Thaís Seganfredo
Foto: Vo’Arte CiM – Companhia de Dança
A performer e videoartista Estela Lapponi fundou sua própria companhia em 2005, mas foi preciso chegar a 2021 para que ela tivesse o ano mais produtivo em toda sua carreira profissional. “Já fiquei 8 meses sem ganhar um tostão”, conta a produtora, que este ano estreou uma videoperformance na Bienal Sesc de Dança, fez uma temporada de dança online e disponibilizou o curta profanAÇÃO, além de trabalhos de audiodescrição e consultorias.
“Quantos artistas com deficiência estão aí realmente conseguindo trabalhar e ganhar dinheiro do seu próprio trabalho?”, questionou Estela em conversa por videochamada. Foi com o objetivo de visibilizar esses trabalhadores da cultura que o Itaú Cultural criou o Arte e acesso – portfólio coletivo de artistas com deficiência.
O trabalho surgiu a partir da demanda dos próprios colaboradores da instituição e apresenta atualmente o portfólio de cerca de 50 artistas de diferentes regiões do país. “A gente teve uma preocupação de levantar tanto diferentes linguagens artísticas mas também em relação à pluralidade regional, racial e de gênero”, diz Valéria Tolói, gerente do Núcleo de Educação e Relacionamento da organização. Ela explica que o lançamento incluiu inicialmente os artistas que já participaram de projetos do Itaú Cultural.
A ideia é que o mapeamento seja ampliado a partir de 2022 para incluir nomes como Luciano Mallmann. Foi na escola, quando ainda era criança, que Luciano aprendeu a amar as artes cênicas. Ele participava de todas as peças do grupo de teatro do colégio, por isso não foi surpresa que começasse a trabalhar como ator profissional já aos 21 anos, na TV e nos palcos. Em 2004, quando morava no Rio de Janeiro, um acidente em uma acrobacia aérea de circo causou uma lesão medular, que o deixou de cadeira de rodas desde então. Voltou a Porto Alegre e produziu alguns espetáculos na cena gaúcha.
Ao criar o espetáculo Icaro, o artista viu sua obra ganhar asas e rodar o Brasil, um verdadeiro sucesso de bilheteria. “Eu desconheço políticas públicas que incentivem a participação de pessoas com deficiência no cenário cultural. Uma das coisas boas é que temos direito à meia entrada em teatros, shows, cinemas. Agora, uma política que facilite e incentive uma profissionalização e promova um produção cultural de artistas com deficiência eu não conheço”, contou em entrevista realizada pelo Nonada em 2019.
Valéria observa que a pesquisa pode servir para que gestores e produtores culturais pensem cada vez mais em acessibilizar suas produções. “Acredito que esse mapeamento vai auxiliar no momento de pesquisar artistas com deficiência para programação. Pode ser um lugar muito importante para instituições e grupos pesquisarem”, diz.
Mais do que serem vistos, no entanto, os artistas com deficiência enfrentam obstáculos que vão da luta contra o capacitismo no cotidiano à necessidade de políticas públicas que de fato acessibilizem seu protagonismo nas instituições culturais. Estela Lapponi exemplifica a questão compartilhando uma experiência que viveu recentemente, quando foi ao Teatro Martins Penna, em São Paulo, para realizar um trabalho. “Tem rampa para ir do estacionamento ao teatro. Mas do camarim para o palco, não tem. Quem fez essa consultoria? Pensam no público, o que é legal. Mas e o artista?”, pergunta.
A artista defende que as instituições culturais deveriam contratar profissionais da área para fornecer aos produtores serviços de acessibilidade, como intérprete de LIBRAS e audiodescrição. “Tem um monte de profissional aí para ser contratado. Acredito que o Estado é quem deve providenciar isso. Ter uma equipe rotativa em cada equipamento público, que gere emprego, interesse e não recaia sobre o produtor cultural. Por que isso tem que recair sobre nós, produtores independentes que ganham um cachezinho pra montar seu próprio trabalho?”, declara. sugerindo também que o Estado incentive teatros pequenos para que possam contar com os mesmos recursos.
O interesse na área por parte dos gestores e produtores culturais continua crescendo, mas ainda há muito a ser debatido. “Percebo um interesse em avançar principalmente depois da Lei da Inclusão brasileira, mas sempre acredito que existe muito ainda a ser debatido exaustivamente, para que a gente consiga acessibilizar mais”, pondera Valéria.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei Nº 13.146/2015) estabelece metas e prazos para assegurar direitos em diversas áreas, como saúde e educação. O capítulo IX diz respeito ao direito à cultura, esporte, turismo e lazer, com alguns prazos estabelecidos. O artigo 6o do capítulo 44 determina que “as salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência”, com prazo a ser cumprido até 2019.
O dispositivo também traz um avanço em relação à Lei Rouanet, ao determinar que “os incentivos criados por esta Lei somente serão concedidos a projetos culturais que forem disponibilizados, sempre que tecnicamente possível, também em formato acessível à pessoa com deficiência.”
Segundo dados de 2020 do Plano Nacional de Cultura, apenas 1520 museus brasileiros atendem os requisitos legais de acessibilidade, um número muito abaixo da meta estabelecida há 10 anos para 2020, que visava 3.868 museus acessíveis. A situação já é melhor no audiovisual, na medida em que 3.397 salas de cinema do país já possuem algum tipo de recurso.
Não são ações isoladas, no entanto, que trazem acessibilidade de fato à área. Estela questiona a palavra “inclusão” associada à acessibilização. “Eu comecei a perceber que, primeiro, meu corpo incomodava em cena, quando eu voltei a ser atriz. São vivências que eu venho sofrendo, violências contra esse corpo, então comecei a pensar sobre o que é inclusão. A quem ela serve de fato? Eu acho essa palavra problemática porque ela significa ‘colocar dentro de algo’, mas nós já somos parte da sociedade. Nosso corpo nunca é considerado como parte, ele é um corpo que [as pessoas] querem que se adapte à realidade da bipedia”, explica.
Outro erro comum que ocorre na área cultural quando se pensa em artistas com deficiência é a ligação com a arte terapia. “Eu não tenho nenhum problema com a arte terapia, mas o que eu faço não é arte terapia. Eu sou artista, ponto. A arteterapia é um meio de sensibilização que todo ser humano deveria fazer, não só pessoas com deficiência”, observa Estela.
Nesse sentido, a plataforma Arte e Acesso contribui para romper esse imaginário retrógrado ao divulgar o trabalho de artistas como Leticia Brasil, artista visual que trabalha com a concepção de animações, com técnicas clássicas e digitais, A Corda em Si, duo catarinense formado por um contrabaixista e uma cantora e a poeta baiana Priscilla Leonnor, mestre pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
Para contribuir de fato com o avanço na área, sugere Estela, gestores culturais podem adotar ações estruturais nos equipamentos e nos editais, como a existência de comissões e colegiados que incluam pessoas com deficiência, além de pontuações extras para artistas com deficiência, uma medida que já existe em algumas secretarias de Cultura do país. Para a artista, “é preciso pensar na distribuição da verba pública. Se está ruim para todo mundo, imagina para o artista com deficiência ou com qualquer corpo dissidente?”