Joanna Lira/Ministério da Cultura

Artigo: deputados propõem Marco Regulatório do Fomento à Cultura

Por Áurea Carolina (PSol/MG), Benedita da Silva (PT/RJ), e Túlio Gadelha (PDT/PE), deputados federais 

Nas últimas três décadas, são inegáveis as relevantes contribuições de legislações federais destinadas ao desenvolvimento do setor cultural brasileiro, que trouxeram não somente a ampliação de fontes de financiamento para projetos culturais, mas também consolidaram importantes programas governamentais como políticas de Estado. Os avanços mais recentes tiveram especial respaldo a partir da inserção do art. 216-A no texto da Constituição da República, por meio da Emenda Constitucional n. 71/2012, em que os sistemas de financiamento da cultura estão expressamente previstos como componentes da estrutura do Sistema Nacional de Cultura. 

Nesse contexto, são exemplos bem sucedidos do conjunto de políticas culturais: a Lei do Audiovisual, a Lei Cultura Viva, e, mais recentemente, a Lei Aldir Blanc. Não somente na esfera federal, mas também no âmbito de Estados, Distrito Federal e Municípios, foram criadas legislações específicas destinadas ao regramento de mecanismos locais de fomento e incentivo cultural, buscando transparência, isonomia e segurança nas iniciativas culturais apoiadas pelo Poder Público. 

Ainda persiste, entretanto, uma grande lacuna jurídica no que tange ao desenho macro das relações de fomento cultural, em especial quanto à natureza jurídica dos instrumentos específicos dos sistemas de financiamento da cultura. Nesse sentido, muitos estudos técnicos na área da gestão pública cultural têm indicado a necessidade de formulações normativas que delimitem os contornos do Direito da Cultura, como direito setorial, em regramentos que considerem as especificidades do fazer cultural. 

O desenho técnico-jurídico da “caixa de ferramentas” disponível para a administração pública no fomento cultural deve ser adequado às relações do Poder Público com os agentes da sociedade civil (como organizações, como empresas e como indivíduos) em uma política pública em que estes devem ser os protagonistas, para que haja efetividade e garantia de pluralidade em um contexto de Estado democrático de direito. 

No livro Parcerias com a sociedade civil na gestão pública brasileira, publicado pela EDUFT, a Advogada da União, Doutora em Direito e ex-coordenadora da Consultoria Jurídica do Ministério da Cultura, Clarice Calixto, aborda a relação intrínseca existente entre Estado e Sociedade Civil no âmbito do fomento à cultura no Brasil, sua preconização na Carta Magna de 1988 e afirma: 

“A complexidade do sistema de financiamento público da cultura reside na pluralidade de mecanismos que devem estar à disposição do gestor público para a concretização das políticas culturais, com os respectivos instrumentos jurídicos de formalização, sujeitos a regimes jurídicos diferentes de acordo com a finalidade pretendida na situação concreta.”

Há, portanto, no conjunto de instrumentos jurídicos em vigor, uma histórica defasagem de mecanismos que regulem o fomento cultural a partir de suas diversas peculiaridades. Atualmente, quando o contorno de uma relação de fomento cultural não encontra amparo em outras legislações específicas, há uma tendência hermenêutica em enxergá-la como similar ao instituto do convênio e aplicar subsidiariamente o que preconiza a antiga Lei 8.666/1993, hoje substituída pela Lei 14.133/2021, gerando enormes problemas concretos pela inadequação desse regime (pensado para situações de interesses contrapostos) diante da realidade da cultura, em que os interesses são coincidentes no sentido da realização de um projeto ou atividade cultural. Como afirma Clarice Costa Calixto no livro já citado: 

“A superação do antigo regime de convênios permite compreender uma diferenciação clara da relação jurídica entre Estado e entes privados com relação aos contratos administrativos regidos pela Lei n. 8.666/1993, demanda histórica dos agentes culturais públicos e privados nos debates sobre o desenho técnico-jurídico das políticas públicas de fomento à cultura”. 

É neste contexto que se insere o presente projeto de Lei, que busca superar tais entraves e delimitar um marco normativo de escopo nacional, que indica o conjunto de regramentos aplicáveis ao fomento cultural, conforme as competências dos entes federativos. 

O presente projeto de lei consiste, portanto, em esforço no sentido de estabelecer um Marco Regulatório para o Fomento à Cultura, regramento jurídico que dá clareza e segurança jurídica para o entendimento das relações estabelecidas entre a administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com agentes culturais, no âmbito do fomento de projetos e atividades das mais diversas linguagens. 

É também objetivo desta proposição legislativa a criação de um caminho jurídico específico, o regime próprio de fomento cultural, apresentado como alternativa para a implementação de políticas públicas do setor, nos casos em que o edital respectivo indicar tal opção técnico-jurídica. Esse novo regime sintetiza um conjunto de regras bastante modernas de um paradigma de administração pública gerencial, com procedimentos desburocratizados de execução e diretrizes claras para um monitoramento focado primordialmente em estratégias de controle prévio e controle concomitante, comprovadamente mais eficazes para o combate à corrupção e ao desperdício de recursos públicos. 

As inovações legislativas propostas têm escopo bastante pragmático e tratam de problemas concretos de implementação das políticas de fomento cultural, pois visam conferir maior segurança jurídica aos processos de tomada de decisão de gestores públicos e garantir maior efetividade na realização de ações culturais. 

Em artigo intitulado “Legislação de fomento à cultura: quando a norma não alcança a realidade”, publicado recentemente no site Conjur, a advogada, mestre em Direito Constitucional e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), Cecília Rabêlo, enfatiza a importância de o Congresso Nacional debruçar-se sobre a formulação de norma como a pretendida neste projeto de Lei: 

“Estar em uma Assessoria Jurídica de um órgão de cultura é ter, de um lado, o Tribunal de Contas e as controladorias cobrando rigidez e controle do gestor no fomento e, do outro, o setor artístico e cultural requerendo instrumentos viáveis e condizentes com a realidade da sua prática. É uma balança impossível de ser equilibrada sem uma legislação clara e específica para o fomento à cultura. Uma norma corajosa, capaz de se basear no caráter de direitos fundamentais que têm os direitos culturais, na competência legislativa expressamente prevista na Constituição para tratar de cultura e no dever expresso, também previsto na norma constitucional, de fomentar o setor. É preciso coragem, mas é preciso também aprofundamento, estudo, pesquisa e conhecimento prático de quem vive a gestão pública de cultura e a realização/produção de projetos/ações culturais fomentados. Replicar princípios genéricos, objetivos extensos e metas pouco quantificáveis não nos ajudará a tornar a política de fomento à cultura realmente efetiva, sem danos tanto para o gestor quanto para a sociedade civil. É preciso criar normas de repasse de recurso. 

Sim, é urgente e necessário! Mas é também urgente e necessário falar do depois, do que e como faremos com esses recursos, para evitar que ele seja repassado, controlado e executado de forma inadequada, o que gera, sem dúvidas, problemas para todos os lados. A aplicação de instrumentos jurídicos, mecanismos de repasse e normas inadequados para o fomento ao setor artístico e cultural é, a meu ver e ao lado da escassez de recursos, o maior problema da gestão pública de cultura em nosso país. Se não encararmos esse desafio, o recurso pode até chegar no órgão gestor de cultura e ser repassado ao setor, mas continuaremos com os mesmos problemas de inadimplência nas prestações de contas, devolução de recursos, gestores com contas reprovadas e um fomento que causa mais problemas do que soluções.”

É também nessa mesma direção que a artista, gestora cultural e especialista em políticas públicas em gênero e raça, Jaqueline Fernandes, no artigo Gestão cultural, legislação e disrupção: receita para democratizar o acesso ao setor, publicado no portal Papo Reto , enfatiza: 

“Volto a chamar atenção para a necessidade de avançar e criar uma cultura disruptiva na gestão pública e na legislação da cultura, como continuidade de um processo potente que se iniciou há pouco mais de uma década. Obviamente, e felizmente, existe um mundo de outras possibilidades ligadas ao empreendedorismo, ao mercado e às contratações privadas. Nem por isso o recurso público da cultura pode ser concentrado, excludente ou elitista”.

 Nesse cenário, assim como este Congresso Nacional deu extraordinária contribuição à modernização da gestão pública brasileira quando aprovou os inovadores Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014) e Marco Regulatório da Ciência e Tecnologia (Lei 13243/2016), defendemos a criação de um novo Marco Regulatório do Fomento à Cultura, que representará enorme avanço para a efetividade das políticas culturais, em concretização dos comandos normativos do art. 216-A da Constituição da República. 

Diante do exposto, conclamamos os e as demais parlamentares a aprovarem esta proposição legislativa.

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