Thaís Seganfredo
Foto: Autorretrato, de Vincent Van Gogh
Era um dia de estreia para Bebel Barreto e o coletivo Tamanduás. Após meses de pesquisa conjunta, acolhimento mútuo e encontros pela plataforma Zoom, os dez artistas se posicionaram, cada um na sua tela, para estrear a performance. Para Bebel, no entanto, o momento também desafiava sua sanidade emocional. Com a filha no colo e o companheiro com Covid-19, internado na UTI de um hospital, a artista encontrou na coletividade a força interna que precisava para cumprir o trabalho naquele dezembro de 2020. “Eu apresentei a performance com minha filha junto e questionava como era possível fazer arte naquele momento. Mas aquilo também me sustentou, depois eu entendi que foi um grande abraço para que eu atravessasse aquele momento”, relata a artista.
Bebel é uma mulher de múltiplas vivências. Como mãe, pesquisadora, professora, companheira e artista negra, ela pesquisa o corpo feminino na dança, na performance, nas artes visuais, enquanto lida com as tarefas da casa onde mora, no Rio de Janeiro. Na pandemia, essa multiplicidade ficou exacerbada. “A pandemia é um grande puerpério, em que todo mundo está ficando mais isolado. É como se todes estivéssemos sendo convocados a viver esse puerpério de nós mesmos”, avalia a artista.
Nesse processo, a arte tem papel fundamental. Já está mais do que comprovado que consumir cultura faz bem à saúde. É o que concluiu uma pesquisa divulgada em 2019 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a partir de 900 publicações científicas sobre o tema. Segundo o estudo, “realizar atividades artísticas em situações de emergência, incluindo música, artesanato e arte do palhaço, reduziram a ansiedade, a dor e a pressão arterial, principalmente para crianças, mas também para seus pais”, por exemplo.
Mas se a arte nos salva, quem salva os artistas? Nego Joca teve de ajudar a si mesmo quando se viu mentalmente esgotado. Além de rapper, o artista também trabalha em uma agência de publicidade em Porto Alegre e reserva as horas vagas e os finais de semana para tocar sua carreira artística. “No começo da pandemia, eu estava sem regras, resolvendo coisas às 10 da noite, acordava de madrugada para trabalhar. Isso gerou uma crise de ansiedade muito forte um dia e pela primeira vez na vida pensei em me matar. Fiquei com medo de mim mesmo”, conta.
Essa experiência originou a faixa “Me Leva, Me Deixa”, do álbum Pré-História: Introdução ao Sonho de Guri Vol. II (Deluxe), lançado em 2021. São duas músicas dentro de uma mesma faixa: a primeira fala sobre o pensamento suicida; na segunda, o foco é o processo de retomada da consciência”. No mesmo álbum, aparece também a faixa “Burnout”: Extasiado, estagnado/eu tô vivo ou já morri? não to ligado/me perdi no personagem, tô vivendo no automático/em busca de um amanhã que já passou, eu to passado/ cê sabe quanto a tua hora de trampo vale/ cê sabe o quanto aguenta até que teu mundo se abale, escreveu o rapper, que melhorou e encontrou na terapia um modo de manter a saúde mental.
Todo esse acúmulo de funções se juntou também à frustração de não atingir o reconhecimento esperado depois de anos de trabalho. “Fazer arte no sul é outro rolê do que fazer arte no Rio de Janeiro. Não que seja uma maravilha, o Brasil é um país que não valoriza o artista. Mas estou aqui porque vi que tem muito mais oportunidade”, conta Nego Joca, que mora em Porto Alegre mas foi ao Rio de Janeiro promover seu trabalho na música. “Então este álbum fala muito sobre o que é ser um artista preto no sul do Brasil e sobre minhas frustrações, fala muito sobre saúde mental de forma indireta. Era pra ser meu último disco no rap, mas com o retorno que deu, consegui continuar”, completa.
Especialista em saúde do trabalhador, Jaqueline Gomes explica que esse sofrimento advindo da falta de reconhecimento é inerente à vida e que é preciso criar estratégias de prazer para além da recepção do trabalho. “Nesse sentido, o acompanhamento psicológico é fundamental”, avalia a psicóloga e primeira mulher negra e trans a concluir o doutorado na Universidade de Brasília. Flavio (Barros), ativista e psicoterapeuta com ênfase em saúde mental da população preta, concorda.
Em um país de desigualdades estruturais que atravessam questões de gênero, cor e raça, a desvalorização é ainda maior para alguns trabalhadores. No caso dos artistas negros, por exemplo, o racismo acaba intervindo até mesmo no seu processo de criação, explica Flavio. “Há uma hipervalorização dos artistas brancos, e o artista negro percebe isso em sua própria trajetória. Então essa subjetividade vem com uma predisposição para doenças como a ansiedade. O mais primordial é sempre estar cuidando da saúde mental, porque é possível que esse reconhecimento não venha. Vivemos em um país em que a produção cultural não é valorizada, é secundarizada”, diz.
Pandemia e insegurança financeira
Outro fator que pode agravar os problemas relacionados à saúde mental dos artistas é a falta de periodicidade na rotina de trabalho. Como grande parte da classe trabalha por projetos, muitas vezes há uma jornada extensa de trabalho que logo dá lugar a um vazio quando o show, espetáculo ou festival é concluído. Para a psicóloga Jaqueline Gomes, “essa situação de insegurança, de não ter uma renda e de estar a todo momento atento e alerta, acaba gerando um estresse grande e uma ansiedade”. Ela explica que o trabalhador precisa se programar para se adaptar a essa rotina e estar pronto para receber dinheiro em um período e nada em outro.
Desde o início da pandemia de Covid-19, muitos quadros de doenças relacionadas à saúde mental têm aparecido, segundo entidades de classe. Presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos e Diversões do Estado de São Paulo, Dorberto Carvalho relata que o sindicato tem recebido inúmeros relatos de casos de depressão e pânico entre os artistas. “ O Sated tem parceria com uma universidade em São Paulo, e ainda por esses dias os alunos do curso de psicologia começaram fazer um levantamento para os atendimentos, contudo, temos consciência que ainda é muito pouco”, conta.
“Essa tensão e esse medo constantes, dependendo da estrutura e da subjetividade, podem ser muito drásticas e muito impactantes na saúde mental do trabalhador. Existem psicopatologias que vão interferir na saúde mental desse trabalhador, como por exemplo a ansiedade, que tem sido algo muito comum nesse período pandêmico e disparou de uma maneira mega desproporcional”, detalha o psicoterapeuta Flávio Barros. A preocupação excessiva é uma das principais causas do Transtorno de Ansiedade Generalizada, que gera sintomas psíquicos, como medo constante, e físicos, como a fadiga, tensão muscular, palpitações, suor excessivo.
Para prevenir esses agravamentos, o especialista destaca que é essencial que o profissional cuide de sua saúde mental de forma constante. Terapia e meditação, por exemplo, são aliados nesse processo, além do autoconhecimento. “O artista não produz arte só para ele, a arte transborda para que outros possam bebê-la. Então ele precisa olhar para essa dinâmica dentro dele. Precisa entender a sua história, sua trajetória artística, entender suas potencialidades artísticas para que ele possa reconhecer a força dentro de si, ainda que o outro não reconheça”, conclui Flávio.