Luiz Prado/Jornal da USP
Imagem: reprodução
O principal documento para se estudar Palmares, escrito no século 17, ganha pela primeira vez uma edição cuidadosa, com a transcrição dos manuscritos originais e textos inéditos do período, que ampliam as informações sobre o principal núcleo de resistência negra contra a escravidão no Brasil colônia. Trata-se de Guerra Contra Palmares: o Manuscrito de 1678 (editora Chão), organizado pelo filólogo Phablo Roberto Marchis Fachin, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Silvia Hunold Lara, historiadora e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Maior, mais extenso e mais longevo assentamento de fugitivos da escravidão do Brasil, Palmares se constituiu em um conjunto de refúgios localizados no sul da capitania de Pernambuco. Os primeiros documentos atestam sua existência no início do século 17 e seu desenvolvimento ganhou fôlego durante a ocupação holandesa do que hoje é o Nordeste do Brasil, entre 1630 e 1654. Com a expulsão dos holandeses, as autoridades pernambucanas passaram a organizar uma série de missões militares para recuperar a região, processo que se estendeu até o começo do século 18.
A obra que chega agora ao público apresenta duas versões de um documento escrito em 1678 pelo padre Antônio da Silva, nascido na Bahia, formado no Colégio dos Jesuítas e vigário da Matriz de Olinda de 1658 a 1697. Conhecido com o título Relação das Guerras Feitas aos Palmares de Pernambuco, o texto é a principal fonte dos historiadores para tratar dos Palmares. Nele, Antônio da Silva descreve a região, a organização dos mocambos, cercas ou palmares – nomes dados aos assentamentos dos fugitivos – e narra as expedições militares organizadas pelo governo de Pernambuco contra os negros. O relato chega até a derrota de Palmares e as negociações de paz realizadas em junho de 1678.
Um documento tão importante, entretanto, não estava até hoje disponível a partir de uma transcrição direta dos originais. A referência de gerações de pesquisadores, até agora, havia sido um texto publicado em 1859 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sem informações sobre sua autoria, data em que foi escrito ou a localização de seu original. Somada a ela, uma Memória sobre Palmares apareceu em 1876 na mesma Revista, relatando acontecimentos presentes em um ‘‘manuscrito de 1678’’ localizado na Biblioteca Pública de Évora, em Portugal. O original, entretanto, mais uma vez não foi procurado pelos historiadores. Esses manuscritos permaneceram esquecidos e os textos de referência, reproduzidos inclusive em coletâneas documentais, foram os de 1859 e 1876.
Foi a professora Silvia Lara quem, em 2009, encontrou no Arquivo da Torre do Tombo, em Portugal, o manuscrito em que se baseou a publicação de 1859. A comparação com o relato de Évora confirmou que a letra dos dois é a mesma e consultas a uma brochura com sermões e poemas escritos por Antônio da Silva permitiram a atribuição dos textos ao padre. Trabalhos posteriores de Silvia, já em parceria com Fachin, garantiram que o documento da Torre do Tombo é fruto de uma reelaboração do texto de Évora. As pesquisas também confirmaram a autoria de Silva.
O livro traz a transcrição dos dois manuscritos – o de Évora sendo publicado pela primeira vez –, com grafia atualizada e notas explicativas. Acompanham os textos um posfácio analítico dos organizadores e uma seleção de 14 documentos inéditos do século 17, que oferecem visões alternativas e ampliadas dos eventos apresentados nos manuscritos de 1678.
Fachin destaca a importância de uma transcrição feita diretamente dos manuscritos originais estar agora disponível ao público. ‘‘Desde o início da revelação do texto na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ele foi lido com um filtro, uma espécie de barreira. Cada vez que circulava, ele era menos conhecido. Porque ele foi usado, pela primeira vez, não para se conhecer Palmares, mas como propaganda do nacionalismo que estava em construção’’, aponta o docente. ‘‘O ponto forte deste trabalho é permitir que o texto fosse distanciado dessa série de barreiras.’’
Nesse sentido, Silvia reitera que o livro oferece recursos valiosos para quem quiser pesquisar o assunto. ‘‘Quando voltamos para o original, há uma série de pequenas alterações, muito significativas, em relação à maneira de escrever certas palavras que, no século 19, quem produziu a cópia decifrou de uma forma errada e leu ali coisas que não estão escritas’’, explica a historiadora.
Foi assim que o trabalho de paleografia, capitaneado por Fachin, permitiu a aproximação mais acertada da grafia de certas palavras. É o caso dos nomes das lideranças de Palmares, que se tornaram conhecidos com a publicação de 1859. Silvia cita o caso de Acotirene, que no manuscrito de 1678 aparece como Aca Inene. ‘‘Sabe-se pelos estudos mais recentes sobre o tráfico que mais de 80% dos cativos vinham da África Central e que eram, sobretudo, falantes do quimbundo, no qual Aca Inene faz sentido, mas Acotirene não. Mas isso, no século 19, ninguém sabia’’, comenta a docente.
A inclusão dos dois manuscritos também é importante para o estudo da evolução do texto elaborado por Antônio da Silva. De acordo com os organizadores do volume, mais de mil alterações surgem entre um documento e outro. O de Évora é caracterizado pela incompletude e se conserva avulso, como um almaço costurado. Já o da Torre do Tombo apresenta a última parte do texto e se encontra encadernado com outros documentos, reunido em uma espécie de códice.
‘‘Entre a escrita dos dois nós temos trocas, omissões de palavras e acréscimos de informações’’, conta Fachin. ‘‘É o mesmo documento, uma mesma narrativa? Sim, mas em momentos de escrita diferentes, cada uma com sua particularidade textual.’’
Com uma prosa glorificando dom Pedro de Almeida, governador de Pernambuco responsável pela ruína dos Palmares, que deixava o cargo em 1678, o manuscrito provavelmente foi usado como um instrumento do político quando de seu retorno para a metrópole, sugere Silvia.
‘‘Ele está deixando o governo em 1678 e tem muitos problemas de relacionamento com pessoas importantes da capital, tanto do ponto de vista militar quanto político e social’, comenta a professora. ‘‘Ele sabe que, voltando a Lisboa, enfrentaria problemas e imagina ter algo para apresentar. Como havia trabalhado muito para montar a expedição contra Palmares e essas tropas voltam contando vitória e com prisioneiros, dom Pedro de Almeida acha que pode levá-los para Lisboa junto com uma narrativa glorificante.’’
Não é possível, explica Silvia, afirmar se Antônio da Silva recebeu uma encomenda ou produziu sua narrativa de maneira espontânea. Contudo, sabe-se que sua influência entre os homens da governança de Pernambuco e a fama de seus sermões e obras publicadas faziam dele uma escolha natural. ‘‘Ele tinha habilidades literárias, sabia manejar a escrita, e foi reconhecido pelos bibliógrafos, posteriormente, como uma boa pena do século 17’’, conta a historiadora.
Quanto aos 14 documentos inéditos que acompanham os manuscritos, trata-se de uma produção variada, que inclui a minuta de uma reunião do Conselho Ultramarino, cartas de pedido de recompensas por serviços militares prestados nas expedições de Palmares e correspondências entre governadores e o príncipe regente. Um dos textos mais interessantes é o acordo de paz redigido em 1678 pelas autoridades de Pernambuco para ser entregue aos governantes de Palmares.
De acordo com Fachin, a presente publicação, por si só, não traz ainda respostas inéditas ou olhares diversificados para Palmares, mas abre caminho a novas pesquisas. ‘‘Isso está por ser descoberto agora, porque é a primeira vez que nós teremos contato com a interpretação do próprio autor sobre seu texto’’, explica o professor.
Silvia pontua também a relevância social e política da transcrição dos originais. ‘‘Palmares se tornou um símbolo político muito importante de luta contra a escravidão”, afirma. “Ter cuidado acadêmico com um documento que está sendo colocado para o público mais amplo abre a possibilidade de pensarmos de forma renovada a história de Palmares, que é uma grande referência histórica e política para o mundo de hoje, um mundo de destruição de instituições e solapamento de direitos. É um jeito de enfrentarmos essa ‘segunda guerra’ contra Palmares”, conclui a pesquisadora, referindo-se à dilapidação em curso do acervo da Fundação Palmares.