Wagner Machado é um pesquisador que coloca a sua vida no trabalho de investigação acadêmica. Sua trajetória reflete anseios que perpassam o cotidiano de uma pessoa negra consciente do racismo estrutural ao redor, seja no trabalho ou na própria academia. Quando era graduando em jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), em 2009, seu trabalho de conclusão de curso buscou problematizar o espaço dos jornalistas negros no telejornalismo gaúcho, na época chegou a conclusão que havia apenas três comunicadores negros dentre 421 jornalistas apurados, somando 0,71% de representação na época.
Depois de formado, se inseriu no mercado de trabalho, atuando nas maiores redações jornalísticas de Porto Alegre, realizando um dos seus principais sonhos. “Só que não era nada que eu imaginei, era muito mais difícil, muito fechado, pouca estrutura, pagava mal, me estressava com o que não precisava, e não conseguia dar conta. Me sentia capacitado, mas me sentia frustrado”, disse. Resolveu, então, se dedicar aos concursos na área da comunicação e atualmente é produtor cultural concursado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Mas a vontade de voltar à pesquisa só crescia.
Em 2017, entrou no mestrado na Pucrs, e estudou a representação dos negros na televisão, a partir do programa Mister Brau, da rede Globo. E, agora, continua sua trajetória na linha de comunicação e conhecimentos raciais, com uma pesquisa de doutorado na mesma instituição, em que investiga a invisibilidade dos doutorandos negros nos programas de pós-graduação em Comunicação no Rio Grande do Sul. “É sobre a minha história e das pessoas pretas que passaram pelas pós-graduações do Rio Grande do Sul em Comunicação, e que podem ajudar a formar todo um ecossistema diferente”, diz.
Nonada Jornalismo – Qual a importância de estudar a invisibilidade de docentes e alunos negros nos programas de doutorado em comunicação?
Wagner Machado – A falta de professores negros me marcou muito na graduação, porque não havia uma referência. Óbvio que tinham professores que traziam assuntos paralelos ou próximos, mas não é isso que eu estou dizendo, é a presença da pessoa, o que ela representa, o quanto ela tensiona um ambiente em uma instituição. E não só os negros, os LGBTQIA+s, os minorizados, é raro ter essa essa perspectiva dentro de uma sala de aula na Comunicação. E então chega o momento do estudante exercer essa função na prática e muitas vezes não tem um olhar sensível necessário sobre diversas questões. É claro que pode até ter, pelos próprios interesses, mas normalmente não foi treinado, não tem essa vertente.
Eu fiz toda a minha trajetória acadêmica na Pucrs e só fui ter uma professora negra agora no doutorado, ela é da Universidade Federal Fluminense, e está fazendo o pós-doc dela aqui, e foi um divisor. Veio colaborar justamente com o que eu penso: a presença de professores negros muda a perspectiva do aluno. Empodera trazer autores negros, outros olhares, tirar um pouco do eurocentrismo. Na minha graduação, eram pouquíssimos ou nenhum autor sugeridos que não fossem da perspectiva europeia, eurocêntrica, ou do Canadá, por exemplo, que é extremamente brancocêntrico. E eu não estou culpabilizando os professores, porque eles também não tiveram essas visões, só que está na hora de ter. As pessoas precisam mudar as ementas, não dá para manter a mesma estrutura na disciplina que foi feita há trinta anos.
Mas para que se tenha professores negros, tem que se ter alunos. E para se ter professores em uma graduação, no mínimo, espera-se que tenha doutorado. É difícil entrar em uma graduação como professor na Ufrgs, por exemplo, se não tiver doutorado. Então, não tendo docentes, não vai ter doutores, e eu quis fazer justamente esse paralelo: tentar entender quantos são os doutorandos e doutores, no período de seis anos. A minha pesquisa vai de 2015 a 2020, e tem esse tripé entre que é Comunicação, Educação e Raça.
Nonada – Como foi realizado o processo da pesquisa? Por que a escolha desse período em específico?
Wagner – Fiz a pesquisa nos programas de pós-graduação em Comunicação da Ufrgs, Pucrs, Unisinos e UFSM, usando o critério de que esses programas têm o foco “puro” na área da Comunicação, a especialização que os concursos normalmente pedem. É engraçado, porque às vezes há uma defesa por um currículo mais diverso, mas na hora de fazer a seleção é só para a Comunicação. Seria interessante pegar alguém da Letras, da Sociologia, para ampliar o leque para formar um comunicador com capacidade mais ampla. Eu optei por pegar esses quatro. Tem também na Unipampa, que é Comunicação Criativa, mas aí é mestrado profissional. E esses quatro também são os mais conceituados, porque são os mais antigos, têm mais de vinte e cinco anos, e são esses que formaram a maioria dos professores atuais nas faculdades no Rio Grande do Sul.
Sobre o período, principalmente porque é pós-cotas, com as afirmativas na federal, e o Prouni nas particulares. Então, peguei essa linha do tempo e comecei a tentar encontrar quem são esses doutorandos. Tive uma dificuldade, porque os dados são sensíveis, e precisava deles para compor esse grupo de alunos. Por vias normais eu não consegui os dados, pedia pela secretaria dos PPgcom, e eles não tinham esse censo racial. Eu fiz o caminho mais óbvio, mas menos oficial, que era encontrar a lista de todo mundo que passou nesses últimos seis anos e procurar o Lattes. Então, eu aferi a raça da pessoa, baseado em critérios bem específicos que é o que o IBGE usa para fazer a autoverificação. Também, é claro, precisei confirmar com a autodeclaração deles.
Nonada – E quais foram as suas descobertas até agora?
Wagner – No período, foram 400 pessoas que entraram no doutorado nessas quatro universidades, e desse total só 30 pessoas eram pretas e pardas, um número muito ínfimo, em torno de 7,5%. A minha hipótese é mostrar que essa invisibilidade em doutorandos negros, no Rio Grande do Sul, acontece por fatores estruturais, mas também por manifestação de racismo no ambiente acadêmico, que é hegemonicamente branco.
Acredito que as pessoas têm desejo de entrar, mas talvez, nem tenham um horizonte de ir para o doutorado, porque não se veem naquele espaço, como eu não me via no passado. Isso só vai mudar quando as universidades começarem a olhar para dentro. E a minha proposta é justamente essa, mapear quem são os acadêmicos pretos, e conhecer a história de vida deles, a partir das entrevistas, utilizando história oral. Eu estou utilizando o termo afronarrativas, já que são eles que contam as próprias histórias. Porque um dos meus objetivos com isso é também entender onde estão essas pessoas.
Se faz um doutorado a princípio para ser professor, via de regra, então quero saber se eles conseguiram adentrar a uma faculdade, e conhecer as adversidades que tiveram ao longo da trajetória, para compreender essa presença ínfima de menos de 8%. A minha perspectiva é essa, que a causa principal é o racismo estrutural presente na academia.
Nonada – Quais conexões você conseguiu fazer para contar a história desses alunos?
Wagner – Por enquanto já entrevistei quatro, mas até o fim da tese, quero chegar em oito entrevistas. Apesar dos diferentes locais, é fácil ver diversas semelhanças e experiências.
Uma aluna doutoranda compartilhou uma história em que ela conseguiu submeter um artigo na Compós em 2020, que foi no formato online, com o tema de afrocentrismo. E a Compós é um dos eventos mais importantes na área no país. Lá, começaram a questionar os métodos e os autores que ela utilizou. Acho importante “pagar pedágio” para os que vieram antes, e é legítimo trazer Bourdieu, etc., mas essa doutoranda também trouxe outros autores, negros e brasileiros, e questionaram o método. E se fosse outra pessoa, será que iriam questionar a legitimidade dela? Ela me revelou que foi justamente também querendo tensionar o ambiente. Dá para entender então que a estrutura dos locais em que a gente aprende são concebidas para falar dos mesmos assuntos. Mas a Comunicação mudou, não dá mais para dizer que tem que falar de uma forma específica, ou só os jornais hegemônicos têm que ter voz, não é mais assim.
Não muito diferente dela, outro doutorando que faz em uma instituição privada, conta que quando fez mestrado na universidade pública, foi surpreendido pela pergunta de uma das professoras se ele havia entrado por cotas, pois era uma pessoa interessante cognitivamente. Na época, ele ficou estarrecido e não soube o que responder de imediato – ele havia entrado pela perspectiva universal. Mas na pergunta já havia o preconceito, o estereótipo de que o cotista seria menos inteligente. E ele não esperava naquele ambiente receber esse tratamento. A trajetória dele também não foi muito fácil, não conseguiu pesquisar o tema que queria, sentia uma dificuldade grande de pertencimento àquele espaço. Mas agora no doutorado, em uma universidade privada, com um orientador negro, ele trabalha com temas raciais (era seu objetivo), se sentiu acolhido, se sentiu pertencido ao espaço, e conseguiu se reanimar. Então, teve o mesmo percalço que a outra doutoranda, com pessoas tentando deslegitimar o conhecimento dele.
Outra entrevistada, essa sim, já doutora e atuando como professora em uma universidade no Maranhão, também relatou casos de preconceito, inclusive com o seu cabelo por um renomado professor da área da comunicação do Estado. Ela comentou que no RS ela não era identificada como negra, porque tem a pele mais clara, e no Maranhão, ela é identificada e consegue tratar seus temas com mais sensibilidade. A passagem dela no doutorado em uma universidade particular aqui repercutiu na trajetória dela, porque se sentiu acanhada quando os professores questionaram o sotaque dela. Isso leva a outros pontos, porque, além da raça, há o gênero.
Agora, onde ela atua, me comentou que virou uma tábua da salvação, a professora negra que vira um refúgio para alavancar os alunos, e ela me contou que não consegue dar conta de tudo. E ela tem consciência que não pode ser a única. A professora Sandra de Deus, por exemplo, sendo a única professora negra no curso de jornalismo da UFRGS, as pessoas depositam muita expectativa em cima dela, e ela não consegue mudar a estrutura porque é uma só.
Nonada – O que os programas de pós-graduação poderiam fazer para oferecer ainda mais diversidade?
Wagner – Quero ser utópico, quero ter mais esperanças, mas eu acho que não vai mudar muito com as mesmas pessoas que estão há mais de 30 anos. Também não acho que elas não possam mudar, mas é um processo mais complexo. Assim como as cotas não são a solução completa, mas são muito válidas, porque fazem o ambiente mudar. Mas é preciso que os programas que têm cotas na pós-graduação se empenhem mais na divulgação. Esse ano, no da Pucrs, não teve nenhum selecionado identificado como negro, porque não foi divulgado, ou as pessoas não se veem neste espaço. Quando perceberem que podem ocupar esse espaço e começar a mudar a estrutura, aí sim eu vejo uma possibilidade de mudança maior.
A Unisinos, que tem um programa de pós-graduação bem conceituado, não tem cotas para negros ainda. Se a Pucrs conseguiu, ela também consegue. A UFSM, uma das maiores, não tem cota ainda. Quem decide sobre as cotas é quem está no colegiado e quem está lá são pessoas brancas. Óbvio que elas podem ter uma sensibilidade sobre o tema, mas não é a mesma coisa que ter alguém que saiba realmente o que é isso, que esteja em sua história. Ainda falta muito para as universidades atingirem todos os públicos. A seletividade é grande, mas estamos tentando romper esses espaços de poder.
Mas a mudança maior, que fecha o tripé da minha tese, são os novos doutores, esses doutores negros que são poucos, mas que vão poder fazer concurso para entrar nas universidades. É uma leva nova, um pensamento novo, eles vão poder voltar para as universidades, se assim quiserem, como essa professora que leciona no Maranhão conseguiu voltar e ser professora federal. Então, ela tem uma estabilidade, consegue ter uma maior movimentação. Na privada, você não pode se movimentar muito, se não é “escanteado”.
Acredito que a mudança real da pós-graduação vai ser quando essa nova geração conseguir entrar para dar aula na graduação. A ideia da minha tese começou porque na graduação não tinha professores negro, porque não tinha doutores se formando lá na ponta do processo. É um ciclo. E não tendo professores negros, você acaba deixando de lado uma visão diferente de mundo, de pautas, é a tua experiência que vai modificar o teu fazer pedagógico.
Nonada – Aliás, você também fez um levantamento de quantos professores negros há nos cursos de pós-graduação em comunicação e nos cursos de graduação em comunicação no Estado.
Wagner – Sim, porque é um tripé, graduação, pós-graduação e voltaria para a graduação. Resolvi, então, fazer também esse recorte. Fui na lista do Ministério da Educação (MEC), e encontrei 27 instituições com cursos de jornalismo.
Na pós-graduação, são 81 professores (Ufrgs, UFSM, Unisinos e Pucrs) e só dois são negros, aqueles que formam os professores que vão formar professores que vão atuar na graduação. Dois são negros, considerando que uma é pós-doutoranda, então, ela não é professora efetivamente, não está fixa no corpo docente. Sobre a graduação, entrei em contato com os centros universitários, pedindo uma lista dos professores que eram negros, a maioria não respondeu.
Fiz a apuração baseado no fenótipo (cabelo, nariz, boca e pele) e cheguei ao número de 754 professores de comunicação, na graduação, e somente 20 deles são pretos e pardos. Isso dá em torno de 2,5%, de professores pretos. Mais uma demonstração que faltam professores negros de novo, porque poucos se formam, mas que também não conseguem entrar. É difícil entrar, porque é tão específico, tão nichado, que os poucos que têm já estão na “cota” de cada instituição. Isto é, já há o professor negro, então não se precisaria de mais.
E isso só vai mudar quando tiver mais doutores negros formados. Falo isso, porque acredito que a diversidade consegue ampliar nossos horizontes, ela consegue dar mais visão de mundo. O Rio Grande do Sul é um lugar extremamente difícil de ser negro, porque ele é racista, muito preconceituoso, embora normalmente não se verbalize, a prática mostra que é.
Nonada – Atualmente há mais estudantes negros nas faculdades, você percebe a mudança de temas de pesquisa em TCCs para assuntos que antes não eram tão explorados, como o racismo, falta de representatividade?
Wagner – Recentemente fui chamado para participar de uma banca de sobre esse tema racial, o que não me incomoda, e eu gosto de falar. É bom perceber que as pessoas estão trabalhando mais, de mostrar que está mudando, e que se está tendo outras possibilidades. Inclusive, para ver como isso é muito lento, somente agora a Compós está pensando em ter um GT que fale de comunicação e raça. Por que não teve até agora? Porque não se pensou nisso. Não por acaso são duas professoras negras que estão propondo. Essa nova leva de estudantes me parece que está tentando, há mais alunos negros, pelo menos na Pucrs, e na Fabico, por causa das cotas, se não, não teria mudado muito não.
A banca que eu participei atualizou o meu TCC, sobre a representatividade de jornalistas negros no telejornalismo gaúcho, o trabalho foi do jornalista Gabriel Bandeira. Para ver como as coisas acabam se costurando, a gente se conheceu porque ele fez um post no Instagram sobre SET Universitário da Famecos (evento da instituição), que não teve negros na programação, em 2020. Fui lá e fiz amizade com ele. Porque é ruim você estar sozinho, e me vi muito nisso. Mas rolou muita pressão a partir deste post dele. E eu fui atrás dele para a gente tentar fazer uma capacitação dos professores na Famecos, e a gente conseguiu. Não nos conhecíamos, mas virtualmente fomos lá, e conversamos com o coordenador de jornalismo, para fazer uma capacitação sobre relações étnicas na Comunicação com todos os professores de jornalismo, que é a nossa área, mas poderia ser para a Famecos toda, para mostrar que faltam autores negros.
Nonada – Qual impacto você espera da sua pesquisa?
Wagner – Quando eu comecei na graduação não tinha nenhuma perspectiva desse tipo, agora quem está vindo, vai poder ouvir histórias, afro narrações, de pessoas que conseguiram furar a barreira do racismo na academia. Eu quero exaltar as pessoas que conseguiram furar esse bloqueio e vão poder inverter a roda lá na porta de entrada, que é a graduação. Eu quero que outros grupos cheguem e encontrem aquilo que eu não encontrei, que é um professor negro que falem de assuntos que sejam importantes para a trajetória deles também.
A titulação de doutor ela vale em um ambiente acadêmico. Eu posso ser o doutor Wagner na universidade, mas vou pegar o ônibus e vou ser o negro Wagner, ele não me chancela para algo maior, porque a minha cor precede os meus títulos. Não adianta eu ter dinheiro, ou ter estrutura que eu vou continuar sendo negro e vou continuar sofrendo racismo. Mas nós percebemos que estamos alcançando novos patamares pelo conhecimento, pela educação. E é por isso até que a minha tese tem esse tripé: comunicação, educação, e raça, porque elas estão interligadas.
Nonada – A Lei de Cotas vai ser revisada este ano, com dez anos completos, o que você espera de possíveis mudanças e alterações?
Wagner – As cotas são medidas paliativas, mas ainda são necessárias, porque dez anos não mudam 400 ou 300 anos de escravização, que deixou o povo negro a margem da sociedade. Óbvio que as cotas não são só para a população negra, mas se você for fazer um recorte social, elas abrangem essa que também é a maior parte da população. Quero crer que não se perca o que já se teve de avanço, que é 50% das vagas destinadas a cotistas na universidade, e isso é muito relevante, porque traz um recorte muito específico da sociedade. A maioria das pessoas não têm a condição de adentrar no ambiente acadêmico, e muitas vezes não tem como se manter lá.
E uma das mudanças é que ela avance também para a pós-graduação. Mas é preciso avançar também, claro que não dá esperar ter cotas a vida toda, não é isso, mas ainda não há negros em cargos de gestão como se deveria ter. Tem muitos cotistas que saíram da universidade e não alcançam os patamares mais altos que são os cargos de gerencia, que então vão contratar outros negros. Talvez se pudesse pensar nesse sentido de fazer uma ligação entre a cota da universidade com as cotas das empresas, uma conexão, perceber que é possível trazer esse público para o mercado de trabalho também, sobretudo em cargos de gestão. É uma utopia minha, mas acho que dá para ampliar as cotas para que mais pessoas tenham acesso.
Porém, acho que ampliar para a graduação e mostrar para a sociedade que é necessário acolher, valorizar, dar oportunidade, para essas pessoas. As cotas da forma atual contemplam sim, são boas, mas precisam ser mais amplificadas para quem mais precisa, que, no caso, é quem não tem acesso, a periferia, onde a informação e o asfalto não chegam. E também a universidade precisa se adaptar mais ainda para receber essas pessoas que têm suas dificuldades e que precisam ser valorizadas nesse ambiente acadêmico.