao longo dos anos 1960. O Salão de Artes Visuais da UFRGS, em suas quatro edições, 1970, 1973, 1975 e 1977, foi muito importante no processo de renovação e na afirmação de novas tendências, aceitando categorias até então marginalizadas, como fotografia, instalações e objetos. Neste salão participavam, principalmente, artistas gaúchos, o que deixava perceber o quanto um outro tipo de produção estava carente de espaços para se expor. Isso porque aqui não havia um apoio institucional às manifestações de vanguarda, como faziam o Museu de Arte Contemporânea, em São Paulo, e o Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. O Salão de Artes Visuais da UFRGS, contando sempre com um júri constituído, preponderantemente por críticos e artistas do centro do País, desencadeou processos de articulação da produção local com as novas tendências estéticas que se desenvolviam no cenário nacional, de forma conectada com os grandes polos internacionais.
Nesse movimento de atualização, formaram-se grupos de artistas que, um pouco à margem do circuito, mas de forma alguma em oposição completa a ele, buscavam abrir novas possibilidades de atuação. Entre eles esteve o grupo responsável pelo lançamento do periódico Nervo Óptico, cujo primeiro número apareceu em 1977. Esses artistas, a maioria deles ligada ao Instituto de Artes da UFRGS, estavam interessados em um processo experimental de trabalho cuja receptividade era bastante difícil no meio local, considerando-se os escassos espaços e os padrões modernistas que aqui se impunham como dominantes. Não havia entre os artistas elementos de uma unidade formal ou conceitual, o que os unia era o desejo de encontrar na arte um espaço de liberdade, com possibilidades de experimentação, adotando diversos procedimentos técnicos e negando uma concepção da obra como objeto de mercado. O grupo manteve uma intensa atuação, publicando treze números de seu periódico (com uma tiragem de 3 mil exemplares), distribuídos gratuitamente para críticos e artistas locais, de outros estados e mesmo de outros países. Outro grupo, o KVHR, que também surgiu naquela época, era caracterizado por uma produção calcada na problemática das relações do indivíduo com a sociedade de massas, com as condições de vida nas grandes cidades e com as transformações que se impunham na visualidade tradicional. O grupo se aproximava da pop arte, assumia os ícones da indústria cultural, fazendo desses seus temas de reflexão e utilizando, além do desenho, novos meios, como xerox e arte postal.
Dentro deste quadro das vanguardas, foi criado em 1979 o Centro Alternativo N.O., do qual fizeram parte alguns artistas do Nervo Óptico, do KVHR e outros egressos da Escola de Artes. O referido espaço, criado intencionalmente como uma forma de buscar legitimação para a produção mais vanguardista que se produzia no estado, abrigou diversas exposições, conectando-se com o que estava ocorrendo fora daqui, pois buscavam o apoio não encontrado no ecossistema local, instituindo um contraponto à precariedade das suas instituições.
Uma grande mobilização se deu nos anos 1980, quando o projeto político autoritário, concentrador de renda, que foi responsável pelo grande desenvolvimento do mercado de arte no Brasil nos anos 1970, começou a revelar suas fissuras, inaugurando um processo de abertura política. Um importante fator mobilizador neste momento foi a movimentação popular que clamava pelas ”Diretas já”, estimulada pelo afrouxamento da ditadura militar que vigorava no País desde o golpe de 1964.
Mergulhados nessa ebulição que movimentava o País de norte a sul e de leste a oeste, com caravanas de políticos e grandes comícios, muitos jovens ousaram explorar linguagens e temas mais espontâneos, pessoais e engajados na realidade. Dentro desse contexto de enfraquecimento da repressão política e da censura emergiu uma produção mais ousada e irreverente. Esta eclosão artística veio no bojo dessas novas condições da sociedade brasileira, assim como do processo de internacionalização acelerado do meio de arte, que atualizava a produção local com os movimentos da transvanguarda italiana, da bad painting norte-americana e do neoexpressionismo alemão. Os artistas experimentaram novos caminhos através da pintura, do desenho, da gravura e da escultura, sem uma identidade formal ou conceitual, dessa maneira a Geração 80 não se configura como grupo ou movimento artístico ideologicamente coeso. Este nome surgiu como título de uma exposição, no Rio de Janeiro, que apresentou trabalhos de mais de cem jovens artistas na época, criando um alvoroço que colocava em evidência o que estava acontecendo no meio das artes naquele momento de ebulição do País. Por seu apelo linguístico o termo se popularizou dentro dessa mobilização, com uma série de exposições coletivas que propagavam ideias de ruptura e inovação, contando com o apoio de segmentos da crítica e do mercado de arte, ávidos por novidades e atualizações internacionalizadas.
O Rio Grande do Sul entrou nesta movimentação com a mostra Oi Tenta, realizada, em 1985, na Galeria Arte&Fato, recém-inaugurada. No marco desse processo de jovens artistas que retornam à pintura e inovam a arte, ocorreu, naquele momento, uma expansão do circuito artístico com uma produção variada e de mais baixo custo que atendia aos interesses do mercado de arte local, que se expandia velozmente com a criação de galerias como Cambona, Bolsa de Arte, Arte&Fato, Tina Zappoli, entre outras. Os galeristas necessitavam de obras com preços mais competitivos para desenvolver suas atividades dentro do turbilhão de inovações permanentes que se estabelecia. Além disso, surgiu uma série de novos e jovens colecionadores regionais, e os artistas que emergiram nesse período, na sua maioria, continuam ainda hoje atuantes na cena local e nacional. Nesse momento, buscando articulações internacionais, estabeleceu-se uma importante conexão com países platinos, através dos Encontros de Arte Latino-Americana (1989, 1990, 1996), promovidos pelo Instituto de Artes Visuais da Secretaria de Cultura do estado. Estes encontros trouxeram a Porto Alegre artistas e críticos como Luiz Felipe Noé, Grupo Escombros, Clemente Padin, Lacy Duarte, Tício Escobar, Nelly Richard, Justo Pastor Mellado, dando origem ao que seria a Bienal do Mercosul. O Atelier Livre da Prefeitura também se mobilizou em 1986, iniciando o Festival de Arte Cidade de Porto Alegre.
Este se realizava anualmente no mês de julho, com workshops, palestras e exposições que oportunizaram a vinda de artistas comprometidos com a arte contemporânea, como Hudinilson Jr, Tunga, Paulo Bruscky, Dudi Maia Rosa, Daniel Senise, Carlos Fajardo, Regina Silveira, entre outros. Anos de grande expansão do circuito artístico no Rio Grande do Sul, esse período preparou as mudanças que se introduziriam posteriormente. Foi na década de 1990, com a criação do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS (1991), do Museu de Arte Contemporânea (1992) e da Bienal do Mercosul (1997), que uma produção mais radical encontrou respaldo institucional para se consolidar e expandir no ecossistema da arte local.
O PPG Artes Visuais da UFRGS contribuiu enormemente para fortalecer o debate sobre arte contemporânea, bem como a reflexão dos artistas sobre seus próprios processos criativos. Sendo o terceiro mestrado e o segundo doutorado em artes visuais criado no Brasil, abriu caminho para a pesquisa em poéticas visuais no momento em que estas experiências se inauguravam no País. O Programa formou, além de artistas engajados na arte contemporânea, em seus procedimentos e estratégias, uma complexa gama de profissionais qualificados que passaram a atuar em vários espaços como curadores, montadores, galeristas, monitores, diretores de museus etc.
O MACRS, mesmo sem uma sede própria, sem reserva técnica e pessoal permanente, conseguiu abrir espaço para grandes exposições, trazendo artistas consagrados no âmbito nacional e oferecendo aos artistas locais a possibilidade de participar em um leque de mostras bastante amplo e diversificado, dinamizando a cena de arte e, através dessa política, construindo seu acervo. A Bienal Mercosul, com sua magnitude e verbas disponibilizadas, fez fervilhar o pacato e provinciano meio de arte local. Inúmeros e importantes artistas nacionais, latinos e internacionais circularam com suas obras e seus projetos, ampliando horizontes e possibilidades de trabalho para diversos profissionais da área. A cobertura de imprensa que o evento sempre obteve atuou fortemente na difusão social desta produção, formando o olhar e o gosto do público em geral.
Esta tríade institucional, PPG em Artes Visuais da UFRGS, MACRS e Bienal do Mercosul, foi fundamental para que os artistas locais realizassem novas experiências, criassem novos espaços e, também, para que outras instituições públicas ou privadas concorressem no estímulo dessas novas possibilidades.
Neste contexto, buscando fortalecer posições mais experimentais e ousadas, surgiram coletivos de artistas, com espaços próprios ou reunidos especialmente em torno de projetos, como Torreão (1993), Arte Construtora (1992) e Remetente (1998). Também se consolidou uma crítica de arte engajada nas poéticas da contemporaneidade, a maioria oriunda do PPG Artes Visuais da UFRGS, responsável por publicações e curadorias que dinamizaram a cena local. O tradicional Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS, abriu a Sala João Fahrion, destinada especialmente a jovens artistas. O mercado, que nos anos 1980 havia se aquecido bastante, nesse momento possibilita o lançamento da galeria Obra Aberta, dos artistas Vera Chaves Barcellos, Patrício Farias e Carlos Pasquetti, destinada a obras de arte contemporânea, trazendo importantes nomes internacionais, como Antoni Muntadas. Essa movimentação se expandiu para o interior do estado, onde foi criado, por exemplo, o núcleo de tecnologias digitais – Artecno, ligado à Universidade de Caxias do Sul, coordenado pela artista Diana Domingues.
Se os anos 1990 foram de consolidação prática e conceitual da arte contemporânea em termos locais, foi depois dos anos 2000 que ela se tornou hegemônica. Várias estratégias, como projetos e ateliês coletivos, locais de exposição alternativas, grupos temporários de atuação ou espaços de coworking, foram desenvolvidas. Buscavam criar alternativas para essa produção que se multiplicava, evidenciando diversos perfis, tais como as galerias Ecarta, Subterrânea e Península, Acervo independente, Planta Baja, Barraco Cultural, Casa Baka, PaxArt, Estúdio Híbrido, Projeto Areal.
Algumas instituições comprometidas com a difusão da arte contemporânea se inauguraram, como o Santander Cultural (2001), o espaço da Fundação Iberê Camargo (2008) e o Instituto Ling (2014). Estes novos lugares de arte privados, juntamente com os já existentes, públicos e privados, trouxeram importantes mostras nacionais e internacionais e abrigaram exposições de artistas locais, além de desenvolverem outras importantes atividades na difusão da arte contemporânea, como palestras e cursos, e oferecerem residências e bolsas para jovens talentos.
O PPG Artes Visuais da UFRGS, instituição básica da introdução da arte contemporânea no estado, permanece muito ativo, de forma que, a partir dele, como um rastilho de pólvora, uma produção mais comprometida com a contemporaneidade e suas rupturas se desenvolveu em cidades onde estão abrigados programas de pós-graduação em artes visuais, como Novo Hamburgo, Caxias do Sul, Pelotas, Rio Grande e Santa Maria. O Atelier Livre da Prefeitura, além de permanecer ativo na realização dos Festivais de Arte Cidade de Porto Alegre até 2016, em 2007 criou o Prêmio Açorianos de Artes Plásticas, que vem destacando artistas como Carlos Pasquetti, Walmor Corrêa, Karin Lambrecht, Gisela Waetge, além de exposições, artistas emergentes, curadorias e publicações. O mercado de arte, no entanto, em decorrência de crises na economia nacional, se reduziu bastante, permanecendo mais atuantes as galerias Arte&Fato, Gestual, Bolsa de Arte e Mamute, a trabalharem comercialmente com arte contemporânea. Dessas, a Bolsa de Arte abriu filial em São Paulo, e somente ela e a Mamute participam de feiras de arte no Brasil e no exterior. Entretanto, vários artistas estão encontrando inserção no mercado nacional, aproveitando as inúmeras oportunidades que estão se abrindo para estas práticas no País.
A produção artística no meio local, a partir dos anos 2000, evidencia diferentes concepções e formulações estéticas. A videoarte tomou grande impulso, recebendo mostras específicas e também se integrando em grandes coletivas, estimulando uma rica e criativa produção. A fotografia, que já vinha se impondo, encontrou seu espaço e se abriu para formas mais complexas, difíceis de classificar, que se impuseram de forma definitiva no panorama da arte. Mesmo a gravura, de trajetória bastante tradicional no estado, alcançou novos voos, tanto em termos técnicos como em experiências híbridas, que fogem aos processos mais conhecidos. A pintura, que sempre teve preponderância no meio local, abandonou suportes tradicionais, alçou-se no espaço, incorporou novos materiais, imbricando-se com outras categorias, como desenho e escultura. Objetos e temáticas do cotidiano adentraram os espaços consagrados da arte, com propostas bastante dessacralizantes. A escultura se desdobrou em objetos e instalações, fugindo às suas práticas consagradas no Rio Grande do Sul.
E, finalmente, a performance, possivelmente a mais radical das experiências da contemporaneidade, passou a integrar o rol das práticas artísticas, com preponderância da participação feminina, o que evidencia os engajamentos que enseja. Questões sociais de gênero e de etnias, com abordagens críticas, encontraram abrigo onde antes não eram aceitas, de forma que a diversidade, a contaminação e a inclusão passaram a ser possibilidades de pensar a realidade atual. No meio de arte local, essa movimentação não criou rupturas mais profundas, permanecendo certa resistência às produções mais ousadas que emergiram no eixo Rio/São Paulo. Assim, nas ambiguidades da arte contemporânea e na amplitude de trabalhos, é possível dizer que hoje temos no estado um ecossistema da arte, que, superando com grandes esforços suas dificuldades, procura estabelecer diálogos com a sociedade através de inúmeras experiências e estratégias.
Como comentei no início, a arte contemporânea é internacional em seus circuitos e redes de contato, mas local na construção de relações com as sociedades particulares. Neste processo, centro e periferia se transformam, tanto internamente no País como em termos do mundo como um todo. A internacionalização é um movimento contínuo do capitalismo em sua nova era, e não estamos fora dele, pois na geopolítica das artes as relações de poder entre as regiões hegemônicas e as demais são constantemente renovadas, mediadas pelos aspectos econômicos.
Nesta rede, a criatividade vai tecendo suas tramas e se articulando às conjunturas de ecossistemas de arte que também se modificam continuamente. Mesmo que a modernidade ainda permaneça como principal referência para muitos, não se trata mais de discutir se estamos lidando com arte contemporânea. No fio sutil da pluralidade e da expansão, vamos escrevendo nossa história, radical ou não, e a diversidade da produção local já é em si mesma um sintoma da contemporaneidade.
*Doutora pela USP, com Estágio Sênior nas Universidades de Paris I, Sorbonne e Universidade Politécnica de Valencia. Professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisadora 1A do CNPq e líder de Grupo de Pesquisa registrado.
Atual presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e membro do Conselho da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA).