Thaís Seganfredo, Ester Caetano, Laura Galli e Rafael Gloria
De que forma a violência está presente no cotidiano dos artistas? Como os ataques se relacionam com suas vivências e identidade e como impactam seu trabalho? A equipe do Observatório de Censura à Arte, iniciativa do Nonada Jornalismo, ouviu artistas e produtores culturais que sofreram ataques ou tentativas de cerceamento à liberdade de expressão nos últimos cinco anos.
Os relatos foram colhidos primeiramente por questionário online e depois confirmados por meio de entrevistas realizadas diretamente com os participantes da pesquisa. Alguns nomes foram alterados por nomes fictícios nos casos em que o entrevistado preferiu permanecer anônimo. O pronome neutro foi adotado para se referir a artistas não-bináries.
Os resultados, analisados de forma qualitativa, indicam que são variados os tipos de ataques sofridos pelos artistas. Além de censura, há casos relatados de assédio, intervenção policial, intimações para depor em inquéritos e ainda ameaças via redes sociais. Os próprios entrevistados dão pistas sobre as causas dos ataques sofridos, ao indicarem a relação de seus trabalhos artísticos com temas como o antifascismo e a cultura LGBTQIA+. “Lancei um clipe que caiu numa página de extrema direita e acabou viralizando”, aponta um artista que recebeu ameaças de morte. “Meus eventos foram invadidos por um grupo de direita que ridicularizava meu trabalho e também fazia piada sobre as participantes dos eventos”, relata outra participante.
Os artistas também consideraram como ataque as dificuldades financeiras, burocráticas e administrativas que enfrentam junto ao poder público, o que demonstra que os obstáculos que encontram a nível institucional podem também se constituir como um entrave à liberdade de expressão. “Tenho dois projetos aprovados em editais renomados e meus projetos estão parados na Lei Rouanet, sem sair no Diário Oficial da União e com recurso em conta sem poder ser movimentado”, lamentou uma produtora. Outro entrevistado apontou o “descaso com o carnaval” como um ataque à sua arte.
A pesquisa perguntou aos artistas se já haviam praticado autocensura, ou seja, se já haviam deixado de publicar algum trabalho ou alterado a ideia original por medo de sofrerem ataques. A resposta foi “sim” para a maioria dos artistas ouvidos. “ Já deixei de postar fotos de obras minhas nas redes por medo de ser linchada virtualmente. Por depender das redes para divulgar meu trabalho e para garantir meu sustento, acabei desviando minha produção por medo”, resumiu um dos entrevistados.
Amanda (nome fictício) integra um coletivo de poesia que atua em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, com eventos nas ruas e praças da cidade. Para ocupar esses lugares, o grupo se encarrega de ter autorização da prefeitura, fazer protocolo e trabalhar em cima da legalidade, mediante a autorização. Mesmo com tudo legalizado, a artista relata violência policial nos eventos. “Já aconteceu da gente estar fazendo batalhas de rima na praça e a polícia bater, colocar todo mundo nas paredes, jogar gente no chão e mandar todo mundo embora, independentemente se tinha autorização”.
Ela conta que a abordagem policial é constante e se intensifica quando o grupo responde que existe uma autorização. Segundo Amanda, o público que vai assistir aos eventos também sofre com as represálias. “As pessoas são agredidas fisicamente, verbalmente. Eles nos humilham para que tenhamos alguma reação, e daí então eles usam a desculpa de que a gente está atrapalhando a ordem e assim poder acabar com nosso evento”. Um episódio que marcou o grupo, relatou Amanda, foi a apreensão de seus materiais de apresentação, como caixas de som, que ainda não foram recuperadas.
O descaso na esfera administrativa também foi citado pela artista como um ataque ao trabalho do coletivo. “Já aconteceu da gente ter autorização para utilizar a luz elétrica da praça. Chega no dia, simplesmente não tem o guarda para abrir a caixa de luz, não tem ninguém pra nos auxiliar, e a gente tenta ligar e ninguém atende. Então, é bem complicado”, lamentou.
Em outro caso ouvido pela equipe, uma performance envolvendo o corpo de ume artista não-binárie causou desde ataques virtuais até uma intimação na polícia. “Fui contratade pra performer no evento de reabertura do museu, e realizei essa ação que foi basicamente depilar meu corpo, com a ajuda de uma amiga. A imprensa divulgou de forma sensacionalista falando sobre o uso do corpo, recebi diversas ameaças nas redes, o MAC e a Fundação de arte de Niterói (que foi quem me contratou) divulgaram notas tirando totalmente suas responsabilidades, dizendo que não tinham nada a ver com aquilo e que não sabiam de nada. Logo depois recebi uma intimação para prestar esclarecimentos sobre atentado ao pudor”, contou Cexe à equipe.
Cexe também relata ter sofrido repressão policial quando apresentava uma performance em conjunto com outros artistas. “Foi em Brasília, também em 2016, numa ação conjunta com participantes do Enearte na Esplanada. Estávamos num cortejo performático cômico e a cavalaria veio nos impedir de continuar”, contou. Segundo Cexe, esses ataques se dão por uma não aceitação da sociedade e de instituições por expressões culturais e identitárias fora do padrão normatizante. “Está dado que no Brasil ainda é quase impossível a passagem de certos tipos de trabalhos, corpos, pensamentos, principalmente nas grandes instituições. Mesmo que haja o discurso da diversidade, é uma brecha pra terem como desculpa”, avaliou.
Ricarde (nome fictício) é artista não-binárie e relatou já ter testemunhado casos de assédio sexual contra artistas, além de também já ter sido vítima de ameaças de morte nas redes sociais. “Em 2017, lancei um clipe que caiu numa página de extrema direita e acabou viralizando. O post do vídeo, ainda em minha página, começou a receber mensagens com os dizeres ‘quantas lâmpadas elx merece?’. As lâmpadas fazem menção ao caso do jovem que recebeu lâmpadas na face em plena Avenida Paulista: isso virou um código entre essas pessoas que partilham do ódio”.
A violência, segundo elu, não se restringe ao virtual e vem de longa data. “Em 2007 tive que fugir de uma casa noturna de SP após apresentação pois descobri que o gerente da casa era skin Head e já tinha armado para que eu fosse atacado na saída do espetáculo”, contou.
Na esteira das questões de gênero, ocorre que artistas que abordam temáticas feministas também são visadas pelos ataques. Bruna Antunes trabalha ministrando oficinas de bordado feminista e conta que vários eventos virtuais que realizou nos últimos quatro anos foram invadidos. “Eram mais de 10 perfis diferentes, alguns pareciam fake, outros pareciam pessoas reais. Pedi ajuda ao meu grupo de alunas para denunciar esses perfis, bloqueei todos da minha página e dos meus eventos”, disse, ao relatar um dos episódios.
Ela contou que os ataques virtuais impactaram na sua visibilidade em uma rede social, que chegou a bani-la por uma semana devido a uma imagem que ela publicou de um bordado com a frase “fogo nos fascistas”. “Essa imagem foi compartilhada em um perfil de extremistas de direita, pedindo aos seguidores denunciassem minha postagem ao instagram como mensagem de ódio e por isso, fui penalizada com o banimento da minha conta por uma semana. Como meu trabalho na época era ministrar oficinas, com o alcance baixíssimo, tive problemas financeiros decorrentes disso”, contou. Bruna já deixou de publicar trabalhos seus por medo de repressão e ameaças.
A perseguição à liberdade artística hoje
Se na época da ditadura militar, um órgão era responsável por centralizar a censura, agora o modo de cerceamento é muito mais difuso. Mesmo que a Constituição Federal proíba qualquer tipo de censura, seja ela ideológica, artística ou política, ainda há mecanismos que restringem liberdade de expressão após a redemocratização brasileira. Segundo a professora da USP Cristina Costa, a censura é aplicada a um bem simbólico, como a palavra escrita, por exemplo. “É importante entender isso, é censura quando você impede que um público tenha acesso a uma determinada produção. Se eu proibir uma revista de circular, é censura. Se eu corto uma cena de filme, é censura, mesmo que eu deixe o filme ser apresentado”, avalia.
Para Cristina, as formas de se fazer censura e tentativas de intimidação perpassam todos diferentes agentes citados, e a forma de lidar com essa intolerância à diversidade é o que ela chama de alfabetização dos meios de comunicação. “Isso é liberdade de expressão. É instruir a população e dar meios para que ela participe do que a gente considera o espaço público da comunicação”, explica a idealizadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da USP (leia aqui a entrevista completa com a pesquisadora).
No panorama das discussões atuais sobre censura, é importante mencionar aquela realizada em âmbito digital, principalmente em redes sociais como o Facebook. Mesmo determinadas e famosas obras de arte são consideradas pornográficas. Segundo o artigo acadêmico A Censura e a abordagem do Queer nas Artes Visuais, de Guilherme Sirtoli e Cláudia Brandão, dentre as obras clássicas, alvo de censura destaca-se “A Origem do Mundo” do pintor Gustave Courbet (1819 – 1877), pioneiro do estilo realista francês. O artigo afirma que “poder-se-ia aqui entabular uma discussão acerca do ‘bom gosto’ da obra, entretanto, gostar ou não, não qualifica ninguém a transformar-se em um censor”.
Ainda que nã exista um órgão governamental que institucionalize a censura no Brasil desde 1988, nos últimos anos vêm aumentando os casos de censura e intimidação a artistas, em consonância com o momento político que o país vive. Ideias conservadoras tomam o poder, ameaçando a liberdade de expressão garantida constitucionalmente, especialmente de obras artísticas produzidas que destacam temáticas da população LGBTQIA+, negra, indígena e mulheres. O discurso conservador emerge como forma de reação ao avanço de movimentos sociais e de pautas relacionadas a essas populações, com o apoio de instituições religiosas, plataformas como o próprio Facebook e redes de difusão de notícias e informações falsas. Se o que a censura proíbe é a representação da realidade, conforme a professora Cristina, então as tentativas de silenciar obras de arte e quaisquer produções simbólicas, impedindo o acesso do público a essas produções, pode se configurar como censura.
Desde 2017, o Observatório de Censura à Arte vem documentando alguns casos emblemáticos. O primeiro deles ocorreu em setembro de 2017, o fechamento da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural, que mobilizou artistas e movimentos sociais. A mostra incluía 270 obras, que abordavam, entre os temas, questões de gênero e diversidade sexual, reunindo trabalhos de 85 artistas. A exposição já estava em cartaz e vinha atraindo um público considerável quando começou a sofrer acusações de que as obras incitavam a pedofilia, a zoofilia e a “imoralidade” por parte de sujeitos e grupos da sociedade civil como o Movimento Brasil Livre. Esses ataques consistiam principalmente em vídeos gravados em frente às obras, difamando artistas, o curador e a instituição, gerando pressão na internet a fim de provocar o fechamento. Em 10 de setembro o Santander Cultural decidiu cancelar a mostra, que estava prevista para ocorrer até outubro. A ação arbitrária do Santander Cultural gerou diversas manifestações contra a censura por parte de artistas e movimentos sociais.
Também em 2017, a performance de Wagner Schwartz, intitulada “La Bête” (O Bicho), faria parte da abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM, em São Paulo. Em cada apresentação de Schwartz, o público contava uma história criada coletivamente ao manipular o corpo nu do artista como se ele fosse uma das figuras geométricas com dobradiças de Lygia Clark. Alguns dias depois de uma das performances, um vídeo viralizou. Nele, uma mulher e sua filha pequena tocavam no corpo do artista, como tantas outras pessoas da plateia. Mas, recortada e tirada do contexto, a cena se tornou algo completamente diferente do que era, e Wagner foi chamado de “pedófilo” por milhões na internet. Lideranças religiosas fundamentalistas estimularam seus fiéis a condenar o artista e o museu como se eles estivessem “a serviço de Satanás”. Grupos ligados a movimentos extremistas de direita promoveram protestos diante do museu e chegaram a agredir funcionários. Wagner precisou dar depoimento na Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia e sofreu 150 ameaças de morte, numa condenação baseada em um único vídeo fora de contexto. Notícias falsas se multiplicaram na internet, inclusive de que o artista teria se matado. Wagner foi transformado em um objeto de ódio, assim como o museu que abrigou a performance, em mais um caso de intimidação através de ferramentas na internet.
O caso da Bienal do Livro em 2019 é outro que evidencia o papel central que as redes sociais manipuladas por grupos conservadores vêm cumprindo para intimidar artistas e instituições, e nesse caso com participação de agentes políticos. Na noite do dia 5 de setembro de 2019, o então prefeito do Rio de Janeiro publicou um vídeo nas redes sociais anunciando que estava determinando aos organizadores da Bienal do Livro que retirassem dos estandes o livro “Vingadores – A Cruzada das Crianças”, que continha um beijo entre dois meninos adolescentes. A Bienal reagiu afirmando que não retiraria e os livros acabaram se esgotando na manhã do dia seguinte. À tarde, fiscais da prefeitura foram à Bienal, de forma extrajudicial, com o objetivo de confiscar não só o livro citado como qualquer outro de temática LGBTQIA+, mas não encontraram mais nenhum livro com o tema. No mesmo dia, a Justiça concedeu liminar à Bienal garantindo o direito à venda dos livros.
No dia 7 de setembro, o presidente do Tribunal de Justiça do RJ suspendeu a decisão que barrava apreensões, permitindo, dessa forma, que os fiscais censurassem os livros. Os funcionários voltaram à Bienal na tarde do dia 7, mas novamente não encontraram nenhum livro para apreender. No dia 8, o STF determinou que era ilegal a apreensão dos livros. Sobre esse caso, a professora Maria Cristina Castilho Costa comenta: “A censura também pode ser política, mas é sempre arbitrária. Quando o prefeito do Rio de Janeiro foi na Bienal e tirou um livro de exibição, é uma arbitrariedade, porque o prefeito do Rio de Janeiro não tem o poder de se meter na Bienal. Por isso que é uma arbitrariedade, é um abuso de poder.”
Também em 2019, o Ministério da Cidadania decidiu cancelar um edital em andamento, que selecionaria obras para transmissão em TVs públicas. O motivo foi a presença de finalistas da linha de “diversidade de gênero”, que trazia três obras com temática LGBTQIA+: “Afronte”, “Transversais” e “Religare queer”. O anúncio foi feito após críticas de Jair Bolsonaro aos filmes via transmissão ao vivo nas redes sociais. Os filmes escolhidos como vencedores receberiam R$400 mil do Fundo Setorial do Audiovisual, principal meio de financiamento do cinema no Brasil. Após o anúncio, o então secretário de Cultura, Henrique Pires, renunciou ao cargo por não concordar com a atitude do Ministério.
A partir dos exemplos relatados, é possível perceber que a censura atualmente se apresenta de forma muito mais difusa que em outros momentos da história brasileira. Não há um órgão de governo especializado nisso, mas através de outras ferramentas grupos conservadores têm conseguido intimidar artistas e limitar a liberdade de expressão.
“Atualmente há uma correspondência muito maior entre aquilo que está sendo censurado e as questões que estão sendo tratadas na sociedade pelos movimentos sociais. Isso não havia em 1960. Naquela época, quem ia ao teatro era a burguesia, e ela era favorável a esses movimentos censórios. Apesar de toda a repercussão na mídia que esses casos têm tido, acho que não passa disso, de indignação, o sentimento de estar voltando para trás. Mas isso não vai mudar o movimento dos transexuais, não vai mudar os movimentos pela descriminalização da maconha, do aborto, etc.”, acredita Cristina Costa.
A perseguição à diversidade na arte
Nos casos recentes analisados até aqui, percebe-se uma prevalência de ataques a obras que abordam a diversidade ou que são produzidas por artistas LGBTQIA+ e pessoas negras. Obras que questionam a identidade binária e heteronormativa da sociedade, que discutem o racismo estrutural, que celebram as diferenças e que homenageiam personalidades que lutam ou lutaram contra desigualdades. A autoria, bem como as temáticas abordadas, são alvos de ataques. Num contexto de perseguição política a esses grupos, a arte também é impactada.
Em maio de 2021, a live “Roda Bixa”, do projeto Criança Viada Show, foi censurada por ordem da prefeitura de Itajaí/SC. O evento virtual envolvia uma roda de conversa sobre cultura LGBTQIA+ e havia sido contemplado por um edital municipal com recursos da Lei Aldir Blanc. A censura aconteceu depois que o secretário especial de Cultura do Governo Federal, Mário Frias, criticou o projeto em suas redes sociais. Novamente, o papel das manifestações na internet aparece com centralidade aqui, aliado à censura partindo de agentes políticos. Citando o Estatuto da Criança e do Adolescente, além da censura, a prefeitura também determinou “a imediata destituição dos membros componentes da comissão local responsável pela seleção dos projetos culturais da Lei Federal nº 14.017/2020, Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc”, conforme nota oficial. Os produtores do projeto explicaram que “Criança Viada Show é um projeto de memória e registros de cinco artistas homossexuais, que falam, em formato de podcast e vídeo, sobre suas trajetórias, vidas e existências enquanto homens LGBTQIA+. O projeto é feito por e para adultos, nunca tendo sido dito nada diferente disso na divulgação do projeto”. Ou seja, uma conclusão externa a partir do título da obra que não correspondia com o que foi realizado. A prefeitura da Itajaí também informou que pediu ao Ministério Público uma investigação contra o projeto. Conforme o artista, o município de Itajaí agiu “de forma arbitrária e improcedente, visto que os esclarecimentos poderiam ter sido pedidos e concedidos sem nenhuma necessidade legal.”
Recentemente, o memorial Nossos Passos Vêm de Longe, que homenageava mulheres negras na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, apareceu vandalizado na madrugada do dia 19 de julho de 2021. A obra é de autoria de Rodrigo Mais Alto e Kleber Black e realização da Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR). Rostos de mulheres como Mãe Beata de Yemanjá, Silvia Mendonça, Nivia Raposo, Marielle Franco e Maria Conga amanheceram pintados de branco, vandalizando a obra de arte. Os autores da censura ainda não foram identificados.
Em Ribeirão Preto, um mural de autoria do grafiteiro Áureo “Lobão” Melo amanheceu pichado em maio de 2020. O grafite, criado em 2018, homenageia a vereadora Marielle Franco, morta a tiros no mesmo ano. A pichação incluiu palavras misóginas na arte de Lobão, alterando, desta forma, o conteúdo e a estética da obra de arte. O ataque foi criticado por entidades como a OAB municipal, segundo nota divulgada à imprensa: “A mensagem pichada afronta a história dos movimentos sociais e das lutas das minorias, já que Marielle era parte significativa dos ganhos políticos de mulheres, negras e LGBTI”. O Ministério Público ainda investiga o caso.
Histórico da Censura no Brasil
A censura às artes no Brasil não começou na ditadura militar. A prática no país vem desde o período colonial, quando a circulação de livros críticos à Igreja Católica e à monarquia já era proibida. Os padres catequizadores, de maioria jesuíta, também não deixavam que os indígenas brasileiros mantivessem seus hábitos, festividades religiosas, e nem mesmo seus idiomas. Os povos africanos escravizados, por exemplo, sofreram diversos silenciamentos em relação às suas culturas, conseguindo na resistência, a partir dos quilombos e das suas religiões, manter parte de suas tradições.
A palavra censura, entretanto, se difundiu com mais força a partir do Estado Novo, instaurado por Getúlio Vargas. Neste período, que durou de 1937 a 1945, foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). O órgão era subordinado diretamente à presidência da República e regulava a censura e a propaganda oficial. Segundo a professora Cristina Castilho, pesquisadora especialista no tema da censura no País, tratava-se também de uma censura de caráter moral e político. “Não podia se falar de trabalhador, de operário, de greve, de nada disso. Uma censura sobre as questões sociais. Então, não se falava de racismo, não podia se falar de judeus. Eram esses os grandes focos da censura nessa época”, diz a professora aposentada da USP, em entrevista por vídeo..
As divisões de teatro e de cinema faziam a censura prévia, autorizando ou interditando todos os filmes e peças. A relação de obras censuradas, acompanhadas de suas características e justificativas do impedimento, era publicada no Diário Oficial. Além disso, o Governo também produziu documentários para exibição obrigatória, antes dos filmes programados pelos cinemas. Mesmo com a deposição de Getúlio Vargas e o fim do Estado Novo, em 1945, a censura nunca realmente foi embora. Naquele mesmo ano, em dezembro, foi criado o Serviço de Censura às Diversões Públicas, também conhecido como SCDP.
O cerceamento ganhou força e passou a ser uma verdadeira sombra feroz de diversos artistas a partir do golpe de 1964, que deu início a uma violenta e repressiva ditadura militar de cerca de 20 anos de duração. Com o Ato Institucional número cinco (AI-5), de dezembro de 1968, a repressão se agravou e artistas e intelectuais foram presos e precisaram deixar o país, não raro na condição de exilados.
Decretado pelo presidente Artur da Costa e Silva, o AI-5 foi o mais duro dos 17 atos institucionais decretados. Ele autorizava o presidente a fechar o Congresso por tempo indeterminado, cassar mandatos parlamentares e suspender direitos políticos de qualquer cidadão. O ato institucionalizou a repressão estatal e a prática da censura, inaugurando o período mais violento da ditadura. Mortes e torturas aconteciam com frequência com quem pensava diferente.
A prática da censura era orientada pelas diretrizes do Ministério da Justiça e da Polícia Federal, que sistematizou o trabalho da repressão, convocando servidores para avaliar as normas. Eles adequaram a estrutura ao regulamento policial, constituindo grupos para analisar as obras culturais. Foram criadas diferentes comissões para discutir questões polêmicas e examinar a legislação e, por fim, instituir um grupo de trabalho responsável por uniformizar os critérios, que assessorava as delegacias regionais no exercício da repressão. Segunda a professora Cristina, os censores também eram vigiados. “Quando eles aprovavam uma peça ou um livro que a ditadura condenava, os próprios censores começavam a ser perseguidos”, comenta.
Os números impressionam. Em dez anos de vigência do ato institucional, de acordo com estudo de Zuenir Ventura no livro 1968 – O ano que não terminou, sofreram censura cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas.
No período, diversos artistas foram obrigados a se exilar, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que ficaram conhecidos pela estética de vanguarda, o que foi considerado imoral e subversivo. Nomes como Chico Buarque, Glauber Rocha e Hélio Oiticica também saíram do Brasil. Na universidade, dezenas de professores e pesquisadores foram afastados.
A partir da segunda metade da década de 1970, profissionais e envolvidos com a cultura no Brasil se mobilizaram para resistir e protestar contra os desmandos e arbítrios da ditadura, destacando-se o “Manifesto dos 1046 intelectuais contra a censura”, entregue ao ministro da Justiça em janeiro de 1977.
Foi só um ano depois, em 13 de outubro de 1978, que o AI-5 foi derrubado. Com a posse de João Figueiredo na Presidência da República, a ditadura civil-militar deu início a um processo de abertura lenta e gradual. Foi extinta a censura oficial a livros e revistas, e se instituiu o Conselho Superior de Censura (CSC), que providenciou o reexame dos vetos às produções artístico-culturais, instaurando, inclusive, o sistema de classificação por faixa etária, que perdura até os dias atuais. Mesmo assim, é importante ressaltar que nos últimos anos de ditadura o governo continuou exercendo pressão para vetar certos temas tanto na imprensa como na cultura. Apenas após 1988, com a nova Constituição Federal, a liberdade foi assegurada aos artistas, pelo menos de forma oficial.
Observatório de Censura à Arte
Plataforma que mapeia casos recentes de censura a artistas no Brasil lançada em 2019, o Observatório de Censura à Arte atingiu a marca de 60 casos de censura desde o cancelamento da mostra Queermuseu, em Porto Alegre. O caso da mostra foi escolhido como marco temporal do projeto devido à sua repercussão. A plataforma pode ser acessada a partir do nosso site censuranaarte.nonada.com.br.
O Observatório começou a ser pensado no início de 2019 pela equipe do veículo de jornalismo cultural Nonada, que via crescerem pouco a pouco as notícias de censura a artistas em diversos cantos no Brasil. Como ter uma dimensão de quais obras, suas temáticas e localidades estão sofrendo cerceamento? Essas perguntas motivaram a criação do Observatório, que registra também quem são as pessoas e instituições responsáveis pelos atos inconstitucionais.
Enquanto na época da ditadura militar, um órgão do Estado era responsável pelo cerceamento, atualmente a censura se manifesta a partir de agentes de diversas instâncias de poder e de autoridades públicas e de empresas privadas, uma vez que a censura ocorre na esfera pública ou nela repercute. Desta forma, há casos no Observatório acionados por prefeitos, parlamentares, juízes, policiais civis e militares, gestores culturais de espaços públicos e privados, cidadãos. Os casos mais notórios são de responsabilidade de órgãos do governo Federal, que desde o início da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) vem construindo uma antipolítica cultural.
Idealizado para ser uma fonte de informações para artistas, jornalistas, pesquisadores e demais pessoas interessadas, o Observatório foi tema de matérias em alguns dos principais veículos de imprensa do país e de diversos artigos acadêmicos desde então. Quem realiza uma análise aprofundada dos casos percebe pontos que se repetem nos casos, como a constante pressão de políticos conservadores nas redes sociais pela censura de determinadas obras. Até mesmo o secretário especial de Cultura, Mário Frias, foi um desses agentes ao exigir o cancelamento de uma live com temática LGBTQIA+ em Santa Catarina ainda em 2021.
Chama a atenção também o fato de que a grande maioria dos casos de censura – cujas denúncias são jornalisticamente checadas pela equipe – compartilharem temas ou pautas sociais. As temáticas mais censuradas conforme os registros do Observatório são justamente obras LGBTQI (18 casos), seguidas de obras feministas (7 casos), antirracistas (6 casos) e com críticas ao governo Bolsonaro (7 casos). Outra informação importante é a existência de registros em todas regiões do país, de norte a sul, o que demonstra que as ações não são isoladas.
Para além desses tipos de cerceamento, os artistas também vêm sofrendo com outros tipos de violência, como processos da Justiça, investigações na Polícia Civil e detenções, caso de vários artistas do Hip-Hop, sem contar as asfixias financeiras e burocráticas ao setor cultural. O Observatório de Censura à Arte é constantemente atualizado e segue recebendo denúncias através do email observatorio@nonada.com.br