Fotos: Anna Ortega/Nonada
Uma cidade forjada por potências, mas que frequentemente invisibiliza corpos negros, indígenas e queer. Uma cidade que já foi símbolo progressista e a primeira sede do Fórum Social Mundial, mas que hoje é marcada por desigualdade, insegurança e exclusão. É assim que Porto Alegre chega aos seus 250 anos neste sábado (26), segundo dez artistas que pensam a cidade, os corpos e o espaço urbano através de suas obras e que o Nonada Jornalismo ouviu nas últimas semanas. As conversas partiram de uma pergunta ampla:
“Qual é a Porto Alegre que você vivencia hoje e qual é a que você espera para o futuro?”
Embora carregados de subjetividades, os olhares convergem para um ponto em comum: Porto Alegre já foi mais feliz. “Vejo a cidade um tanto quanto áspera, inóspita. A violência é muito latente e isso acaba afetando minha produção artística, tanto que minhas obras de performance falam muito sobre essa questão do corpo da mulher, do corpo dissidente, queer”, diz Andressa Cantergiani, artista que já realizou diversas performances em espaços públicos da cidade.
Se a cidade é um organismo que pulsa com suas veias abertas, atualmente toda a energia é direcionada para uma região, dizem os artistas, a exemplo da escritora Lilian Rocha. “A gente percebe que as discussões se centralizaram, assim como a cultura se centralizou. Hoje nós temos aparatos culturais mais nas regiões centrais, mais nos bairros ditos de melhor condição socioeconômica”, lamenta.
E será que existe uma Porto Alegre vista por diversos ângulos ou existem Porto Alegre’s diferentes, não sendo possível delimitar a cidade como um só corpo urbano? É a provocação que faz o escritor José Falero à nossa pergunta. “Na Porto Alegre que vivencio, simplesmente não existe Redenção, não existe Casa de Cultura Mário Quintana, não existe São Pedro, não existem livrarias, não existem cinemas, não existe Orla. Aliás, não existe sequer Guaíba. Não existe investimento em lazer, não existe investimento em cultura, não existe investimento em infraestrutura”, diz.
A vivência da artista Raquel Kubeo confirma a tese de Falero sobre as várias Porto Alegre’s: “Eu adentrei outras vezes espaços mais elitizados, mas como uma pessoa que estava ali para servir. E aqui no quilombo, eu vejo que a minha realidade é diferente, porque estou aqui como atuante, como uma voz ativa da minha realidade, mostrando para outras pessoas que essas realidades existem”.
Em um corpo urbano historicamente marcado pela remoção da população negra para as periferias, onde atualmente pular o Carnaval é um direito suspenso e onde se erguem espigões desenfreadamente, apropriar-se da cidade é um ato político, acredita o artista Gabi Faryas. “Nada mais justo do que pisar nesse plano diretor e usurpar dessas estruturas criadas onde [anteriormente] eram territórios não brancos”, diz.
Para o ator, dramaturgo e diretor Pirajira, a Porto Alegre do futuro passa por diversificar os corpos que ocupam espaços de poder. “Eu tenho muita convicção de que uma mudança radical de um projeto de cultura para a cidade tem a ver com os corpos e com os pensamentos que ocupam os lugares de decisão”, aponta.
Participaram da reportagem Andressa Cantergiani, Gabi Faryas, José Falero, Lau Baldo, Lilian Rocha, mariam pessah, Pirajira, Raquel Kubeo, Santiago Pooter e Zoravia Bettiol.
Confira todos os relatos a seguir:
Pirajira, artista articulador multidisciplinar
A minha relação com Porto Alegre tem a ver com meu trabalho como artista realizado na cidade, e tudo que eu produzo e venho pensando no meu trabalho como artista está ligado às coletividades. Há uma tradição no cenário teatral na cidade de um trabalho de grupos, e eu sou um herdeiro dessa tradição. A minha constituição como artista está relacionada diretamente aos grupos em que eu venho trabalhando, que são o grupo Usina do Trabalho do Ator, o coletivo Bloco da Laje e o grupo Pretagô. Nesse sentido, me parece que o que a gente está vivendo hoje, dentro de um projeto de destruição, de desmonte da cultura e da cidade como um todo, vem fazendo com que esses movimentos tão fortemente criados, sonhados e imaginados pela cidade estejam no caminho contrário: de apagamento, de invisibilidades.
Dentro desses caminhos de invisibilização, existem presenças, corpos, agentes, artistas que desde quando Porto Alegre respirava uma cultura mais forte, mais dita democrática, ainda assim eram invisibilizados. E estou pontuando especificamente as presenças e subjetividades de artistas negras e negros. Nesse momento, a gente vive uma relação muito difícil com a cidade por conta dos reflexos, dos prejuízos, das misérias geradas pela pandemia e pelo descaso para com o setor cultural, adicionado a todas as políticas de exclusão que já existem desde que o Brasil é Brasil.
Então o que eu imagino para o futuro é que outras pessoas, para além das relações que se repetem enquanto raça, cisgeneraridade, gênero e sexualidade, possam ocupar espaços de poder. Eu tenho muita convicção de que uma mudança radical de um projeto de cultura para a cidade tem a ver com os corpos e com os pensamentos que ocupam os lugares de poder e de decisão. Se vai de fato ocorrer eu não sei, mas eu imagino, nas minhas microações políticas com os meus pares, essa possibilidade de estabelecer uma outra ordem, uma “renascença cultural”, como diria Jessé Oliveira.
Andressa Cantergiani, artista e performer
Acho que a cidade que eu vivencio hoje é uma cidade um tanto quanto áspera, inóspita, falando do meu corpo de mulher, dessa violência diária, do assédio, da cultura do estupro, de tudo isso que a gente passa diariamente. A violência é muito latente e isso acaba afetando minha produção artística, tanto que minhas performances falam muito sobre essa questão do corpo da mulher, do corpo dissidente, queer. Apesar de eu ser uma mulher branca e ter essa consciência racializada e de classe, não tem como isso não aparecer no meu trabalho, esse direito à cidade um tanto quanto desumanizado. A gente sai de casa com medo, sempre muito atenta, porque é uma estratégia de sobrevivência.
A Porto Alegre que eu gostaria de ver é uma cidade mais amena, onde a gente possa sair com nossos corpos livremente e não ter que estar nesse estado de alerta o tempo inteiro. Porto Alegre é uma cidade que tem uma potência artística e boêmia maravilhosa, mas é preciso criar mais espaços para a gente poder expressar tudo isso de uma forma mais segura. A cidade do futuro para mim seria esse lugar onde me sinto livre e segura para me expressar como mulher artista, e onde a gente possa colocar nossa voz nas ruas. Que a gente possa olhar para a periferia, para os movimentos artísticos, sociais e políticos que estão nas periferias. A cidade do futuro é uma cidade descentralizada, horizontal e livre.
José Falero, escritor
Antes de mais nada, quero problematizar a questão inicial, porque acredito ser uma problematização produtiva, no sentido de conferir profundidade à minha resposta. Quando tu me pergunta sobre a Porto Alegre que vivencio hoje, sendo que fará a mesma pergunta a outras pessoas, intuo a existência de um pequeno pressuposto embutido na pergunta, embora não consiga determinar a sua natureza exata. Olha só: na tua visão, talvez exista um objeto único, isto é, uma — e só uma — Porto Alegre de hoje, e tu, então, procura colher vários pontos de vista diferentes sobre esse objeto único, na tentativa de compor um conjunto de depoimentos cuja fidelidade seja robusta por diversificação. Mas existe outra possibilidade: talvez tu não acredite na existência de um objeto único, isto é, uma — e só uma — Porto Alegre de hoje; assim, tu não está à procura de depoimentos variados sobre um objeto único, mas em busca de relatos sobre os próprios objetos possíveis, ou seja, sobre as Porto Alegres de hoje que eventualmente coexistam por si mesmas, independentemente de qualquer depoimento. A diferença é sutil, mas importante: há uma — e só uma — Porto Alegre, que pode ser vista por vários ângulos, ou há mais de uma Porto Alegre, sendo que cada qual pode ser vista por vários ângulos? Se o caso for este último, então a tua visão coincide com a perspectiva da qual vou responder agora.
Na Porto Alegre que vivencio, simplesmente não existe Redenção, não existe Casa de Cultura Mário Quintana, não existe São Pedro, não existem livrarias, não existem cinemas, não existe Orla. Aliás, não existe sequer Guaíba. Não existe investimento em lazer, não existe investimento em cultura, não existe investimento em infraestrutura. Muitas vezes não existe asfalto ou saneamento básico. Na Porto Alegre que vivencio não existem universidades, nem públicas nem privadas; não existem sequer escolas de ensino médio. Não existe moradia digna, não existem condições de trabalho dignas, não existe salário digno, não existe transporte público digno. A Porto Alegre que vivencio é tão precária, mas tão precária, que tenho dificuldades de imaginar como seria uma Porto Alegre pior.
E, bem, a Porto Alegre que eu gostaria para o futuro seria oposta a essa. Estou falando de uma Redenção dentro da Restinga; estou falando de uma Casa de Cultura Mário Quintana dentro do Pinheiro; estou falando de um São Pedro dentro da Tuca; estou falando de livrarias dentro da Bonja; estou falando de cinemas no alto do Morro da Cruz; estou falando de uma Orla linda e cheia de equipamentos esportivos, mas não no extremo oeste, em torno do Guaíba, e sim no extremo leste, em torno da barragem abandonada da Lomba do Sabão. Mas “se o barato é louco e o processo é lento”, como diria o Brown, fico com a lucidez do próprio: “aos moleques da quebrada, um futuro mais ameno”, isto é, já me darei por satisfeito se a Porto Alegre que eu vivencio hoje possibilitar, no futuro, o mínimo de dignidade à próxima geração que tem a mesma origem social que eu.
Raquel Kubeo, artiz, curadora e consultora de assuntos indígenas
A Porto Alegre que eu vivo hoje é a Porto Alegre suburbana. Eu tenho contato hoje com os meus iguais aqui no Quilombo Santa Luzia que é uma realidade de morro, uma realidade opressão e de, muitas vezes, medo da violência urbana, que nós sabemos que existe. E também é uma realidade de cuidado com os meus, de atuar como professora, tanto no quilombo como arte-educadora, como na minha atuação na Lomba do Pinheiro, que é um bairro que tem uma realidade diferente da de outros bairros de Porto Alegre como o Moinhos de Vento. Eu adentrei outras vezes esses espaços mais elitizados, mas como uma pessoa que estava ali para servir. E aqui eu vejo que a minha realidade é diferente, porque estou aqui como atuante, como uma voz ativa da minha realidade, mostrando para outras pessoas que essas realidades existem. Vejo a cultura da cidade como um espaço de transformação, vejo que com as vozes de pessoas num sentido coletivo principalmente de denúncia, estamos colaborando com documentos em espaços como o do teatro. Esses espaços de transformação já estão acontecendo, não só comigo mas também com outros indígenas, falar sobre culturas negras, periféricas e indígenas de forma não romantizada.
Eu espero que Porto Alegre seja um espaço de arte descentralizada, que os nossos espaços culturais, as nossas aldeias, os nossos quilombos, a Lomba do Pinheiro [sejam vistos] como fazedores de cultura também. Nós fazemos a nossa arte e temos ela para nós. O que é nosso não está só no centro da cidade, em um teatro mais pomposo. Vejo que está bem potente cada vez mais uma inclusão cultural e social acontecendo, um crescimento de projetos assim no audiovisual, no teatro, na arte, na dança e também com centros de educação.
Gabi Faryas, atroz, performer e educador
Assim como o meu corpo é carregado de memória, o meu corpo é carregado de coisas afogadas, coisas que emergem, coisas que já foram enterradas. Porto Alegre também é esse grande corpo urbano que tem outros corpos urbanos ao lado, que também têm essas coisas afogadas, enterradas. E eu, enquanto pessoa que transita nessa cidade, aberto pelas questões históricas e territoriais que essa cidade me lança, que essa cidade tenta historicamente me soterrar. Eu me sinto um corpo em constante trânsito dentro dessa cidade, tanto por ter nascido na periferia e circulado no centro quanto por estar morando no centro e circular na periferia. Então me sinto uma pessoa bastante apropriada dessa cidade e por consequência disso, em alguma dimensão, confortável. Mas eu encontrei esse conforto no desconforto. Porque é uma cidade extremamente desconfortável pela história que ela carrega, pelos aterros que ela tem com certas populações, em especial com as populações indígenas e negras. Eu acabei me apropriando da cidade por necessidade.
A Porto Alegre que eu vivencio hoje é uma Porto Alegre bastante segregada, é uma cidade que me repele em muitos espaços que eu frequento. Ela me lança para lugares que são menos privilegiados mas que ao mesmo tempo me acolhem. É uma relação dicotômica, ao passo de querer pisar em espaços de poder e de privilégio por uma decisão política, esses espaços sistematicamente me repelem e eu acabo indo para lugares que me acolhem, mas ao mesmo tempo fincando o pé no centro. Eu ajo de maneira estratégica, no sentido do que eu penso, do que eu levo e deixo de levar, porque ainda é um centro urbano majoritariamente branco. Habito [a cidade] por um tempo quase que determinado, sei a permeabilidade e o trânsito que ela me possibilita. É fazer dessa cidade um trampolim: eu vou usar os aparatos que a cidade tem para pular. É uma relação quase devolutiva, Porto Alegre é a cidade que tem o primeiro plano diretor das américas, falando agora sobre política urbana, e esse é um plano diretor escrachadamente racista. Então nada mais justo do que pisar nesse plano diretor e usurpar dessas estruturas criadas onde [anteriormente] eram territórios não brancos. Vivencio Porto Alegre nesta espiral para não cair na falácia dessa beleza colonial, “uma cidade europeia” que é instituída aqui.
Vejo também uma cidade que está evoluindo em muitas questões políticas, acho que ao mesmo tempo que temos um aspecto bastante reaça nessa cidade, tem também uma linha de frente humana que vê o progresso a partir do cuidado com o humano, com o outro, com a educação. É a cidade do Fórum Social Mundial. É uma cidade também que habita no delírio, ao passo que tem esse avanço, ela vive no delírio de ficar investindo milhões e milhões em estética e projetos pra uma área que é um aterro e a qualquer momento pode afundar, que é a Orla do Guaíba. Uma cidade inteira precarizada, higienizada e vocês ficam investindo nessa orla aterrada.
Tem uma diferença entre a Porto Alegre que eu desejo e a Porto Alegre que eu espero a partir da realidade concreta. Nessa realidade, vejo uma cidade cada vez mais segregada, muito cara e com espaços cercados à população com poderio econômico, enquanto espaços populares estão sendo sucateados. Agora o meu desejo vai na contramão dessa realidade, vai para uma Porto Alegre que não seja só para alguns. A porto alegre que eu vislumbro vai no sentido de reocupação, quando a população da Restinga, se ela desejar, se reapropriar de todo esse espaço que é o centro. Quando os blocos e escolas de samba voltarem a povoar o centro com vida, quando as referências afro-gaúchas e indígenas cada vez mais estarem nas ruas, nas telas, nos museus, nas escolas. Eu desejo essa cidade que inclusive mantém suas árvores ancestrais de pé. Eu desejo que esse plano diretor racista e classista pegue fogo, se esfarele, porque está insustentável. Ele cada vez mais repele as populações periféricas do centro, tanto na questão de moradia como de lazer, e investe nesse centro para poucos. Eu desejo uma cidade com mobilidade, que milhares de outros e outras jovens não brancos consigam se movimentar pela cidade.
Lau Baldo, transviado, artista visual e fotógrafo
O que eu mais gostava de Porto Alegre era a rua, eram os movimentos sociais que aconteciam na rua, os blocos, as paradas, os eventos culturais gratuitos, tudo isso não tinha na cidade de onde eu vim. A Porto Alegre que eu vivencio hoje é uma Porto Alegre que está parada. Ela está sucateada, o investimento que é feito é feito de mal jeito, tem vários bairros deixados de lado. Sinto que eles privatizaram os rolês, privatizaram a cultura. E a Porto Alegre que eu espero para o futuro é uma Porto Alegre livre, que volte a ter investimentos na cultura. Que a gente volte a ocupar a rua, volte a ocupar espaços públicos. Sinto que Porto Alegre está meio cinza. Que ela volte a ser colorida.
Zoravia Bettiol, artista visual
A minha amada Porto Alegre, nas décadas de 50 e 60, já foi mais provinciana, todos se conheciam e interagiam. As pessoas viviam em casas grandes, com jardim, e não tinha o frenesi de hoje, de ir à praia ou à serra em busca de novos ares, espaços e contato com a natureza. Lentamente, a cidade foi se transformando e modificando, e o setor imobiliário começou a fazer edificações mais altas. O plano diretor foi completamente relegado, sendo que recentemente os espigões estão tomando conta de áreas já saturadas com os arranha-céus. Muitos dos nossos governantes estão compactuando com essa óptica que prejudica o bem-estar da população e do bioma municipal. Outro assunto muito sério são as podas descontroladas e mal feitas das árvores, além da poluição do lago Guaíba. Também me aflige bastante as escolas mal construídas e inacabadas, o que prejudica o aprendizado das nossas crianças e jovens. O que almejo para Porto Alegre nos seus 250 anos é que seja combatida a grande desigualdade social e habitacional, que as pautas ambientais sejam discutidas e postas em prática. Quanto à área cultural, que haja mais cuidado de todos à preservação e conservação de seus monumentos e sua arte pública. Viva os 250 anos da nossa querida e acolhedora Porto Alegre.
Lilian Rocha, poeta
Sempre fui uma apaixonada pela cidade. Vivi os momentos áureos do Fórum Social Mundial, no início dos anos 2000. Toda questão do orçamento participativo. A descentralização da cultura. Toda uma expansão cultural. Sempre amei Porto Alegre pelo fato de ela possibilitar que as pessoas possam participar das mais variadas formas nas atividades culturais. O que a gente tem visto nos dias de hoje, infelizmente, não é tão alegre como nós gostaríamos. Se perdeu muito das questões de democratização da cidade. A gente percebe que as discussões se centralizaram, assim como a cultura se centralizou. Hoje nós temos aparatos culturais mais nas regiões centrais, mais nos bairros ditos de melhor condição socioeconômica. Quando chove, enfim, percebemos o quanto bairro mais distantes, como a Lomba do Pinheiro, o Partenon, o Morro da Cruz, a Restinga, sofrem com a falta de luz, de águas. As próprias ilhas, o Humaitá. São problemas recorrentes na nossa cidade. Percebemos também o quanto a cultura se apequenou nesses últimos anos.
Mesmo assim, eu continuo gostando de morar em Porto Alegre pelas possibilidades de ser ainda uma capital de um tamanho não tão grande e que nos possibilita uma interligação do que outras capitais maiores. Mas ainda temos muito a melhorar. A própria questão do nosso transporte coletivo, as formas da saúde e da educação, que também tiveram uma baixa com relação à sua qualidade. Acho que Porto Alegre já foi mais alegre. Eu espero que no futuro ela possa voltar a ser aquela cidade tão democrática que sempre foi, permitindo que a cultura, a saúde, a educação, seja de uma forma ampla para toda sua população. Que não seja feita apenas algumas modificações estruturais, que são mais vistas, como a própria Orla, como o Quarto Distrito, mas que todos possam usufruir das qualidades que essa cidade pode trazer para sua população. É o que desejo. Amo Porto Alegre, mas acho que ela tem muito a melhorar, principalmente na questão de transporte urbano, na cultura democratizada para todos, assim como na educação e na saúde.
Santiago Pooter, artista visual e pesquisador
Hoje em dia, eu vivencio a cidade no centro histórico, trabalho aqui e minha rotina acontece basicamente toda na parte central da cidade. Mas eu cresci na periferia de Porto Alegre, me criei a maior parte da minha vida no bairro Restinga, extremo sul da cidade. Desde muito pequeno, eu sempre tive a liberdade dos meus pais de ter uma criação mais solta, então desde a pré-adolescência eu já andei muito na rua. A rua é um combustível para mim enquanto artista, enquanto pensador, observador. Eu comecei como artista na pichação e é um estilo de vida que se dá a partir da rua, é a partir da rua que as coisas florescem.
O que eu enxergo agora é que a Porto Alegre que eu vivencio tem uma atividade cultural muito forte, as pessoas que ocupam esse espaço tem muito potencial, muita criatividade, mas existe uma grande exclusão de políticas públicas e até de políticas filosóficas. Eu passei a ter acesso a mais coisas ironicamente a partir da rua, mas eu entendo que isso é um ponto fora da curva. Muitas pessoas que vêm do mesmo lugar de onde eu vim não puderam ter esse acesso. A gente não tem uma preocupação cultural e educacional por parte do governo e eu acho que isso faz toda a diferença, a cidade já foi muito mais movimentada e mais ativa.
Eu gostaria de ver um deslocamento desse olhar cultural, muitas vezes não temos conhecimento de grandes projetos e iniciativas que acontecem na periferia. Gostaria que a nossa cidade, num futuro próximo, pudesse ser mais inclusiva, mais justa e acreditar mais nas pessoas sem discriminação, sem esse olhar hierárquico. Gostaria de ver outras pessoas ocupando os cargos de poder, pessoas com quem a população tivesse mais confiança, gostaria de ver a cidade atingir uma potencialidade que faz jus a ela.
mariam pessah, poeta e escritora
Cheguei em Porto Alegre no verão de 2001. Esse não seria mais um verão. Ele era um verão com verbo, com VER, com promessas. A capital gaúcha estava efervescente. Tantas pessoas vindas de tantos lugares diferentes. Eu sou argentina, vinha de Buenos Aires, e cheguei aqui para o 1º Fórum Social Mundial. Eu atraquei meu barco neste porto, era uma época de primavera latino-americana. A minha maior sensação com a cidade sempre vai ser essa efervescência, que embora a gente esteja atravessando um longo inverno, fica essa pontinha de esperança. Eu sou anarkista, não sou petista, mas a gente sabe diferenciar entre um governo com críticas e vários desgovernos que vão sucedendo uns aos outros. Caminhar por Porto Alegre e ver casas e prédios vazios e tantas pessoas sem casa, sem teto. Tetos sem gente, para quê? Onde está essa humanidade que aquele verão tanto nos mostrava?
Se me perguntam como imagino a cidade, primeiramente pediria mais luz. Como reduzir a violência contra nós, mulheres? Iluminando as ruas. E como já falei dos espaços abandonados, eu geraria diálogos com os movimentos sociais, por exemplo, o MTST que vem fazendo um baita trabalho oferecendo mais de 100 almoços diários, enquanto a prefeitura só pensa em leiloar as terras. Não dá para governar uma cidade, nem um estado, nem um país com cabeça de empresário. Não pode ver lucro em cada canto, tem que ver humanidade, pôr-se na pele das outras pessoas, ou não falam no dia seguinte de assumir que vão governar para todxs? (O x é meu, óbvio, eles só falam (e pensam) em masculino. Insisto, falta muito diálogo, não dá para governar trancado em um escritório, ou só com os amigos.