Ver Caetano Veloso retornar aos palcos depois da melhora da pandemia de covid-19 é como viver um dia meio nublado no qual o sol teme em escapar das nuvens. O cantor e compositor se apresentou no auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, nos dias 8, 9 e 10 de abril, dando sequência à turnê do álbum Meu Coco, que começou em Belo Horizonte no início do mês.
Além de apresentar suas novas composições, Caetano idealizou um show “autobiográfico e histórico”, como definiu na apresentação de sexta (8), na qual o Nonada esteve presente. Se a pandemia nos tornou mais introspectivos e nos fez olhar para dentro, o co-criador do tropicalismo encontrou na sua trajetória momentos para iluminar – para si mesmo e para o público -, homenageando músicos com os quais trabalhou e músicas representativas de diferentes fases da sua história e, consequentemente, da história da música popular brasileira. Foi como se estivéssemos acompanhando, ao vivo e a cores, uma atualização da autobiografia Verdade Tropical.
Por isso, talvez não existisse escolha melhor para abrir o show do que “Avarandado”, canção bossanovista gravada por Gal Costa e, mais tarde, por João Gilberto, confessadamente seu maior mestre e pedra basilar de seu trabalho enquanto músico. “Meu Coco” veio em seguida, composição que sintetiza tanto o conceito do álbum como a turnê em si, já que as faixas do novo trabalho trazem referências à sua trajetória e a diversos nomes da música brasileira mixados com crônicas sobre o Brasil atual, uma das especialidades de Caetano.
Neste ano definidor para a história do Brasil, “Não vou deixar” veio como uma catarse coletiva. A música, que Caetano escreveu após a eleição de Jair Bolsonaro, é uma “recusa de submissão à opressão”, ele declarou recentemente nas duas redes sociais. Nenhuma surpresa, então, que o público tenha emendado o fim da música com um coro de “Fora, Bolsonaro”, ao que Caetano prontamente respondeu com “sem dúvida”, como já havia feito antes em Belo Horizonte.
Não deixa de ser curioso que alguns espectadores tenham tentado puxar outras vezes “Fora, Bolsonaro” em diversos momentos do show, como se esperassem que o artista fosse reagir com algum discurso político, coisa que não costuma fazer parte de seus repertórios, nem durante a ditadura militar. Caetano é político na arte, na atitude, na ousadia e no gesto, e, nesse sentido, nada mais militante do que vê-lo apresentar um novo álbum com a força poética de Meu Coco. Mesmo recém-lançado, o disco conquistou o público do Araújo Vianna, que acompanhou a banda cantando junto algumas das faixas do álbum.
Destaque para “Anjos Tronchos” logo no início do show – no ao vivo, a música ganhou peso com a guitarra e um belo jogo de luzes -, para a balada cheia de melancolia “Enzo Gabriel” (sei que a luz é sutil/mas já verás como é nasceres no Brasil) e, mais para o fim do show, para “Sem Samba Não Dá”. Séria candidata a entrar para a lista infinita de hits do artista, a música rendeu até um coro a capella do público enquanto Caetano arriscava orgulhoso uns passos de samba.
Em um show extremamente técnico, Caetano mostrou um apuro vocal impressionante, dos graves aos falsetes, dançou com o público, contou histórias e, com a modéstia que lhe é característica, homenageou músicos que fizeram parte de sua trajetória, como Jaques Morelenbaum, e os integrantes da banda Cê e d’A Outra Banda da Terra.
Entre clássicos como “Sampa”, “You Don’t Know Me”, “Baby”, “Cajuína” e “Reconvexo” e “A Bossa Nova é Foda” (“uma visão histórica um pouco desabusada da bossa nova”, o público teve a oportunidade de relembrar ou de conhecer pérolas como “Muito Romântico”, canção a la Bethânia que ele fez para Roberto Carlos em 1977. Teve espaço também para “Itapuã”, que ele dedicou a Gilberto Gil em um post nas suas redes sociais no mesmo dia em que o “irmão de letra e música” se tornou imortal na Academia Brasileira de Letras.
Outra oportunidade única veio com “Pulsar”, poema construtivista de Augusto de Campos transfigurado em som pelos músicos de Caetano em 1975, através da transposição dos versos em notas musicais. A música, aliás, veio acompanhada de uma generosa explicação de Caetano sobre a composição, o que ele fez também quando introduziu “A Outra Banda da Terra”, composta junto à banda homônima. “Hoje essa música tem um valor diferente pra mim. Na primeira estrofe, eu pronuncio o R retroflexo, ‘esforrrço’, ‘forrrça’”, explicou, puxando o R para soar caipira.
Foi um dos poucos momentos de conversa com o público, quando ele contou, enquanto alguns espectadores riam a cada vez que ele falava “porrrta”, como ele conheceu militares gaúchos que também falavam desse jeito quando esteve preso durante a ditadura.“Fiz questão de gravar a música assim, a gente estava em São Paulo, e umas meninas que a gente adorava falavam assim. Depois vi que o R retroflexo estava presente também em outras regiões do Brasil. Não dá mais para rejeitar o R retroflexo”, completou Caetano, talvez no momento mais político do show.
Passando em revista sua própria história, que segue agora com a força de músicas como “GilGal” e “Não vou Deixar”, Caetano nos deu a chance de vislumbrar um futuro logo ali. Não à toa, o encerramento levantou o público de vez com “Odara” e, em seguida, “Noite de Cristal”, quase que uma oração do artista por tempos menos nebulosos. Que venham muitos dias com a banda do Olodum.