Rafael Gloria
Fotos: Francine Fischer
Se você já andou pelo parque da Redenção em Porto Alegre durante o fim de semana, provavelmente já viu um espetáculo de Gustavo Thomé, mais conhecido pela alcunha de Margarina Bailarina. Atualmente, o artista está em São Paulo trabalhando. Aliás, essa é uma das características de quem faz da rua o seu palco principal: circular por cidades, estados e países.
A conversa foi realizada por videochamada no intervalo de sua apresentação nos semáforos da capital paulista no fim do mês de abril de 2021. “Hoje me falaram algo que eu nunca tinha escutado, uma menina me disse: ‘parabéns por viver de arte no Brasil’”, desabafa Thomé. Durante a pandemia de Covid-19, ele se viu sem poder ir para as praças, parques e ruas e agora segue fazendo malabarismo para manter sua vida.
Um artista quando nasce
A história de Thomé começa em uma cidade em que nem há semáforo: na praia Rondinha Velha, no litoral norte gaúcho. O então menino acabou conhecendo a arte de circo a partir do contato que teve com um artista de rua fundamental em sua trajetória: Mantega. “Quando eu tinha 14 anos, ele foi fazer uma apresentação na escola em que a minha mãe trabalhava, e ela pediu que eu tirasse fotos. Depois, quando fui entregar as fotos, ele me contou das viagens que fazia”, conta. Nesse momento, surgiu a faísca da curiosidade, mas que só foi acesa de verdade cerca de dois anos depois, quando o artista voltou para a cidade para novas apresentações. “Eu pensei: não vou perder a chance”. E não perdeu.
Dessa vez, Mantega veio com uma trupe, e todos eram muito bons tecnicamente no malabarismo. “Como eu não conhecia nenhum malabarista, eu olhei aquilo e pensei em treinar e praticar”, diz. Thomé também foi bater na casa de Mantega para que ele o ensinasse. “Aí ele foi me dando altas dicas. Eu acordava cedo pela manhã e ia para a casa dele, ficava treinando, e ele dizia para eu repetir os mesmos movimentos que ele tantas vezes”, afirma. Mantega também foi o responsável por levá-lo pela primeira vez aos semáforos. Eles tiveram que ir até a cidade de Torres, já que na região não havia semáforo. “Eu tremia mais que vara verde, ele ri de mim até hoje por causa disso. Eu tinha 17 anos”, conta.
Mais tarde, quando Mantega ia viajar novamente, apresentou Thomé para o “pessoal de Porto Alegre” e o levou à Redenção, local onde se reúne grande parte dos artistas de rua e de circo da cidade. “Não demorou muito para a galera começar a falar coisas do tipo: ‘já que o Mantega tá indo embora, a gente fica aí com o Margarina!’”. Ele não gostou no começo, mas o apelido que fica é justamente aquele que não se gosta.
A passagem dos artistas por Rondinha mudou a sua vida. “O Mantega era artista de rua mesmo, fazia semáforo, fazia espetáculo junto com o Picapau, outro grande artista e influência forte. Foi a grande sorte da minha vida eles terem passado por aquela cidade pequenina, que era Rondinha. Foram duas vezes, a primeira para acender aquela chama, e a segunda para eu perceber que não poderia perder a chance”, completa.
Vestindo o tutu
Uma vez em Porto Alegre, Thomé começou a ampliar seus contatos e conhecer diferentes artistas e trabalhadores da cultura. “Na Redenção, tem um movimento muito antigo de circo, já deve ter uns 25 anos que o pessoal se encontra lá para treinar”, diz. Grandes artistas têm suas trajetórias atravessadas pelo parque, como o Homem-Banda e o malabarista Ivar Mangoni. “É meio impossível ser malabarista em Porto Alegre sem passar por lá. E ali tem muitos estilos diferentes: os que trabalham com malabares, os que só usam para hobby ou diversão. Tem aqueles que trabalham com eventos, com circo, com rua. Isso me deu bastante horizonte”, aponta. Nessa época, o artista entrou para o Circo Girassol, passando a ter contato com equipamentos e diferentes técnicas que complementaram seu repertório.
Outra experiência que ajudou a expandir o conhecimento foi participar da 12ª Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo, que aconteceu em São Leopoldo em 2010, mesma época em que estava terminando o Ensino Médio. Na convenção, ele acabou conhecendo uma turma de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, local com tradição no circo. “Conversando com a Chris Zanella, da Cia Terrível, ela me convidou para conhecer a cidade, então, depois, quando tive a oportunidade, fui”, lembra. Thomé morou alguns meses em São Paulo, treinando todos os dias e aperfeiçoando o espetáculo de rua que tinha montado. “Eu fiquei entre Porto Alegre e São Paulo por uns dois ou três anos nessa função, e aí o espetáculo foi criando força. Nesse tempo eu nem era bailarina ainda”, diz. Mas a metamorfose em breve iria acontecer.
A bailarina veio para o ato de Thomé em uma festa do movimento Cidade da Bicicleta, que existiu em Porto Alegre nos primeiros anos da década passada. Era um local em que se podia compartilhar peças, aprender a montar a bicicleta, sempre com uma troca constante de informações entre os ciclistas e interessados. Em 2012, aconteceu uma festa de arrecadação de fundos para tentar manter o local, e o pessoal do circo estava ajudando. “Teve um ‘Renegados’, que é um estilo de apresentação com o intuito de mostrar os números que não entraram para a apresentação nas noites de circo nas convenções”, resume.
Em sua performance, Thomé pegou uma roupa de bailarina que tinha no brechó do evento. “Aí eu me vesti e fiz uma zoeira com um amigo que tocava violino e realizei a apresentação de bailarina ali”, explica. O ato agradou, e surgiu um convite por parte das atrizes Carina Levitan e Renata Nascimento para ele repeti-la no espetáculo Parafuso do Algodão no tradicional festival de artes cênicas Porto Alegre em Cena daquele ano. “Engraçado que um tempo antes disso eu tinha visto um tutu de bailarina lindo em um brechó e vestido. Quando saí do armário, todo mundo riu. Pensei que isso funcionaria, mas guardei e nunca tinha usado”, recorda. Para ensaiar sua participação no espetáculo, ele usou as ruas. “Deu muito certo. Foi um divisor de águas, foi quando meu espetáculo começou a funcionar”, afirma.
Na rua, tudo pode acontecer
Depois do tutu, tudo mudou. Thomé conta que tem apenas um show da Bailarina e que o vai transformando constantemente, conforme sente a necessidade. Quando ele cansa de uma música, por exemplo, escolhe outra e tenta encaixar o número nela. Ele costuma também treinar nos semáforos antes, o que chama de “treino pago”. “Fico aperfeiçoando o truque e ganhando moedas. No semáforo, eu vou por duas horas e sou obrigado a repetir a sequência 60 ou 80 vezes. A repetição leva à perfeição, ou aproxima da perfeição, porque é uma busca”, reflete.
Depois que define a música, ele escolhe os truques e pensa em uma “escadinha”, uma crescente no ato, e arranja espaço para as piadas e a comunicação. “E essa parte mais final, de polimento, é mais no show mesmo, eu levo uma coisa mais crua na rua e vejo como as pessoas respondem a isso, e vou tentando entrar, sabe? E erro e volto,eternamente nesse looping”, conclui. Seu ato envolve malabares com as claves, o balé de bolas e o grande número de fogo, entre outros.
Com muitos anos de arte de rua, Thomé já passou por algumas situações complicadas, principalmente depois de começar a se vestir de bailarina. “Aí no sul eu fui chamado de ‘viado’ e de xingamentos assim muitas vezes. De gente passar pelo show, andar sem parar e ficar me xingando, isso é bem ruim”, diz. Para ele, essa é uma situação que deve ser encarada pela sociedade. “O machismo é algo muito forte no Rio Grande do Sul e em várias partes do mundo, e deve ser desconstruído. Comecei a trabalhar com a bailarina e isso me mudou bastante, sabe? Eu vinha de uma cidade pequena, preconceituosa, de pouca informação, e o circo me abriu o horizonte, eu pude conviver com pessoas muito diferentes de mim, e aprender muito com elas”, aponta. Também já aconteceu de lojistas chutarem o seu equipamento, porque estaria atrapalhando a circulação.
A polícia também já o impediu de trabalhar inúmeras vezes. “Já me pararam alegando que as pessoas estavam aplaudindo demais. Aí tem uma pessoa que mora perto e se incomoda naquela meia hora de show, liga para a polícia e ela vai lá na hora, porque o cara conhece alguém e é um nome importante, é complicado”, afirma. “Outro caso de violência foi quando uma pessoa em situação de rua passou e deu uma ‘mãozada’ no meu chapéu de dinheiro e a galera queria linchar ela e eu tive que apaziguar a situação. Eu não podia deixar o meu público bater em alguém que tá precisando de uma ajuda, e não de pauladas”, pondera.
Itinerante pela vida
Thomé conta que depois de um tempo, com o show dando certo, e mais calejado nas ruas, começou a ganhar espaço e respeito pelos seus pares. “Eu estava fazendo show na Avenida Paulista e saíram umas fotos e tinha muita gente assistindo. E lá é um lugar difícil de isso acontecer, porque de dez em dez metros tem algum artista para olhar”, conta.
Chegou o momento, então, de explorar outros lugares ainda mais distantes. Seus amigos artistas, Mantega e Picapau, estavam fora do país, convidaram Margarina para trabalhar com eles e o presentearam com uma passagem de avião. A primeira experiência foi em um local fechado, em Cabo Verde, e Thomé não se sentiu muito à vontade. “Passei três meses por lá com os guris, não deu muito certo, e eles estavam indo para Berlim. Perguntaram se queria ir junto, eu já tinha um dinheiro guardado e fui. Eu não falava inglês, não falava alemão”, conta. A dificuldade da língua atrapalhou, mas não impediu a apresentação de Margarina Bailarina.
Thomé pediu para Mantega falar em inglês todo o texto de sua apresentação e gravou no celular. Ficou ouvindo por dias até memorizar. “Decorei esses 18 minutos, tentei fazer uma vez sem decorar, foi muito ruim, fiquei depressivo, queria ir embora. Então, peguei o fone de ouvido, coloquei no celular e ficava indo para o semáforo, escutando até absorver aquelas palavras em inglês, que eu sabia mais ou menos o significado, porque eu conhecia o show”, explica.
No começo, foi difícil, e as palavras se misturaram, o que acabou agradando ao público também. “E era muito engraçado, porque eu falava coisas do tipo ‘peoples’, com o ‘s’ no final, e ‘you are ready’, e quem fala inglês vai notar que eu estava errado, mas vai entender o que eu estava falando. E tinha gente que vinha e me falava ‘não aprende inglês, por favor, que isso aí é muito bom no teu show’”, conta. Thomé ainda conseguiu participar de um festival em Berlim, onde fez mais de 90 apresentações. O artista também teve experiências na Turquia e em campos de refugiados sírios.
Nuvem pandêmica
Quando estava em um dos seus melhores momentos, inclusive com evento agendado em Portugal, surgiu um novo vírus e foi questão de tempo para que tudo girasse ao redor de uma pandemia. “No início eu pensei: eu sou artista, eu tenho que ser consciente, não posso incentivar aglomeração, vou resistir do jeito que dá. Peguei o auxílio, peguei mais uns apoios na Casa de Cultura Mario Quintana, eles estavam doando umas cestas básicas. Fui ficar na casa de um amigos, um ajudava o outro. Fiquei seis meses assim, sem sair de casa praticamente. E não deu mais. Seis meses sem dinheiro guardado, e como é que a pessoa faz?”, pergunta. Thomé resolveu ir para Florianópolis tentar fazer alguns shows de forma mais distanciada, mas logo a pandemia piorou.A saída foi fazer trabalhos no semáforo.
Mesmo com a Lei Aldir Blanc, que auxiliou muitos profissionais do setor, as coisas são complicadas. Ainda mais para quem está acostumado com a presença física do público, sendo a rua uma parte importante do processo. “No Instagram, eu tenho cerca dois mil de seguidores. Desses, 90% não me conhecem, e daí tem cem pessoas que me acompanham mais ou menos e umas dez que estavam assistindo às lives”, comenta. A primeira live que Thomé realizou ainda foi boa em termos de arrecadação. “Na rua é uma coisa, as pessoas te dão um real, dez reais, 50 quem tem mais, só que na internet tem aquelas regulações. E das pessoas que me assistem na rua, menos de um por cento me segue”, acredita.
Durante a realização dessa entrevista, Thomé esperava em seu carro por um retorno da imobiliária para o aluguel de um apartamento na capital paulista. “Meu nome não vale nada, para mim não alugam. Minha namorada colocou no nome dela.”, diz. Infelizmente, no Brasil há uma dificuldade para reconhecer a arte como profissão. Trabalhando em frente a um grande supermercado, ele conta que durante a pandemia os semáforos estão cheios de famílias com necessidades. “É ruim ficar ali disputando, primeiro porque é feia a situação em um país que nem esse. Então, eu dou umas pernadas, vou em um semáforo que não tem ninguém”, desabafa. Assim, sua rotina segue: de malabarismo em malabarismo e de semáforo em semáforo.