Ninguém esperava o fenômeno que cortou o céu naquele abril de 2016 na pequena cidade de São Miguel das Missões, interior do Rio Grande do Sul. Já era quase noite quando um tornado se formou sobre a cidade, destelhando dezenas de casas e atingindo parcialmente o sítio arqueológico das Missões, considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A tempestade felizmente não fez vítimas fatais, mas afetou o museu e destruiu objetos que guardam a história do Brasil, incluindo esculturas dos séculos XVII e XVIII e a cobertura da sacristia da Igreja, elemento central do museu.
O conjunto arquitetônico de São Miguel das Missões é o mais conhecido dos cinco sítios arqueológicos que salvaguardam a memória da ocupação jesuíta e da conversão dos guaranis da região sul ao modo de vida dos padres da Companhia de Jesus. Hoje, o sítio recebe todo mês milhares de turistas e estudantes que se encantam com a imponência das fachadas e o estado preservado dos sinos e esculturas de anjos que os indígenas produziam, sem o reconhecimento de sua autoria individual.
Embora o Estado brasileiro, na figura do Iphan, seja um dos responsáveis por evitar qualquer dano que altere ou destrua bens tombados como as Missões, na prática muitos casos escapam a uma proteção eficaz. Nas últimas décadas, profissionais que atuam na área têm encontrado dificuldades para proteger as localidades históricas do país, principalmente por causa de desastres ambientais. Foi o caso do casarão construído no século XIX que desabou em janeiro de 2022 em Ouro Preto, Minas Gerais, após o deslizamento de um morro. A área já havia sido evacuada pelo risco de acidentes, mas não foram tomadas ações suficientes para evitar o dano ao patrimônio histórico.
“Dentro de um contexto de desastre, a prioridade é a vida humana. Mas quando se perde um patrimônio, centenas de vidas perdem sua memória”, aponta a doutora em arqueologia Luana Campos, secretária do Comitê de Mudanças Climáticas do Icomos – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios.
Mudança climática é uma expressão chave para entender os desastres contemporâneos causados ao patrimônio, segundo especialistas da área com quem o Nonada conversou. Carla Teixeira, doutora em Arquitetura e Urbanismo, explica que os impactos variam conforme a região do planeta e aponta algumas consequências que podem ocorrer devido ao aquecimento global: “danos a sítios e edifícios históricos localizados em zonas litorâneas resultantes do aumento do nível do mar, aumento da incidência e intensidade de tempestades, contribuindo para a ocorrência de enchentes e deslizamentos de terra e aumento da temperatura, que pode contribuir para a aceleração dos processos de deterioração de materiais sensíveis.”
Nos últimos anos, uma série de eventos danificou prédios e elementos históricos em diversas regiões do país. Em 2011, fortes chuvas destruíram edificações históricas na cidade de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo, incluindo a Igreja Matriz, que havia sido construída no século XIX. No mesmo ano, pelo menos 30 casas tombadas na cidade de Goiás Velho foram atingidas e dois casarões bicentenários foram abaixo com o transbordamento do Rio Vermelho. Há três anos, um incêndio chegou perto do sítio arqueológico Serra da Lua, no Pará, onde estão dezenas de pinturas rupestres. Para Luana Campos, os eventos não podem ser analisados isoladamente. “São indicativos de que algo está mudando e que essas mudanças podem vir a ser permanentes. É uma realidade que não tem como fugir ou negar”.
Um agravamento desse problema é a questão da originalidade, que perpassa pela preservação das características e materiais usados na data de construção do bem histórico, como aponta Luana. “Ou seja, você não pode modificar, você não pode reformar, nada disso é permitido para manter essa originalidade”. Uma vez destruído por completo, é impossível restaurar o original, mesmo que se construa novamente, como foi o caso da igreja de São Luiz do Paraitinga.
O direito à memória
A historiografia conta que foi após a Revolução Francesa que surgiu a ideia de patrimônio, quando a burguesia começou a restaurar prédios destruídos pela guerra. “O patrimônio passou a ser protegido para que a população pudesse lembrar, se tornou um elemento de resiliência, para a sociedade pensar o seu passado”, conta Luana Campos.
Mas o descuido com o patrimônio impacta também no presente, uma vez que pode afetar as comunidades que vivenciam essas localidades, em especial povos indígenas e quilombolas, por exemplo. Isso porque junto aos bens materiais históricos, quando falamos em patrimônio estamos abordando também festas, saberes e rituais transmitidos de geração em geração, como o bumba-meu-boi, a capoeira e diferentes celebrações. Se uma região onde o patrimônio está enraizado é afetada, também são afetadas as pessoas que protegem e salvaguardam aquela cultura.
No Brasil, bens históricos incluídos no livro de tombo pelo Iphan passam a contar com uma série de medidas protetivas, incluindo a proibição de alterações na edificação sem um projeto de restauro elaborado por arquitetos especializados e um maior rigor na autorização de construções no entorno do prédio. Nada disso, no entanto, é suficiente para prevenir ações causadas por fenômenos climáticos.
Segundo a arquiteta Carla Teixeira, políticas voltadas à preservação do patrimônio com foco em mudanças climáticas ainda são inexistentes no país. “Devido às dimensões territoriais e características específicas das regiões, os efeitos das mudanças se darão de forma diferente, sendo fundamental conhecer os impactos locais para desenvolvimento de estratégias de prevenção, bem como analisar as vulnerabilidades específicas dos bens culturais em cada uma dessas regiões”, destaca. Uma medida possível é cada estado e município definir ações e estratégias para lidar com este problema.
Em São Miguel das Missões, novas técnicas foram adotadas durante as obras emergenciais de restauração após o tornado. Segundo o técnico do Iphan Diego Vivian e o Coordenador técnico substituto do órgão Daniel Beck, em resposta ao Nonada via Lei de Acesso à Informação, houve reforço em algumas estruturas expositivas, além da amarração das telhas cerâmicas para evitar o destelhamento. Como consta no processo de restauro, “as medidas impactam na eficiência da edificação até uma certa intensidade dos ventos”.
Com relação a sistemas de prevenção, afirmam que “o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) esclareceu, em nota pública de agosto/2021, que todos os museus da sua rede possuem programas de segurança e estão dotados de equipamentos essenciais para identificar, detectar e bloquear os principais agentes de riscos que ameaçam os museus”.
O Ibram, no entanto, não abrange a totalidade dos bens culturais no Brasil, uma vez que apenas uma parcela dos museus registrados são tombados como patrimônio. Neste sentido, iniciativas de monitoramento têm partido da sociedade civil e do terceiro setor, como o trabalho do Instituto Pereira Passos, realizado no Rio de Janeiro em 2008. O estudo identificou as áreas da cidade vulneráveis ao aumento do nível do mar, possibilitando a adoção de medidas para as áreas históricas. Carla aprofunda o assunto na sua tese de doutorado, “Gestão de riscos para sítios históricos: uma discussão sobre valor”.
O programa é visto como uma exceção na área. “A prevenção de maneira geral ainda não é uma realidade para nosso patrimônio, atuamos na maioria das vezes de forma reativa”, lamenta Carla. Foi para reunir a experiência de diversos profissionais e iniciativas nesse sentido que surgiu o Comitê científico Mudanças Climáticas do Icomos Brasil. “Tem várias universidades desenvolvendo projetos e nós tentamos fazer essa rede entre eles, mas tudo ainda é muito individualizado”, conta Luana. Em ligação com a Unesco, o Icomos também realiza relatórios sobre os bens tombados como Patrimônio da Humanidade.
O Inpe e o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), criado pelo governo Federal em 2011, têm sido fonte de dados importantes para estes projetos. O Cemaden monitora índices pluviométricos em diferentes áreas do país e emite alertas quando necessário. A atuação, contudo, ainda é limitada, já que apenas 950 dos 5570 municípios brasileiros são monitorados, pouco mais de 17%.
Para Carla Teixeira, o Brasil deveria adotar medidas visando a análise de riscos que contemplem os contextos e especificidades do patrimônio brasileiro. “A partir dessas análises, é possível orientar a elaboração de planos de emergência e medidas de adaptação para edifícios e sítios históricos, que podem incluir, por exemplo, melhoria dos sistemas de drenagem, reforço estrutural e o estabelecimento de rotinas de monitoramento”.
O mundo em alerta
Desde 2005 a Unesco mantém, dentro do Centro do Patrimônio Mundial, um grupo de trabalho voltado a analisar os possíveis impactos relacionados às mudanças climáticas. Em publicação divulgada em 2021, a Unesco sugere uma série de medidas que os países podem adotar, incluindo criar uma base de dados sobre impactos existentes no patrimônio, mapear áreas de risco e incentivar projetos interdisciplinares com apoio de universidades.
Em dezembro do mesmo ano, o órgão realizou uma conferência que reuniu 120 cientistas e especialistas em áreas como arqueologia, arquitetura, antropologia e ecologia. Um dos eixos da reunião foi o debate sobre soluções climáticas e a capacidade de locais históricos de reter carbono. “O patrimônio cultural e natural são fontes de resiliência e uma fonte de inspiração para arte, conexão e compreensão da ação climática”, concluiu a Unesco.
Outro relatório da entidade, no entanto, mostra que a cultura não está incluída nos debates sobre desenvolvimento sustentável no geral. O estudo mostra que apenas 13% dos países signatários da Agenda 2030 – plano de ação que estabeleceu os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – reconhecem a contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável. Ainda, só 0,23% da ajuda financeira ao desenvolvimento é destinada à cultura e recreação.