Glauber Cruz
Foto: Canal Brasil/reprodução
Há trinta anos, a cineasta Adélia Sampaio luta para tirar do papel um roteiro sobre a repressão na ditadura militar. O projeto, porém, sofre com a falta de incentivo financeiro. As restrições de circulação e acesso no meio audiovisual brasileiro dão os contornos de “amor maldito” à paixão de fazer cinema, dependendo de quem nutre o sentimento. No caso de Adélia, mulher e negra, amar e fazer cinema é um sinônimo de agir politicamente: levantar a voz e reivindicar o direito de apresentar o seu olhar para o mundo por meio de uma ferramenta distante e excludente.
Foi o que ela fez há 37 anos, em plena ditadura militar. Adélia Sampaio é a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem na história do cinema brasileiro. Amor Maldito, de 1984, é um filme paradigmático. Além de ser a primeira produção comandada por uma mulher negra, a obra traz para o centro da discussão o preconceito e o estigma contra a comunidade LGBTQI+, girando em torno do relacionamento entre Sueli e Fernanda, duas mulheres que pagam pelo preço de reivindicar a liberdade de seus corpos e de amar independente do que é tido como a regra, como o correto.
O filme acompanha o julgamento de Fernanda (Monique Lafond), acusada de assassinar Sueli (Wilma Oliveira), com quem era casada. Nitidamente um julgamento político, embasado na percepção de que a homossexualidade é um desvio, o tribunal vira um espaço de embate ideológico onde se confrontam, de um lado, figuras empoeiradas pelo tempo, que pregam a manutenção do imaginário preconceituoso do que é, de fato, uma família, e de outro, aquelas que levantam a bandeira de que outras formas de existir e de amar são possíveis e devem ser respeitadas.
Amor Maldito traz com contundência toda a fúria que existe contra o que é diferente do que foi imposto como certo. Alguns de seus personagens são propositalmente caricatos, de modo que espelham como se comportam esses sujeitos que vociferam e agridem até os dias de hoje. Trinta e sete anos depois, o filme segue em diálogo com o presente, mostrando como as instituições e o imaginário da sociedade brasileira seguem sob a tutela de ideias retrógradas e violentas.
O olhar e o amor de Adélia Sampaio pelo cinema presentearam a filmografia nacional com um filme moderno, que permanece como mobilizador de discussões sobre o direito de existir de maneira diversa. O pioneirismo da cineasta, porém, ainda não possui o devido conhecimento, confirmando como os demarcadores raça e gênero têm papel determinante no fazer do cinema brasileiro. Para assistir a Amor Maldito, por exemplo, basta acessar o YouTube. Porém, isso fala muito mais sobre exclusão do que sobre um acesso democrático a um material tão importante para a história do cinema nacional. A medida foi uma opção escolhida pela própria Adélia para que sua produção fosse de fato vista e, assim, reconhecida como importante que é, uma vez que não há cópias físicas disponíveis para venda e que o filme não está disponível em nenhuma plataforma de streaming.
O racismo brasileiro se apresenta também dessa forma: invisibilizando a vida e a obra de artistas que têm papel fundamental na cultura nacional. É esse racismo que é combatido toda vez que uma mulher negra reivindica o direito de contar uma história que deseja contar. Toda vez que uma Camila de Moraes, uma Sabrina Fidalgo, uma Juliana Balhego, decide nutrir o mesmo amor maldito pelo cinema que nutriu uma Adélia Sampaio, as estruturas racistas se abalam, e um novo horizonte pode ser vislumbrado.
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