Ester Caetano
Foto: Sônia Kaingang
Localizada na região norte do Rio Grande do Sul, no município de Ronda Alta, a Terra Indígena Serrinha vem sofrendo com casos de violência e assassinatos na aldeia. Indígenas Kaingang denunciam a omissão do governo Federal em relação ao arrendamento ilegal para o plantio de soja dentro do território, gerando insegurança para as 650 famílias que vivem na TI.
É em meio a este cenário que a arte pode expandir horizontes. O Ponto de Cultura Kanhgág Jãre, ligado ao Instituto Kaingang (INKA), vêm plantando sementes de resistência e busca por direitos e acesso à cultura. Foi no período pós constituição de 1988 que o Instituto se consolidou como organização que assegura os direitos de demarcação de terras, diversidade cultural linguística e uma educação específica.
Com a pandemia de covid-19, muitas famílias da TI Serrinha estão atravessando problemas de insegurança alimentar. Susana conta que a organização do INKA identificou que se agravou a fome entre as famílias. Para além da pandemia, no entanto, o problema decorre também da monocultura de soja dos arrendamentos ilegais, que utiliza terras produtivas que poderiam estar destinadas à produção de alimentos para as famílias. Muitos Kaingangs foram detidos por contestar o plantio de soja, inclusive artesãos e agentes culturais ligados ao INKA. O próprio Instituto também foi invadido, segundo os agentes de cultura.
Em nota de repúdio, o Instituto relatou o caso: “Outros agentes culturais que integraram diversos trabalhos educativos do INKA sofreram agressões físicas, tendo sua liberdade privada na aldeia Serrinha, sofrendo espancamentos nas conhecidas “cadeias”, como o indígena chamado por Gueli, Valdir Mig Carvalho, artesão kaingáng na Terra Indígena Serrinha, preso no banheiro do ginásio da aldeia”.
Composto por uma diretoria exclusivamente de mulheres Kaingang, o INKA tem como objetivo principal promover ações para manter viva a memória cultural popular relacionada com os usos, costumes e tradições da diversidade cultural brasileira. Desse modo, eles promovem arte e cultura, conservação do patrimônio histórico e artístico dos Kaingangs.
As atividades são voltadas à auto-sustentabilidade dos jovens, priorizando processos tradicionais como a produção de cerâmicas Kaingang (Kanhgág Go’or), tecelagens com grafismos específicos, além de pinturas corporais e faciais, também em constante diálogo com a arte contemporânea. A contação de histórias também se faz presente de forma a valorizar a oralidade e a ancestralidade dos saberes Kaingang.
Advogada e sócia-fundadora do INKA, Susana Kaingang revela que o principal objetivo do ponto de cultura é contribuir para a construção de um novo olhar da sociedade não indígena e para que os próprios Kaingang entendem a questão da demarcação de terras e seus direitos. “É preciso conhecer a trajetória dos povos indígenas nesses 521 anos de invasão no território nacional, porque a história oficial que consta de materiais didáticos não condiz com o nosso olhar, condiz com o olhar do colonizador. A advogada complementa que muito do trabalho do Instituto é desmistificar preconceitos. “Às vezes, a sociedade tem um olhar negativo sobre o indígena. Então, tentamos mostrar a realidade”, explica.
Partindo do tradicional e experimentando novas formas de atuação, o ponto de cultura se destaca pela presença de lideranças mulheres. Susana conta que o olhar feminino contribui para a consolidação da trajetória institucional da organização, já que a liderança feminina colabora na amplitude das atividades.
A professora e educadora Andila Kaingang é uma dessas lideranças que desencadeou a origem da preservação cultural no território. Depois de 35 anos de trabalho na FUNAI, percebeu que precisava se organizar no desenvolvimento da luta pelos direitos dos povos indígenas. Então, voltada à educação indígena e ao fortalecimento da cultura do povo Kaingáng, ela se reuniu com outras professoras também indígenas, além de profissionais da área do Direito, e criou o primeiro Instituto Kaingang do Brasil. Andila foi uma das indígenas expulsas da terra pelos arrendatários que têm promovido violência na aldeia.
Quando o INKA se constituiu como organização, não se direcionava apenas à cultura, educação e saúde, mas para as concessões de terra de plantio e resgate de rituais ancestrais. Em seguida, a organização fez parceria com o Canal Futura, momento em que a cultura entrou em foco, com um trabalho muito embasado no saber ancestral. “Quando a gente vai às nossas origens, ouvimos os mais velhos, que dão suporte para a gente saber o que é a nossa trajetória. Eles vão trazer por exemplo a contação de histórias e a questão dos grafismos Kaingang”.
Na pandemia, o ponto de cultura realizou projetos para conscientizar os jovens da TI sobre a importância de adotar medidas para prevenir a contaminação de covid-19. Além de informes sobre a doença, também foi lançado um vídeo musical que contou com a participação de crianças e adolescentes e de artistas Kaingang.
Em paralelo, são vários os projetos desenvolvidos com a temática da auto-sustentabilidade, como a criação de documentários e oficinas para o Canal Futura. Um desses trabalhos foi uma oficina sobre saúde e meio ambiente, que reuniu lideranças indígenas, professores e agentes de saúde, O trabalho resultou na criação coletiva de uma música que narra a história da história da TI Serrinha e da Lenda da criação do milho.
Através do ponto de cultura, os adolescentes Kaingang participaram de entrevistas para a série “Alô, Vídeo Escola” veiculada na emissora, que abordou temas sobre sexualidade e a passagem para a vida adulta, permitindo que eles falassem sobre as transformações e o que eles pensam disso.
Apesar das parcerias e dos diversos prêmios ao longo da trajetória, boa parte do trabalho é feito por voluntariado. “Para realizar os projetos, depende também da boa vontade do pessoal, porque como campanha de cultura precisa de projetos, quando não temos projetos com recursos, investimos com o que temos”, conta Susana.
O ponto de cultura Jãre faz parte da caminhada de artistas e artesãos Kaingang, além da formação de professores. É contribuindo com estas trajetórias que o INKA ganha força, comenta Susana, já que a história do Instituto é atravessada pela luta e resistência. “O povo Kaingang é um povo guerreiro, é um povo que historicamente, durante todo o processo de colonização, não se submeteu, não se subjugou. Eles lutam, eles são resistentes. Então tudo isso mostra muito e faz parte da trajetória e ponto de cultura”, diz a agente cultural.