Casos de censura e apropriação cultural da capoeira por grupos evangélicos têm preocupado capoeiristas em várias cidades do país. É que o mostra documento do Iphan divulgado em fevereiro. Trata-se de um parecer que recomenda a reavaliação do Ofício dos mestres e mestras de capoeira como patrimônio cultural do Brasil. O documento traz uma série de apontamentos e recomendações para incentivar a salvaguarda e a continuidade da atividade, praticada por pelo menos 1100 coletivos no Brasil, segundo levantamento do Instituto. O parecer é embasado em relatos de capoeiristas colhidos em 2021, que serão reunidos para a candidatura da roda de capoeira como Patrimônio Cultural da Humanidade junto à Unesco.
O estudo mostra que ainda há muita dificuldade dos mestres e mestras em receber apoio do poder público, embora desde 2008 a capoeira seja reconhecida como patrimônio cultural do Brasil. “Para fazer uso desses espaços [públicos] precisam recorrer a autorização permanentes, o que, segundo eles, resulta, não raro, nas desistências em realizar as rodas nesses ambientes”, diz um depoimento coletado no Amazonas. Já no Mato Grosso do Sul, houve denúncias de proibição da prática em praças públicas, além da falta de espaços públicos adequados.
Outro risco relatado pelos capoeiristas é a descaracterização do ofício, seja por apropriação cultural, seja pela exigência de burocracia para o reconhecimento da atividade. Em estados do norte do país, tem crescido a prática da chamada “capoeira gospel”, que, segundo relatório do Iphan no Pará, “tende a negar ou renunciar os elementos de origem africana e afrobrasileira na prática da capoeira, o que constitui uma ameaça”. No Tocantins e no Amazonas, essas rodas evangélicas se aproximam da intolerância religiosa ao proibirem cantos afro-brasileiros e até mesmo algumas expressões tradicionais que fazem parte da capoeira.
Um caso concreto de racismo religioso ocorreu no estado de Rondônia, de acordo com o relato de um instrutor de capoeira anexado no parecer. “O instrutor disse que os capoeiristas rondonienses têm sofrido significativa discriminação de políticos evangélicos que não aceitam a formação de rodas em espaços públicos, e que no município de Ji-Paraná/RO um prefeito evangélico chegou a proibir a formação de uma roda de capoeira”, denuncia o documento.
O esvaziamento da cosmovisão relativa às raízes ancestrais da prática estaria, portanto, desviando o saber tradicional de sua origem. “Ultrapassando a dimensão religiosa, os fundamentos da capoeira se assentam na noção de ‘ancestralidade’, cuja definição engloba não apenas preceitos religiosos, mas uma cosmovisão ou filosofia de vida que defende um conjunto mais amplo de padrões de condutas, princípios morais, modos de percepção e experiências coletivas que orientam a postura de seus detentores e que remetem à ideia de ‘africanidade’”, avalia o parecer.
Além disso, os capoeiristas também apontaram que têm surgido iniciativas voltadas à capoeira apenas como produto comercial ou atividade puramente física, sem um cuidado com a preservação das tradições. Nesse sentido, a regulamentação da atividade e a figura do “profissional da capoeira” tem sido debatido internamente pelos grupos, já que muitos capoeiristas acreditam que esse processo pode desvirtuar a prática de sua ancestralidade. No Maranhão, é indicado como ponto negativo “a formação precoce do capoeirista, devido à crescente exigência do mercado de trabalho por um profissional da ‘capoeira’, fazendo-o desconhecer valores e ensinamentos relevantes da Capoeira”.
Paralelamente, os capoeiristas enfrentam dificuldades em angariar recursos públicos, por motivos como “a burocracia para acessar os editais”, a quantidade insuficiente de verba destinada ao patrimônio imaterial e ainda a dificuldade de “compreender a linguagem técnica empregada nos editais”.
Coletivos planejam manejo ecológico da biriba
Outra questão que gera preocupação é o manejo da biriba, árvore usada na fabricação do berimbau e que muitos capoeiristas têm dificuldade em acessar. Embora abundante em muitas regiões, em locais como municípios do Maranhão e do Acre, a aquisição de matéria-prima depende do acesso a áreas privadas ou da compra do material. “[Os capoeiristas] mencionaram a ausência de parcerias com instituições, como secretarias estaduais e/ou municipais de meio ambiente e até mesmo o Ibama para dar viabilidade à execução de projetos com recursos aos capoeiristas para aquisição dos insumos necessários ou para o desenvolvimento de locais de manejo”, aponta o estudo.
A boa notícia é que práticas localizadas em outros estados ajudam no manejo ecológico da biriba, como relataram coletivos de Sergipe. “Já existe uma preocupação no plantio sustentável da biriba em Sergipe, com a retirada e posterior replantagem [sic], e o uso de outros materiais para fabricação de berimbau”, diz o relatório. No Espírito Santo, iniciativas como o Ecocapoeira unem consciência ambiental e o fazer cultural. (Leia mais sobre como as mudanças climáticas impactam o patrimônio cultural nesta matéria.)