Servidores da Cultura falam sobre dirigismo e censura ideológica do governo Bolsonaro

Ester Caetano e Thaís Seganfredo
Foto: reprodução/redes sociais

Servidores públicos ligados à secretaria especial de Cultura denunciaram de forma anônima práticas de assédio institucional que têm vivenciado desde o início da gestão Bolsonaro no governo Federal. Os profissionais detalham perseguição política e ideológica, cortes no orçamento e um crescente aparelhamento e presença de militares nas instituições culturais do país. Os relatos estão no “Relatório sobre assédio institucional nas instituições do executivo federal ligadas à pasta da Cultura”, apresentado à categoria em março pela Associação dos Servidores do Ministério da Cultura (AsMinC). O Nonada teve acesso ao documento esta semana. 

Um caso que ilustra a interferência política de Bolsonaro na área aconteceu na Fundação Nacional das Artes (Funarte), conforme relata um funcionário que trabalha com acervos. “Em duas ocasiões, eu ouvi críticas do tipo ‘porque você tem livros do Karl Marx aqui, livros socialistas? Por que você tem aqui se é uma instituição de arte?’”, contou o servidor, que sentiu como se estivesse sendo colocado “no radar” depois dos questionamentos.

Já uma servidora da Biblioteca Nacional aponta que a orientação é focar os projetos e ações no período imperial, diferentemente do que acontecia nos anos anteriores, que abria espaço para a diversidade cultural. “Quando a gente define que só isso [o período imperial] é importante, a gente acaba contrapondo, excluindo outras temáticas que também seriam representativas de vários grupos que compõem a sociedade brasileira. (…) Esse direcionamento, eu acredito que quebra com a isonomia, quebra com o que nós pretendemos no Estado democrático de direito”, relembrou. Mais de uma vez, os trabalhadores também receberam por email ações que indicam censura, incluindo vetos e proibições – os relatos não detalham sobre o que se tratavam os vetos.

Conforme os profissionais, as constantes trocas nos cargos de chefia atrapalham o andamento dos projetos, já que “todas as vezes que a gente recebe um desses indivíduos, esses indivíduos chegam com seus projetos. E aí a gente é obrigado a interromper o nosso trabalho o tempo todo”, opina uma servidora. Os relatos também falam sobre a falta de qualificação técnica de muitos indicados que chegaram aos cargos de liderança nos últimos tempos, além de uma presença cada vez maior de militares nos eventos.  “Isso dá algum indicativo do que se aproxima mais do que essa gestão que está lá acha positivo”, avalia um dos entrevistados.

Orçamentos sofreram cortes inesperados

A falta de verba nos diferentes órgãos ligados à Cultura é uma preocupação central dos servidores, que relatam cortes drásticos no orçamento – inclusive durante o andamento de projetos. “Isso se manifestou de forma trágica para o Instituto Brasileiro de Museus, com a perda de aproximadamente 10 milhões do orçamento desse ano (2020). E a gente teve, agora nos últimos três meses do ano, que fazer um corte. Inclusive verba que já estava na conta do Instituto, que já estava na conta dos museus foi retirada da ponta”, conta um profissional. Na Funarte, o orçamento foi reduzido a um terço do previamente aprovado para o ano de 2020. “Dois dias depois, esse um terço foi cortado também, a gente teve esse bloqueio”, conta outro servidor.

No relatório, servidores denunciam que a extinção do Ministério da Cultura representa problemas simbólicos e avança para o descaso com a cultura do país. “O primeiro grande passo disso foi extinguir o Ministério. Uma grande confusão  que demonstra efetivamente que o governo não está preocupado com a cultura no país”, alega um servidor da Fundação Casa de Rui Barbosa.

O documento ainda traz o quanto o assédio institucional no governo federal pode afetar as populações marginalizadas, reforçando uma política racista, diz um  funcionário da Fundação Palmares. “Este ano (2020), por exemplo, Palmares não tem sequer 40 comunidades certificadas ainda. Então, assim, o número deste ano vai ser absolutamente, ridiculamente pequeno e fora da curva histórica de certificação. A política quilombola dentro da Fundação Palmares foi totalmente escanteada”, pondera.

Dirigismo do governo já ocorre desde o início da gestão 

Desde antes de sua posse, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já havia dado mostras de que pretendia aplicar seu olhar estreito para a cultura nas políticas públicas da área. Ainda em campanha eleitoral, em 2018, publicou em uma rede social: “Queremos manter os incentivos à cultura, mas para bons artistas que agregam valor, que estão iniciando suas carreiras e não possuem estrutura”, como contamos neste editorial

Apesar das inúmeras trocas de indicados no cargo de secretário(a) especial de Cultura e também no terceiro escalão, a orientação voltada ao ufanismo patriota e à valorização do passado imperial do Brasil em detrimento de ações voltadas à diversidade cultural se manteve, como demonstram os casos de censura do edital da Ancine e de espetáculos com temas LGBTQI+ patrocinados por órgãos federais. 

Mais recentemente, o governo tem avançado no estrangulamento burocrático do setor, ao centralizar na figura do policial militar André Porciúncula (secretário de Fomento e Incentivo à Cultura) o poder de decisão sobre quais projetos podem ser aprovados ou não para captar recursos via Lei Rouanet. 

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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