Thaís Seganfredo (Nonada)
Gustavo Foster e Pedro Nakamura (Matinal Jornalismo)
Michele Rolim (Dossiê Palcos Públicos)
Com edição de Marcela Donini (Matinal Jornalismo)
Foto: Joel Vargas/PMPA
A prefeitura de Porto Alegre vem sendo alertada desde 2019 sobre inconsistências no processo licitatório e na execução do restauro da Usina do Gasômetro. O prédio, tombado como patrimônio histórico e um dos principais centros culturais do município, foi fechado há cinco anos para o início do restauro. O espaço deveria ter sido reaberto em março de 2021, mas a previsão hoje é reabri-lo só no ano que vem.
Nonada, Matinal Jornalismo e Dossiê Palcos Públicos tiveram acesso a informações que se encontram em sigilo no Sistema Eletrônico de Informações do Município e a outros documentos, que ajudam a explicar como se desencadeou o adiamento da conclusão do restauro e o acréscimo no orçamento, que poderá ser de 70%, chegando ao valor de R$ 20 milhões.
Os documentos obtidos revelam que a licitação foi feita com base em um projeto reprovado por técnicos da Prefeitura, além de erros de execução, atrasos no cronograma e avisos dos servidores sobre prováveis consequências técnicas e orçamentárias em decorrência das falhas nos projetos. As obras, que iniciaram em janeiro de 2020, começaram a ser executadas mesmo com os reiterados pedidos de correção nos projetos executivos, investigação e até de paralisação das obras por parte dos fiscais que atuam no processo.
Em março de 2019, uma arquiteta do setor de projetos prediais demonstrou preocupação diante do início do processo licitatório, momento em que é feita a previsão orçamentária da obra. “Já há previsão de entrega de orçamento final sem ter havido a primeira análise dos Projetos Elétricos e Estruturais?!?!? Me preocupa o grande risco da falta de precisão orçamentária, que certamente resultará em aditivos de valor de vulto na obra”, escreveu a servidora do Município. A mensagem foi enviada por e-mail para o gabinete da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Mobilidade (antiga SMIM, hoje Secretaria de Obras e Infraestrutura/SMOI).
Dois meses depois, novos alertas sobre futuros aditivos de valores e prazos. Um técnico da SMIM declarou encerrada a análise que estava fazendo sobre os projetos que guiariam a execução da obra e o orçamento. A decisão, validada pelo então secretário Marcelo Gazen, ocorreu diante da falta de retorno da “empresa” às questões levantadas pelos servidores quanto à ausência de dados sobre itens como o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI), a laje do Teatro Elis Regina e o projeto elétrico, além de outros itens do projeto estrutural: “Estes itens comprometerão significativamente o orçamento da obra e certamente trarão à execução dos trabalhos um sem número de necessidades de alterações na obra, gerando aditivos de valores e prazos”, apontou o servidor, sem nomear a empresa à qual se referia. O servidor diz ainda que o encerramento da análise teve o objetivo de “não comprometer o prazo para a licitação”.
O conjunto de projetos que originalmente seriam a base para a escolha da construtora e a contratação dos serviços de execução da obra é de autoria da empresa 3C Arquitetura e Urbanismo. O escritório foi contratado ainda na gestão do prefeito José Fortunati (então licenciado do PDT), quando Sebastião Melo (MDB) era vice, para elaborar um projeto completo de restauro de R$ 40 milhões. Mas o governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB), que assumiu a Prefeitura em 2017, mudou os planos, preferindo realizar uma reforma de menor porte, no valor de R$ 12,5 milhões. O recurso vem de um empréstimo do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), como parte da revitalização da Orla do Guaíba.
A pedido da gestão tucana, a 3C refez os projetos, com menos itens. Na lista estava o projeto executivo estrutural da obra, que informa as dimensões e detalhes de toda a estrutura do restauro. Este documento detalhado, no entanto, não foi aprovado pela Prefeitura. “Houve divergência com o Município com as soluções que nós apresentamos. A gente inclusive não recebeu o pagamento referente a essa etapa de elaboração”, afirma o arquiteto e sócio da 3C, Tiago Holzmann. Ainda assim, o projeto foi anexado na licitação para ser utilizado como projeto básico, ou seja, um referencial para a empresa que deveria fazer um novo projeto estrutural e executar as obras.
Escolhida por licitação no final de 2019, ainda na gestão de Nelson Marchezan Jr., a empresa responsável pela execução do restauro é o Consórcio Rac/Arquibrasil. Ficou a seu cargo também, conforme previa o edital, a elaboração do novo projeto estrutural, que deveria ser entregue até o dia 9 de março de 2020.
A respeito da inclusão do projeto executivo estrutural reprovado no edital de licitação da obra, o ex-titular da Secretaria Municipal da Cultura (SMC) Luciano Alabarse afirmou que “o projeto executivo foi aprovado pelos técnicos da SMOI e SMC” e que “não houve falhas apontadas pois todo o edital/processo foi analisado minuciosamente pelos técnicos da PGM, SMOI, SMC e DLC”. Contudo, um documento de 10 de setembro de 2019 assinado por Alabarse informa que “não houve aceite por parte dos analistas da DPV/EPO/SMIM” para o projeto executivo estrutural e que, portanto, a 3C não receberia o valor referente a esta etapa.
Secretários recusaram-se a instaurar auditoria
Com as obras já iniciadas, os servidores descobriram que não havia elementos suficientes para levar adiante o restauro do Gasômetro. Em reunião remota ocorrida no dia 13 de abril de 2020, os fiscais da obra destacaram o atraso no novo projeto executivo estrutural, cujo prazo de entrega já havia expirado um mês antes. Os técnicos também alertaram para falhas nos projetos que guiaram a licitação, como a falta de elementos da parte elétrica e da reforma do teatro Elis Regina.
Conforme a ata, na ocasião, foi solicitada uma auditoria interna para avaliar a licitação devido a “tantas inconsistências” entre projeto e obras, algumas “graves”. Contudo, os então titulares da SMC e da SMIM, Luciano Alabarse e Marcelo Gazen, respectivamente, não atenderam ao pedido dos fiscais sob o argumento de que a abertura de uma investigação “prejudicaria a obra e até mesmo poderia ser perdido o recurso junto à CAF [Corporação Andina de Fomento, financiadora da obra] ”.
Questionado sobre por que foi negado o pedido de investigação, Alabarse limitou-se a dizer que “não houve nenhuma manifestação registrada pelos fiscais referente ao processo licitatório da Usina em 2020”.
Consórcio pediu mais dinheiro para finalizar projeto
Depois de advertências por quatro atrasos, no dia 18 de maio de 2020, a Prefeitura reprovou a versão do projeto estrutural executivo elaborada agora pelo Consórcio Rac/Arquibrasil. No parecer, os técnicos listaram mais de 200 itens que deveriam ser esclarecidos ou alterados pela empresa. Uma das questões levantadas foi a ausência de uma solução para a laje do Teatro Elis Regina, que precisava de reforço. Os avaliadores também classificaram como “genéricas” informações fornecidas pelo consórcio.
Novas ampliações de prazo foram solicitadas pelo Consórcio – e desrespeitadas – e, em 27 de julho, em mais um memorando emitido pela SMIM, a secretaria informava que não tinha recebido o projeto estrutural final. Ainda sem o documento detalhado, fundamental para levar o restauro adiante, as obras continuavam na Usina. Mesmo com a pandemia de covid-19, elas nunca chegaram a paralisar por completo, como informou ao Nonada, em fevereiro de 2021, o atual secretário de Cultura, Gunter Axt.
Após as diversas alterações apresentadas pelo Consórcio, prefeitura e empresa decidiram, no segundo semestre de 2020, que o projeto executivo estrutural ainda não estava finalizado. Um documento de outubro de 2020 apresenta a análise para um pedido de aditivo do Consórcio para licitar novos itens de estrutura e do PPCI, como escadas, pilares, extintores de incêndio e inclusive a laje sobre o Teatro Elis Regina, que não havia sido contemplada no projeto anexado na licitação. Ao colunista Paulo Germano, de GZH, Melo afirmou que seriam 8 milhões a mais para concluir a obra, e que a Prefeitura analisa como justificar juridicamente o acréscimo.
O aditivo pedido pelo Consórcio e aprovado pelos fiscais previa a elaboração de um novo projeto estrutural executivo – o que já estava previsto no edital vencido pelo Consórcio. A diferença é que o trabalho não deveria mais basear-se no projeto estrutural feito pela 3C. Os fiscais aproveitaram a oportunidade para ressaltar que esse projeto, usado para a licitação apesar de não contemplar várias áreas do prédio da Usina do Gasômetro, não havia sido aprovado pelo setor – vale lembrar que, mesmo assim, a Prefeitura anexou o documento no edital.
No mesmo documento, encaminhado pela SMIM à SMC, os fiscais confirmam uma probabilidade que já havia sido levantada antes mesmo do lançamento do edital: as inconsistências técnicas do projeto usado como base para o orçamento inicial acarretariam em um prazo e preço muito maiores do que os previstos no processo licitatório.
À reportagem, Holzmann explica que os projetos usados para embasar a licitação foram elaborados em conjunto com o Município devido à redução de orçamento solicitada pela gestão Marchezan. “Fizemos o que era possível. Temos que atender a prevenção de incêndio, acessibilidade, elevadores, banheiro. Atendemos o mínimo necessário para poder reabrir. Nós recebemos críticas porque o projeto estaria ‘incompleto’, mas ele não estava incompleto, nós retiramos vários itens em comum acordo com o Município.” O arquiteto afirma ainda não ter concordado com a redução da verba.
Erros em projeto elétrico foram corrigidos um ano após descoberta
Outro núcleo da novela que se arrastou por mais de um ano foi o projeto elétrico da Usina. O problema foi detectado pela primeira vez em abril de 2020 por um fiscal de obras e engenheiro eletricista do Município, que chegou a recomendar a paralisação da obra. Mas o novo projeto elétrico só deve ser concluído mais de um ano depois. Como indicam os documentos, apenas com o projeto pronto e o novo orçamento levantado é que a Prefeitura vai saber qual será a verba necessária para a continuidade das obras.
As incongruências foram apontadas em uma troca de emails entre 7 e 13 de abril de 2020. Neste dia, o técnico enviou um email aos integrantes do Orla POA, programa da Secretaria Municipal de Gestão voltado à revitalização da orla do Guaíba. Na mensagem, o servidor aponta uma série de questionamentos sobre a falta de detalhamento do projeto elétrico e do orçamento e afirma que “o que não estiver no orçamento não vai ser executado”. O servidor também mostra preocupação com aplicações errôneas da verba licitada, diz que não vai propor aditivos em função de erros de projeto e sugere a paralisação da obra até a correção do projeto executivo e orçamento de acordo com a verba disponível especificando detalhadamente os serviços reais a serem executados”.
A recomendação era a resposta de uma série de emails em que os fiscais apontaram que o projeto elétrico existente, feito pela 3C, não continha orientações suficientes para a execução das obras. É o que explicita uma mensagem de um arquiteto da Secretaria Municipal de Cultura, na qual revela que houve um “acordo com todos os setores envolvidos” para manter o projeto sem detalhamento por receio de faltarem recursos para a execução.
Um ano depois, no dia 7 de abril de 2021, já sob a gestão de Melo, um novo email revela que o engenheiro que havia detectado o problema estava trabalhando na elaboração de um novo projeto elétrico para o restauro. A coordenadora do OrlaPOA pede ao servidor celeridade na conclusão do trabalho, já que apenas com o novo projeto em mãos a prefeitura conseguiria elaborar o novo orçamento e verificar o saldo disponível para executar as obras.
Segundo as respostas do servidor no email, o trabalho demandava muito tempo e atenção, na medida em que ele precisava refazer cálculos e erros do projeto anteriormente licitado, que estaria fora das normas permitidas. No dia 26 de abril, foi publicada uma autorização para que o engenheiro se dedicasse exclusivamente, por 40 dias, para trabalhar no projeto. À reportagem, a Prefeitura afirmou que a previsão de conclusão da última etapa do projeto elétrico é novembro deste ano – até lá, informou o Município, ainda não é possível fazer uma estimativa do novo orçamento da parte elétrica, mas o total do projeto de restauro pode chegar a 20 milhões.
Linha do tempo: Entenda o processo de restauro da Usina
Vereador quer instaurar CPIO que diz a atual gestão municipal
Os aditamentos e atrasos na obra podem virar alvo de uma CPI na Câmara de Vereadores da Capital. O vereador Pedro Ruas (PSOL) já coletou 10 assinaturas da oposição para instaurar a comissão – faltam duas para que a investigação aconteça. De acordo com reportagem do Sul21, Ruas já conta com a promessa de vereadores da base de Melo. Uma auditoria já está em curso no Tribunal de Contas do Estado. De acordo com a assessoria de imprensa, o órgão aguarda documentos que já foram solicitados à Prefeitura.
Em resposta à reportagem, a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi) afirmou que “considerando-se as necessidades de tantos aditamentos, fica evidenciado que houve erro na condução do projeto pela administração passada. Há uma IPS [Investigação Preliminar Sumária] em curso para apontar as falhas e responsabilizações. Tais falhas, afirma a nota enviada à redação, “residem no subdimensionamento quando do lançamento da licitação da obra”.
O Município afirma que a gestão atual já identificou os pontos em que o projeto está subdimensionado e está calculando o novo valor para que a obra seja concluída. Já a respeito de informações como a data em que foi aberta a sindicância para investigar o aumento de custo na obra e quais as conclusões até o momento, a Smoi encaminhou o repórter à Secretaria Municipal de Transparência e Controladoria, que se limitou a dizer que tais informações deveriam ser solicitadas via Lei de Acesso à Informação.
A Prefeitura disse ainda que, na época da elaboração do edital, em 2019, “a gestão passada optou por licitar uma obra não em função de um plano de necessidades ou de necessidades de projeto, mas, sim, em função das verbas disponíveis no financiamento da CAF, na época, aproximadamente US$ 3 milhões”. E afirmou: “o valor subestimado da obra em nada tem a ver com a RAC Engenharia, empresa que executa a obra atualmente”.
O primeiro aditivo da obra foi assinado pela atual gestão em 22 de janeiro conforme publicado no Diário Oficial. Esse acréscimo de R$ 3.130.285,76 foi necessário para consertar uma falha na laje do Teatro Elis Regina, descoberta quando a empreiteira realizou operações no local, segundo o atual secretário da Cultura, Gunter Axt. Para esclarecer esse aditivo, foi criada ainda em outubro de 2020 uma comissão de sindicância, segundo informou à redação o ex-secretário da Cultura Luciano Alabarse.
A reportagem também entrou em contato com o Consórcio Rac/Arquibrasil e com o ex-secretário da SMIM, Marcelo Gazen, que não se manifestaram até o fechamento da matéria.