Rafael Costa
Foto de capa: Câmara dos Deputados
Ainda que pareça pequeno aos olhos de quem passa correndo ao sabor da vida agitada de São Paulo, o Museu da Diversidade Sexual (MDS) se expande de uma forma imponente na única sala de 100 m², localizada na Estação República do metrô. As paredes chamam a atenção, com diversas fotos, jornais, telas com acervo digital e painéis que ambientam o visitante. O acervo conta a história do movimento LGBTQIA+ no estado e no país, trazendo o retrato do Brasil retrógrado da época de 1960 em paralelo com o Brasil da resistência e da diversidade.
O silêncio dos visitantes ao apreciar o espaço contrasta com o fundo vermelho do museu, que expressa diversas trajetórias de pessoas do movimento LGBTQIA+ ao longo dos anos – muitas delas interrompidas. Na área da imprensa, encontram-se 36 edições do Lampião, jornal que promovia ações da comunidade através de manchetes com tipografia exagerada e cores que chamavam a atenção. O museu também abre espaço para a música, trazendo álbuns de Leci Brandão, Ney Matogrosso e Les Étoiles.
O Museu da Diversidade Sexual é o primeiro museu físico da América Latina com o objetivo de preservação da memória do movimento LGBTQIA+. Entre suas atribuições, estão a pesquisa de divulgação do patrimônio histórico e cultural da comunidade LGBTQIA+ e a publicação e divulgação de documentos e depoimentos referentes à memória e à história política, econômica, cultural e social da comunidade.
Pioneira na atuação da preservação da memória LGBTQIA+, a doutora em História Rita Colaço questiona a falta de um aprofundamento do poder público à área. “Para o político de plantão, fica bem criar um departamento de diversidade ou um museu. Ele não destina verba para essa entidade ou destina uma verba irrisória. As pessoas precisam dar nó em pingo d’água para produzir um trabalho e ele fica bem na fita porque está completando a diversidade”, critica Rita.
Prestes a completar 10 anos, a instituição conta com um histórico de exposições e visitantes, mas até hoje não tem uma sede própria. Em dezembro, o governo de São Paulo anunciou um investimento de R$ 40 milhões no MDS e na criação de mais dois museus na cidade (Museu Favela e Museu de Culturas Indígenas). Durante o governo de Geraldo Alckmin, foi dito que o Museu da Diversidade Sexual teria como sede o casarão Joaquim Franco Mello, próximo à Avenida Paulista. Entretanto, com a gestão de João Dória, o espaço se transformou no Museu da Gastronomia. Essa decisão gerou críticas da comunidade LGBTQIA+. A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo não respondeu os questionamentos do Nonada.
Antes do MDS, porém, uma série de iniciativas da sociedade civil já pavimentaram o caminho da preservação da memória LGBTQIA+, com poucos recursos e muito conhecimento. Espalhadas pelo Brasil, os projetos ganham olhares, apoios e divulgam registros históricos através de um trabalho consolidado no ramo da museologia social.
Criado em 2020 por Rita, junto com outros dois cientistas da mesma linha de pesquisa, Luiz Morando e Remom Bortolozzi, o Museu Bajubá se apresenta com um grande acervo sobre identidades históricas do movimento LGBTQIA+. Totalmente virtual, a instituição se propõe a promover “a cidadania cultural da população LGBTQIA+ brasileira e a educação para a diversidade”, isso dentro do contexto de políticas que visam a inclusão e reparação por meio do patrimônio histórico. Para isso, contam com o apoio de acervos como o Arquivo Lésbico Brasileiro e o Acervo Bajubá, iniciado em 2010 e que atualmente é composto por 2500 itens, entre livros, CDs, obras de arte e documentos.
Sob a curadoria de Luiz Morando, a exposição mais recente da instituição é “Entre gritinhos e emoções – 55 anos de Miss Travesti Minas Gerais em Belo Horizonte”. O espaço virtual retrata com fotos e dados históricos sobre os primeiros eventos celebrados pelas travestis na capital mineira. “É hoje que travesti vai eleger sua miss”, retrata o destaque de uma revista antiga logo na abertura da exposição. O texto que acompanha as imagens do acervo descreve a linha do tempo a partir da década de 30, quando surge o movimento travesti. Citando registros de Madame Satã, segue até o início dos anos 90, passando por grandes ícones do movimento e repressões na época da ditadura.
Reunir o acervo, rico em fotos e informações, não é uma tarefa fácil. Luiz Morando, atual curador do Museu Bajubá de Belo Horizonte, enxerga muitas dificuldades na preservação da memória LGBTQIA+. “Acho que o maior deles é a gente encontrar acervos disponíveis e acessíveis. Porque, muitas vezes, esses acervos são de pessoas que já faleceram e que não se preocuparam em deixar registrado formalmente. Muitas vezes as famílias, parentes diretos ou indiretos e até mesmo companheiros ou companheiras não souberam dar o destino ao material”, explica.
Luiz também aponta o descaso do poder público em relação à pauta cultural, no sentido do desenvolvimento de políticas públicas de acolhimento deste acervo. “Muitas vezes os órgãos estatais, seja municipal, estadual ou federal, estão ligados a uma cultura mais tradicional e se aproximam muito do que eles acreditam ‘ser brasileiro’. O Estado não está preparado para isso, de modo geral.”
Ele relata que o conservadorismo presente nos pilares administrativos do país vai de encontro às propostas e promoção cultural ligadas à cultura LGBTQIA+. Ainda que o governo federal não veja a iniciativa do Museu Bajubá algo de acordo com a sua linha de pensamento, o museu resiste com parcerias com outras instituições. A escola de ciência da informação da Universidade Federal de Minas Gerais foi primordial durante a criação do museu. Luiz detalha também a Universidade do Rio de Janeiro (Unirio) e o grupo que existe dentro do curso de museologia, que tem uma parceria com o Bajubá, norteando seu funcionamento enquanto instituição museológica.
Coletivos acadêmicos na salvaguarda dos acervos
Além do Museu Bajubá, outros projetos ligados a cursos de museologia e propagação do conhecimento se juntam à iniciativa de preservação e cultivam a manutenção de materiais históricos do movimento. No Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) mantém o Centro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas, nomeado a partir do advogado e pioneiro do movimento gay no Brasil. O centro tem como vocação servir de “espaço de identificação, sistematização, guarda, análise e difusão” de dados sobre atividades diretamente ligadas ao ativismo LGBTQIA+ e conta com uma programação de cursos de formação e eventos.
Outro exemplo é a Rede LGBT de Memória e Museologia Social, que completa 10 anos em 2022. Fundada na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, a Rede se compromete a reconhecer a memória da comunidade do movimento. Ela é formada por iniciativas regionais e estaduais, distribuídas por suas respectivas áreas de abrangência. Indo além de uma teia de conexões entre diversas instituições, a Rede LGBT traz como intuito a geração de programas, políticas, promoção de encontros, geração de pesquisa, entre outras atividades.
Com o apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Close RS se ergue como Centro de Referência da História LGBTQI+ do Rio Grande do Sul. Coordenado pelo professor do Departamento e do PPG (Programa de Pós Graduação) em História da UFRGS e do Mestrado Profissional em Ensino de História, Benito Bisso Schmidt, o Close foi criado em 2018 a partir de um edital do CNPq. Segundo Benito, o grupo que forma o Close é bastante variado. “Muitas identidades de gênero, situação social, raça e etnias compõem o grupo. Algumas ligadas diretamente à universidade, como mestrandos, doutorandos e professores. E outras pessoas ligadas aos movimentos sociais e muitos professores e professoras da rede básica de ensino”, diz.
Logo depois da instauração do Close, a equipe já começou a pensar em projetos para desenvolver. O Close nas Fontes tem o objetivo de reunir e documentar fatos ligados à cultura LGBTQIA+ na história. Há também o Close nas Sala de Aula, que visa a publicação de um livro paradidático sobre a história do movimento LGBTQIA+ no estado, que será encaminhado à rede de educação de jovens e adultos. O material, com base no conhecimento científico, contará com fontes históricas, legislação, além de ter a participação de profissionais da área da psicologia e da pedagogia. O Close Sala de Aula, observa Benito, chamou a atenção dos professores, sendo bem recebido pela comunidade do magistério:
“Tivemos a oportunidade de fazer, ainda em 2019, uma formação de professores. Nós abrimos as vagas e, em 24 horas, tínhamos lista de espera. Isso mostra que o pessoal ainda que está em sala de aula tem dificuldade de lidar com esse tema”, comenta.
Um terceiro projeto do Close, que Benito também destaca, é o Close nas Ruas. A ideia é trabalhar com a divulgação da história LGBTQIA+ não só para o público escolar ou acadêmico, mas para o público em geral. “Não é para ficar uma coisa puramente acadêmica, restrita à universidade”, explica.
O coordenador concorda com Luiz Morando, curador do Museu Bajubá, quando fala sobre a dificuldade de encontrar registros e documentação para exposições. O professor explica que a história LGBTQIA+ no Brasil é quase inacessível. Muitas das fontes encontradas, ele relata, carregam um tom preconceituoso. “Por exemplo, a gente encontra discursos e teses médicas dos anos 60 e 70 falando em formas de tratamento. A visão policial aparece muito com esse tom pejorativo”, comenta.
Benito observa que, atualmente, a preservação da memória LGBTQIA+ se manifesta como resistência diante da onda forte do conservadorismo. Nesse sentido, manter o Close no cenário atual é como um ato de coragem. “Acho que tudo isso é quase como uma reação ao conservadorismo, tanto nacional quanto local. Esse contexto atual que era para nos abafar, acaba nos motivando”, diz
O coordenador relata que deseja fazer do projeto um centro de referência, um local onde materiais estarão disponíveis à população como uma biblioteca com registros da cultura LGBTQIA+. “É para o pessoal que está na sala de aula, para o pessoal que está fazendo TCC, mestrado, doutorado ou aqueles que não tem uma vinculação acadêmica. É um trabalho sério e colaborativo”, finaliza Benito.
Atualmente, o Close também promove ações culturais com financiamento da multa que o banco Santander levou devido à censura à exposição Queermuseu, em 2017. O Ministério Público direcionou a verba para um edital voltado a projetos de diversidade. Com os recursos, o Close está realizando um documentário sobre a história LGBTQIA+ no Rio Grande do Sul, um livro e uma exposição, que vai trazer acervo de nomes como o escritor Caio Fernando Abreu e Marcelly Malta, grande personagem na luta das pessoas trans.
História viva
Um nome em comum se propaga entre as instituições e projetos quando se trata da memória LGBTQIA+: Rita Colaço. Doutora em História, Rita é pioneira na luta pela preservação da cultura e da cidadania LGBTQIA+, principalmente quando se trata da memória do movimento.
Ela conta que o cerne do Museu Bajubá vem da construção de roteiros museológicos no centro do Rio de Janeiro. Realizando pesquisas sobre os trajetos, ela notou que existia um museu a céu aberto da comunidade LGBTQIA+ na capital carioca. “Toda nossa história estava escrita ali e a gente não valorizava. Era preciso se apropriar dessa história para ressignificar o nosso passado”, relata.
A historiadora conta que o passado da comunidade LGBTQIA+, infelizmente, está muito ligado ao registro do ‘pecado, da aberração, da imoralidade, da doença e da criminalidade’. “A gente observa que essas pessoas ocupavam o que conseguiam e sobreviviam se esgueirando nestes espaços, nas sombras, nos arbustos, nas praças… Isso acontecia porque a elas não era dado o direito de viver e fruir de sua sexualidade e seu afeto”, diz.
A partir do estudo, Rita teve a ideia de convidar as pessoas a conhecerem esses roteiros. O Museu Bajubá veio na sequência, tendo todo o acompanhamento do curso de museologia da UniRio, registro no Instituto Brasileiro de Museus e no International Council of Museums.
A falta de apoio do poder público, no entanto, continua sendo um obstáculo e até mesmo objeto de capital político, sem que haja um aprofundamento das ações, como aponta a pesquisadora. “Você vê que os direitos fundamentais da população LGBT não são tratados com a mesma seriedade quando se trata de outros segmentos sociais. E eu faço questão de demarcar muito bem que o direito ao patrimônio cultural, à memória, à história, fazem parte dos direitos fundamentais. Está na constituição e prevê punição à sua negligência e à sua não preservação”, aponta.
A historiadora também critica a prefeitura do Rio de Janeiro em relação à pauta da preservação da memória LGBTQIA+. A Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual foi criada em 2011, mas durante a gestão Crivella passou apenas a executar projetos que venham de outras pastas e não mais a planejá-los.
Rita cita o exemplo do Cabaré Casanova, boate que funcionou para o público LGBT de meados dos anos 1950 até 2008. Conhecido nacional e internacionalmente, o local contava com shows de travestis, com grandes nomes como Nelson Gonçalves e Orlando Silva na plateia.
“O coordenador executivo da diversidade sexual não demonstrou nenhum interesse em preservar o prédio. Eu passei o ano de 2021 falando com o coordenador e apresentando alternativas de financiamento. Eu comecei a falar com ele em fevereiro. Ele me atendeu só em dezembro”, revela.
Em maio, a Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual procurou Rita para a execução de um projeto de valorização da cidade do Rio de Janeiro como patrimônio LGBTQIA+ A iniciativa pública fixaria selos em pontos históricos importantes para a cultura LGBTQIA+. O selo foi fixado pela secretaria de cultura e apoio da coordenação. Entretanto, o prédio não recebeu nenhuma vistoria por parte do poder público.
Localizado na rua Mem de Sá, número 25, no bairro da Lapa, no coração boêmio do Rio de Janeiro, o prédio de dois andares funciona como uma cozinha solidária do MTST no andar de cima. Já no andar térreo, é depósito de bebidas e de carrinhos de comerciantes ambulantes.
A identidade LGBT marca presença em inúmeros setores da sociedade e inspira outras realidades, mesmo que estas não se identifiquem dentro do grupo. Rita traz a perspectiva de que valorização da cultura LGBTQIA+ não é uma onda dos mais jovens, mas sim uma onda de sede de conhecimento.
“Você observa uma fome pelo conhecimento histórico. Se você pesquisar os grupos de popularização da história no Facebook, por exemplo, você vai ver a quantidade de pessoas que fazem parte, comentam as postagens”, acredita.
É visível que a cultura LGBTQIA+ se organiza em várias vertentes para olhar para o passado, trazê-lo à atualidade e deixá-lo de presente para o futuro. Mesmo tão criminalizado e alvo de preconceito ainda hoje, principalmente por palanques políticos conservadores, a bandeira do arco-íris ainda tremula ao sabor de bons ventos. Para Rita, vive-se um momento favorável, e é preciso que historiadores e demais pesquisadores produzam conteúdo de qualidade, fazendo um trabalho de educação histórica para evitar que, por exemplo, se repita o que aconteceu em 2018.
“Se a nossa coletividade não assumir para si o dever de lutar pelo seu patrimônio e exigir que os entes públicos façam o seu dever, eles não vão fazer. A gente tem que cobrar, tem que se articular, tem que exigir. Tem que fazer de alguma maneira construir mecanismos de força política para exigir que eles cumpram com o dever deles, porque não é favor, não é gentileza. Isso é que precisamos nos conscientizar”, analisa.
Governo Federal descontinuou ações
Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), não há no Brasil órgãos políticos ou ações voltadas à memória LGBTQIA +. Como demonstram manifestações públicas do secretário Especial de Cultura, Mário Frias, o governo Bolsonaro não parece considerar a cultura LGBTQIA+ como legítima, uma vez que já os membros do governo deslegitimam a linguagem neutra e já censuraram uma roda de conversa com temática gay.
Durante o governo de Dilma Rousseff, o Ministério da Cultura chegou a promover ações pontuais que integram a secretaria de Diversidade Cultural e a área de patrimônio, incluindo eventos sobre memória LGBTQIA+ e editais para a área. As ações, no entanto, não se converteram em políticas de Estado e foram descontinuadas.