Por Ronald Augusto*
Diante de uma série de argumentos em favor da filosofia como uma disciplina especial – com os quais concordamos de saída, diga-se de passagem –, atribuindo-lhe, inclusive, uma didática própria que atrai para o centro dos seus interesses os espaços conceituais e reflexivos das demais disciplinas, derivando disso a ideia de transversalidade associada ao ensino da atividade, é bem razoável que se afirme sem rodeios, e com necessária humildade, que ela deve cumprir, sim, sua função como disciplina obrigatória no currículo escolar. Reconhecer, entretanto, o que há de singular na filosofia enquanto disciplina não significa assegurar-lhe um lugar proeminente, seja em um currículo ao modo de presépio (sem grande interlocução entre as disciplinas), seja em um currículo orgânico (com interlocução entre as disciplinas).
Antes de seguir adiante, abro um parêntese. Mais uma vez se revela como grande impostura essa promessa de um “lugar proeminente” a ser ocupado pela filosofia no processo educacional, pois, na medida em que a escola é representada como o espaço de aprendizagem de aspectos culturais considerados valiosos e dignos de serem herdados, então, os conceitos, os textos e as perspectivas da tradição filosófica deveriam constar do cardápio de conhecimentos ofertado ao aluno, todavia, infelizmente não é isso o que está por se materializar com o advento do Novo Ensino Médio. A atual reforma que começa a entrar em vigor esse ano desloca a disciplina da filosofia (assim como outros aprendizados) para um lugar de nítida desimportância, uma vez que, conforme argumenta Patrícia Souza Marchand no artigo “Os impactos da nova reforma do Ensino Médio”:
A partir do estabelecimento de um suposto currículo “flexível”, que estabelece como disciplinas obrigatórias nos 3 anos do ensino médio apenas matemática e português e institui os itinerários de formação diferenciados, se rompe com o conceito de educação básica, ou seja, um processo escolar essencial para a formação de todos os indivíduos (MARCHAND, 2022).
Em outras palavras, a disciplina da filosofia, ao ser descartada do processo escolar, deixa de fazer parte do conjunto dos aspectos culturais até então tidos como valiosos e essenciais à formação de todos os estudantes. Marchand entende que a reforma rompe com o conceito de educação básica, já que os chamados itinerários formativos – substitutos das antigas disciplinas – “levarão a uma fragmentação da formação conforme o percurso escolhido pelo estudante” (MARCHAND, 2022). No escopo da proposta do Novo Ensino Médio reside a questionável opção “pela redução da complexidade do currículo”, e essa situação, no entendimento da analista, tem como resultado a negação a muitos estudantes “do direito a uma formação básica comum consistente e comprometida com a constituição de cidadãos críticos e atuantes” (MARCHAND, 2022). Como veremos a seguir, quadros como esse que agora enfrentamos não são estranhos ao desenrolar da vida da disciplina no processo de ensino no Brasil. Fecho o parêntese.
Com efeito, a filosofia, mesmo com um processo histórico assinalado por interrupções, avanços e recuos determinados por tensões e impasses de ordem tanto social, quanto política, por enquanto segue resistindo a duras penas nas práticas escolares e/ou no nosso sistema de ensino desde o período colonial, passando pelos anos de arbítrio do “regime militar” das décadas de 60/70, e chegando, atualmente, a essa etapa de brutais retrocessos no que toca às conquistas sociais e ao estado de direito. Os argumentos políticos e ideológicos, apoiados na presunção de um potencial crítico que o ensino de filosofia pode promover, têm justificado – dependendo de que lado o vento sopre – a presença ou a ausência do ensino de filosofia nos currículos escolares brasileiros.
No entanto, quanto ao imperativo e/ou à obrigatoriedade de sua participação na vida escolar, parece haver necessidade de que alguma análise seja feita na perspectiva de investigar como isso pode ser efetivado, para que não fiquemos presos a nenhuma forma de clichê salvacionista – consagrando a filosofia como o último refúgio da “consciência crítica” – quando se trata de estabelecer o campo de influência dessa atividade.
Porém, antes de passarmos a essa análise, é importante registrar alguns dados históricos relativos ao ensino de filosofia no Brasil. Zita Ana Lago Rodrigues, no artigo “O ensino da Filosofia no Brasil no contexto das políticas educacionais contemporâneas em suas determinações legais e paradigmáticas”, nos fornece alguns destes dados. Segundo a pesquisadora, em suas origens a concepção de filosofia difundida na educação escolar brasileira era mais ligada a saberes abstratos e racionalistas, mantendo-se mais atenta à formação das elites. Suas tradições escolásticas, desde o Brasil Colônia, não eram dotadas de características relevantes do ponto de vista de um ensino voltado à realidade vivencial, isto é, tal concepção de filosofia, que se ensinava fundamentalmente em colégios jesuítas, não encarecia possibilidades de reflexão e problematização do mundo vivido.
De acordo com Zita Rodrigues, o predomínio das visões idealistas e pragmáticas dessa concepção de filosofia se estende até meados do século XX e acaba por caracterizar sobremaneira o ensino e os saberes filosóficos no Brasil. A partir desse quadro consolidam-se visões de mundo que, em boa medida, determinam a formação recebida pelos professores de filosofia. Posteriormente, o ensino de filosofia vai se constituir, com poucas chances de mudanças dentro do contexto educacional em que se insere, como algo à margem de possíveis estruturações curriculares críticas e transformadoras.
Desde modo, Zita Ana Lago Rodrigues vai afirmar que essa concepção de ensino da filosofia predomina na escola brasileira até meados do século passado, e isso repercute nos currículos. Em 1942, a Reforma Capanema torna obrigatório o ensino da filosofia. Já em 1961 é promulgada a Lei 4.024/61, que faz da filosofia disciplina não obrigatória, passando, então, a ser disciplina complementar nos currículos escolares. Dez anos depois, nova reviravolta: a ditadura civil-militar promulga a Lei 5.692, que na prática quase extingue a filosofia dos currículos, não obstante em diversas partes do Brasil o ensino de filosofia tenha continuado em muitas escolas.
O lento processo de redemocratização e toda uma série de mobilizações após os “anos de chumbo” estimulam reações em diversos campos sociais e por meio do Parecer 7.044/82, do então Conselho Federal de Educação, começam a surgir possibilidades para o retorno da disciplina de filosofia aos currículos do Ensino Médio. Portanto, desde 1985, com o fim do regime ditatorial civil-militar e o retorno ao estado de direito, o ensino de filosofia passa a ser admitido curricularmente, mas sua obrigatoriedade se efetiva apenas em 2008. Contudo, como adverte Ronai Pires da Rocha, daquele momento até agora tivemos parcos avanços no que tange às formas do seu ensino.
Assim, considerando esse panorama histórico do ensino de filosofia apresentado a traços largos e o contexto situacional presente, chegamos a uma circunstância em que a disciplina é deprimida mais uma vez em sua relevância curricular. E isso acaba de ser levado a efeito através de uma medida provisória cuja intenção visa um suposto aperfeiçoamento do nosso modelo educacional. O texto da medida provisória, que antes previa o descarte da disciplina sem qualquer justificativa razoável, agora a quer de volta, porém, da mesma maneira, a nova decisão não apresenta razões para esse retorno sobre os próprios passos.
Aparentemente, contar ou não com a disciplina de filosofia nos currículos escolares – contrariando uma leitura tradicional que sempre se manteve vigilante e suspeitosa com relação à “periculosidade” do filosofar – ao que tudo indica já não faz a menor diferença. De todo modo, o texto da medida aprovada não fala na filosofia como “disciplina”, mas sim como um mero “conteúdo” que envolverá “estudos e práticas” vagamente filosóficos a serem inseridos, mais adiante, na BNCC (Base Nacional Comum Curricular). A BNCC se encarregará de definir quais os conteúdos comuns a todas as escolas do país. Isso significa que ainda não se sabe o que acontecerá com esses estudos. A BNCC e as redes de ensino se ocuparão com a definição desse modelo.
Tudo leva a crer que o caminho da filosofia enquanto disciplina vinculada ao currículo escolar, além de continuar sendo bastante tortuoso e mal topografado, como o demonstra a tradição, corre o risco de, inclusive, ser bloqueado, não nos levando a lugar nenhum, mais uma vez. A metáfora apropriada para representar a história da filosofia como disciplina nos currículos escolares é a de uma ruína de estrada romana e, além do mais, inacabada à sua época.
Não obstante o panorama sombrio, voltemos ao tópico que motiva nosso ensaio. No breve e fundamental artigo “O lugar da filosofia no currículo escolar”, Ronai Pires da Rocha nos apresenta argumentos que nos auxiliam a responder positivamente à questão que serve de base às reflexões do presente texto, qual seja: a filosofia deve participar da vida escolar como disciplina curricularmente obrigatória? É bom assinalar que ao contrário do que talvez fosse esperado, no escopo dos argumentos de Pires da Rocha não se vislumbra nenhuma forma de mistificação relativa à filosofia na sua interação com as outras disciplinas.
Obviamente, o filósofo não perde de vista a noção de que seus temas e objetos de estudo não têm nada de simples, mas o tom de sua argumentação nos lembra o tempo todo de que, assim como as demais disciplinas da vida escolar, a filosofia é também uma disciplina “com hora marcada na semana de aulas de uma escola”. E as consequências disso para os procedimentos didáticos a serem trabalhados são de grande importância.
A efetiva participação da filosofia na dinâmica da vida escolar como disciplina obrigatória pode ser justificada a partir da visão da escola como um espaço de aprendizagens complexas. Se, como pondera Ronai Pires da Rocha, a escola é o lugar de aprendizagem de determinados aspectos culturais considerados valiosos e dignos de serem herdados, preservados e atualizados, então, não estamos longe de concluir que a atividade filosófica faz parte, sim, desse conjunto de valores, atitudes, saberes e procedimentos que identificamos como dignos de preservação e estudo na vida escolar. Afinal de contas, a filosofia não poderia estar de fora dos modelos educacionais, pois os temas especulativos e vivenciais sobre os quais ela se debruça são de interesse universal, e, portanto, de algum modo chegam à experiência do aluno.
Essa situação faz com que Ronai, inspirado em pesquisas de Winnicot, reivindique para a filosofia o status de “área intermediária de experimentação”. De um modo muito resumido a “área intermediária de experimentação” – ou “área transacional”– pode ser definida como um tipo de dispositivo usado pela criança (p. ex., a fraldinha, o chocalho, os sons que começa a produzir) para brincar/lidar com a tensão entre o seu mundo interno e a realidade exterior ou entre as dimensões subjetivas e objetivas da vida. Segundo Winnicot, o indivíduo adulto se utiliza de diversas áreas da cultura que serviriam de transfigurações ao conceito de “área transacional”, a saber, arte, religião e filosofia, e isso é fundamental para o ser humano adulto, porque, tal como a criança, nunca terminamos a tarefa de testar e de aceitar a realidade. Assim, em sua dimensão curricular, as transversais concepções filosóficas, quando trabalhadas em aula podem ser consideradas e experimentadas pelo aluno na perspectiva de um campo de possibilidades de aprendizagem da área transacional.
O conhecimento poderoso que só pode ser obtido na escola, ou seja, conhecimento teórico que demanda certo distanciamento das condições imediatas, encontra na disciplina da filosofia uma boa tradução. Por ser uma atividade com uma pretensão de compreensão mais abrangente tanto do real, quanto de aspectos especulativos imbricados na fratura entre os espaços subjetivo e objetivo, a filosofia se revela uma área da experiência humana capaz de trazer para a vida particular do aluno o impacto necessário da universalidade. Conceitos fundamentais que nem sempre são explorados o quanto deveriam ser pelas demais disciplinas, e que, o mais das vezes, são apenas instrumentalizados para atender a objetivos ligados às particularidades desses saberes, recuperam sua dimensão universal na aula de filosofia.
Entretanto, o fato de os temas da filosofia comportarem um inacabamento essencial não indica a necessidade de admitirmos que as posições alternativas sobre questões morais, éticas, estéticas e políticas, por exemplo, eventualmente consideradas em sala de aula, devam nos conduzir a um debate filosófico propenso ao dogmatismo ou ao ceticismo sem mais. A aula de filosofia calcada nas possíveis relações com o mundo real do aluno será didaticamente efetiva se conseguir colocá-lo, mediante o domínio de certos conhecimentos argumentativos, em uma situação de crítica ou de autocrítica desta ou daquela opinião, seja ela boa ou esteja ela assentada sobre uma impostura qualquer.
O inacabamento poderoso da filosofia como que a desobrigaria de maiores justificativas no que diz respeito a um movimento de radicalização interdisciplinar, pois faria parte de sua singularidade, em termos de disciplina, incorporar toda uma série de questões de viés filosófico dispersas nas diferentes áreas da vida escolar e que serviriam de acesso para a filosofia oferecer os instrumentos conceituais capazes de enriquecer a compreensão deste ou daquele problema relativo a cada área.
Em resposta à facilidade e à naturalidade com que reagimos ao cotidiano e suas práticas reificadas de pensamento, o ensino-aprendizado de filosofia como disciplina curricularmente obrigatória oferece dispositivos importantes para a formação do necessário distanciamento reflexivo destes estados mentais aplicados à experiência cotidiana. Em relação ao traço específico do discurso filosófico, Ronai considera essa estratégia didática poderosa porque ela permite ao aluno transitar dos temas para os processos de argumentação e análise e para prática de experimentos de imaginação projetiva.
Com efeito, esse movimento de relativo afastamento do seu pathos vivencial, realizado de maneira a provocar a desnaturalização das opiniões do aluno, tem a ver tanto com os interesses específicos do saber filosófico, quanto com o conhecimento escolar, isto é, o conhecimento que não se reduz a resolver problemas peculiares apenas ao cotidiano. Vale a pena insistir nesse ponto, agora que chegamos ao fim do ensaio: a disciplina de filosofia, intercambiando saberes, colabora transversalmente e o quanto possível com as demais disciplinas em vista do conhecimento independente de contexto – ao menos em alguma medida –, conhecimento teórico, valioso, digno de ser herdado e transmitido.
*Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com