É na encruzilhada do Mercado Público de Porto Alegre que ele mora. Em um dos lugares de maior fluxo de pessoas da cidade, onde chegam e partem produtos de todo o estado. Local de comércio mais antigo e um dos cartões-postais do centro histórico, o Mercado é também a casa de Bará, o orixá dos caminhos para as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.
Ao atravessar uma das quatro portas e chegar ao centro do prédio, encontramos sete chaves dispostas no chão. Elas formam um mosaico de pedras, construído em 2013, e que marca, visualmente, que é ali que está assentada a entidade. Lugar sagrado, que recebe cumprimentos, oferendas e diferentes ritos em sua saudação. Em 2020, o Bará do Mercado foi tombado como patrimônio histórico-cultural de Porto Alegre pela Câmara de Vereadores, conquista fruto da luta para que esta manifestação seja reconhecida enquanto parte da história da cidade, da territorialidade negra e das religiões afro-brasileiras.
Mas o cultivo do axé de Bará é muito anterior ao mosaico ou à patrimonialização. Sabe-se de relatos de que, pelo menos, desde o século XIX, a entidade é celebrada no local. As histórias de como começou essa ritualística confundem-se com a própria fundação de Porto Alegre, e até mesmo, com a construção do Mercado. A versão mais contada e estudada é a de que Príncipe Custódio, vindo do Benin, no início de 1900, trouxe para cidade cultos, tendo sido responsável pelo assentamento do orixá. Custódio é também uma figura importante para a história do batuque no estado, associado à consolidação dessas religiões em cidades do interior, como Rio Grande.
Em tempos em que a violência aos povos de terreiro tem crescido em todo país, a presença de ritos públicos é ainda mais importante, aponta Vitor Queiroz, antropólogo e professor da UFRGS. Vitor é íntimo de Bará: os dois são parceiros de pesquisa. Na etnografia comparada “Eu gosto de você porque você gosta de mim: pesquisando Bará-Exu, seus afetos e mediações”, ele se dedica aos encontros entre religiosidade, mercados públicos e as pessoas.
Vitor é mestre em História Social da Cultura e doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Núcleo de Estudos da Religião (NER) e participa do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT), ambos na UFRGS. Em entrevista ao Nonada, conta sobre sua pesquisa e reflete sobre temas como o racismo religioso e a diversidade dos cultos afro-diaspóricos.
Nonada – Tua pesquisa aproxima o Mercado Público de Porto Alegre e o Mercado de Santo Amaro na Bahia. Como se conectam estes dois lugares centrais em suas cidades?
Poderia começar com várias respostas. A primeira – talvez a mais fraca – é biográfica, que é como tive acesso a esses temas. Eu estava com uma exposição com um amigo, Daniel, em São Paulo sobre Ilê Aiyê, bloco afro da Bahia. O Ilê tem temas anuais e, naquele ano, vi algo sobre “negros no sul”. Aparecia a Batalha de Porongos e uma série de imagens, de quadrinhos. Em um deles, estava lá o Bará do Mercado. Daniel é gaúcho e perguntei a ele “o que é isso?”.
Ao saber que existia um assentamento de um Orixá no Mercado de Público de Porto Alegre, no sul do Brasil, eu lembrei do Bembé do Mercado que existe em Santo Amaro. O Bembé é um ritual anual, de mais ou menos uma semana, em que há uma grande prestação alimentar, um grande banquete para os mortos e para os deuses. Ele começa com uma saudação, uma série de ritos, para Exu – que, vamos dizer, é mais ou menos equivalente à Bará no sul – e termina com uma oferenda a Oxum e Iemanjá.
Logo conectei que existiam algumas semelhanças entre o que acontece na Bahia e o que acontece aqui: espaços públicos, mercados centrais e históricos, dois lugares muito diferentes e ambos com esses cultos afro-brasileiros, ou afro-diaspóricos, nesses espaços. Me chamou atenção por ir na contramão de grande parte das bibliografias que temos disponíveis, e que trazem pressupostos, como o de que os cultos afro-brasileiros são escondidos, privados, invisibilizados. E aí falei: “Bom, temos dois mercados que abrigam a morada de uma divindade, de um Exu que mora no mercado.” Esses paralelos existiam e confrontavam a bibliografia e o entendimento (vulgar) de que esses cultos são meio ‘lado B’. Eu estava no ‘lado A’, no centro histórico. Eles são muito presentes, muito visíveis, muito ligados ao patrimônio material e imaterial. Mas uma semelhança atiça a gente, ela não responde as coisas. Você precisa dar vários passos para trás.
Nonada – Você escolhe um ponto de partida onde existe uma incerteza, uma brecha. Onde tem lugar para contradição. Te ouvindo me vem que Exu estaria tanto no objeto de pesquisa, quanto no próprio método.
Vitor Queiroz – Como qualquer etnógrafo, você nunca vai virar o outro – ainda bem. Mas ao mesmo tempo, para conhecer o outro, você precisa fazer uma série de traduções, e traduções não simplórias, em vários planos. E ao fazer isso, você começa a incorporar determinadas coisas desse outro que você estuda, porque senão, inclusive o diálogo é impossível. O tempo inteiro estou pensando nisso, que sou parceiro de pesquisa dele também. Parceiro humano de pesquisa de um ser não-humano. Essas qualidades, de estar em muitos lugares, do não necessariamente direto, da criatividade de pesquisa, de manter-se abertos aos diversos cruzamentos são qualidades de Exu.
Exu, então, sim, está na pesquisa duplamente. De fato, como ponto de chegada, mas também lá atrás. Tem algo que se diz sobre a entidade que é que ele mata o pássaro hoje, com a pedra atirada ontem. Isso aparece o tempo todo na pesquisa. Embora eu esteja olhando para frente, um dia depois do outro, é como se, quanto mais eu vou, mais ele está aqui atrás me empurrando. Não tem como ficar com tudo meio encaixotado da sociologia, como “a sociedade é assim”, “a política é assado”. Não vai dar. Estou lidando com uma divindade que daria uma gargalhada se eu fosse ser tão simplório assim.
Parece muito “diferentão”, mas não é. Eu faço o que a antropologia faz ao lidar com o outro. Você não tem que pressupor as coisas, precisa estar aberto para se surpreender e, de fato, fazer desenhos muito imaginativos com a literatura específica, antropológica. Ter ela na mão para dialogar com ela, dizer “ok, já fizeram isso aqui, mas essa situação na minha frente entorta tudo que já fizeram para outro lugar”. Ou não, “poxa, aqui existe um debate que parecia perdido, e que pode ser interessante de novo”.
Nonada – Ele é um orixá que foge de quaisquer definições aprisionadoras, mas como você falaria de Bará, o morador do Mercado Público de Porto Alegre, para aqueles, que, quem sabe, não o conhecem?
Vitor Queiroz – Que tarefa! Eu usaria uma metáfora das ditas ciências naturais. Imagine que n coisas existam. Agora imagina que não tem ligação entre elas, nem tempo. É quase impensável imaginar as coisas fora do tempo. E se a gente pensar nas coisas no tempo, significa pensar que tudo está em eterna transformação.
Agora existem as divindades que repartem o real, que estão absolutamente entremeadas com o real. Por exemplo, Xangô não é o Deus do Trovão. Ele é o Deus-Trovão. Imagine que a natureza está repartida em muitos domínios e esses domínios estão com os deuses todos. Agora tem esse deus primordial, porque faz a união e a transformação de tudo isso. Exu é essa divindade que aglutina as coisas. Que movimenta, que transforma – sendo que uma das transformações possíveis é a manutenção de algo. É o deus da ordem, que promove a continuidade das coisas. E também da desordem.
É o mensageiro, comunicador. É a ponte de ligação literal entre os vários domínios. Ele que pega a informação de uma divindade e leva para outra. Ele liga os pontos da existência todo. Por que ele está assentado na porta dos terreiros, na porta da frente? Porque precisa passar por ele. Ele é associado à chave, porque se ele não abrir ou fechar, nada acontece. A encruzilhada é literalmente o lugar para onde todo mundo vai e de onde todo mundo sai. Ele é o porteiro, o mestre de cerimônias.
Imagine o Mercado Público de Porto Alegre e aquela encruzilhada. Quantas coisas do interior do estado, produtos, mercadorias. Quantas coisas estão chegando naquele lugar, pessoas convergindo para aquele lugar. E quantas pessoas e coisas estão se afastando, saindo. Em níveis escalares, é um nível que é impensável para o ser humano. Em um único dia no Mercado, é humanamente impossível traçar todas as linhas, tudo que encontra e se desencontra ali.
Um deus que está vinculado à construção e desconstrução de tudo. Uma qualificação moral para essa figura, realmente, não faz sentido algum. Na Bahia, ele é muito chamado de “compadre”, ele é o compadre da humanidade. Ao mesmo tempo, ele está por perto da gente, fala todas as línguas. Ele se diverte com os humanos, isso também faz parte dele. Essa figura meio trickster, brincalhão, arteiro, bem-humorada. Grande farrista, piadista. É um ser voraz, que come tudo. Ele é o deus do destino. Na frente dele, você diz “espero tudo”.
É muito difícil apreender essa divindade. Tem um polo muito folclorizável, de um quase humano, de um ser que adora se divertir. E outro pólo bem cósmico, com uma totalidade muito grande, que fica ligando e desligando as coisas. Acho isso muito fascinante e que aparece em vários povos da África Ocidental, mas também centro-africanas, com outras divindades. Uma divindade tão divertida. Não consigo imaginar nada mais distante do que uma divindade careta. É tudo menos careta. É muito contraditório. Literalmente o deus da contradição.
Nonada – Como você enxerga as tensões que atravessam a ideia de o Mercado ser visto como um lugar sagrado?
Vitor Queiroz – Os mercados são lugares de moradia. São Casas. Sabendo ou praticando, a gente pode encantar mais ou encantar menos esses lugares. Em Santo Amaro, há mais de dez anos, houve a patrimonialização do Bembé pelo serviço de Patrimônio Estadual da Bahia. Mais recentemente, em 2019, pelo Iphan. E agora, já estão falando com a Unesco. Aqui é muito mais complicado, a coisa não anda. São várias camadas de patrimonialização que não conseguem proteger a casa de Bará.
Mas é interessante que a mobilização é para mostrar exatamente isso: ‘olha, esse lugar é sagrado, é encantado, não é um lugar comum’. Muito além de ser um local histórico, que várias famílias de europeus vieram, tem uma precedência, inclusive temporal, de que a população negra estava aqui antes de tudo isso. Foi ela que construiu esse lugar, e que, diariamente, também o movimenta. Economicamente é uma presença importante. Tem quatro Floras, lojas de produtos afro-brasileiros e esotéricos.
Há dois anos, houve uma ameaça – que já é mais antiga, que vem e volta, que é a da privatização do Mercado, com possíveis e prováveis consequências à restrição de circulação de pessoas ali, de alguma maneira. É importante que as quatro portas do Mercado estejam abertas. Ele é uma encruzilhada. São duas vias em pedra que se unem e que dão para as quatro portas. Cada porta tem uma forma, um corpo diferente de um Bará que mora em cada uma. É importante que estejam abertas o tempo inteiro, sem que uma pessoa tenha que dizer “olha, vou fazer um ritual”.
É difícil a gente pensar que um lugar muito cheio de gente, um lugar que não parece sagrado. A gente tem nossos preconceitos do que seria um lugar sagrado. E esses Mercados estão no meio da confusão. Esse deus, inclusive, é um deus primordial, de nascimento, de início das coisas, cosmogônicamente importante. “A primeira estrela da manhã”, fala-se sobre Exu. É uma divindade que é o dínamo do universo, que movimenta as coisas. Então, fala sobre as coisas que se encontram e se desencontram, em alta velocidade. Ou seja, o deus do movimento, da fala, da troca de dinheiro, da troca de qualquer coisa. Se você olha para esses mercados, tudo o que parecia menos sagrado torna-o mais sagrado. O mercado é o lugar que dá de tudo. Bará se manifesta ali e também, através de ritos específicos, porque as energias precisam ser alimentadas.
No caso do Bembé, tem uma ritualística de uma semana, mas também tem um Exu que mora ali o tempo todo. Mora no mercado, tal qual Bará, e também recebe pequenos agrados dos fiéis. Na África Ocidental, por exemplo, a gente também observa essa relação entre mercado, lugar sagrado precisamente associado a divindades como Exu, Legabá, e perto do centro do poder público. Como temos aqui, um mercado ao lado de uma prefeitura.
Essas religiões não são apenas religiões. Quando a gente pensa nas religiões dos Orixás, poderia falar das Vondus, dos Inquices, porque são vários, tanto nas Américas, quanto na África – em que se pese as milhões de diferenças – é muito comum o Pai de Santo, a Mãe de Santo, morar no seu terreiro. É lugar de moradia, é templo, é circulação, é ajuda mútua, é política não só formal. Ela é formal muito mais recentemente. Os Pais e Mães de Santo vem fazendo uma atuação politico-diplomática que é de um alto grau de assertividade, de planejamento. Essas religiões têm uma força de união frente a um mundo que é muito opressivo com elas.
Tem também a questão da ocupação do espaço. Quando se assenta uma divindade, você basicamente enterra os fundamentos. Como enterrar um ‘roteador’, algo de força e que, a partir daí, pode ser ritualmente construído com o passar do tempo. Você pode ter um assentamento de um Orixá, de uma pessoa que se inicia, de um terreiro. No caso desses mercados, o assentamento se confunde com o assentamento da própria cidade, especialmente em Porto Alegre. Então, acontece uma primeira inversão: não é o Mercado público que também tem o Bará. Pelo contrário, o Mercado Público é do Bará, antes do Mercado existir. Tem várias histórias e versões de como isso aconteceu, mas é provável que ele tenha sido assentado, inclusive, em sua construção. Mais do que isso, a cidade toda é sagrada. A cidade é de Bará.
Lembremos que até pouco tempo, os anos 40 pelo menos, Porto Alegre era portuária mesmo, o rio era porta de entrada e saída da cidade, tem a presença de Oxum. Inclusive, a gente olha a cor do prédio, amarelinho, e lembra que não se mexe nisso. É também outro paralelo com o Bembé, um rito que termina com uma oferenda às águas. Tem essa relação das divindades primordiais, de Exu. Divindades tônicas, ligadas à terra, aos ancestrais, aos mortos, e a cursos d’água.
Antes dos mercados existirem, nos dois lugares, africanas e descendentes, principalmente chamadas Negras Minas, também ligadas à África ocidental, eram as vendedoras ali. O lugar já foi escolhido por ser um território de compra e venda, era dominado por africanas, suas filhas e netas, com seus panos nas costas, seus tabuleiros na cabeça. A gente tem um registro até o século XX dessas mulheres nos corredores do Mercado Público. Elas continuavam vendendo uma série de coisas, inclusive artefatos mágicos. Então, a população negra vai sendo, com extrema violência, periferizada. As pessoas dizem que “essas religiões são invisíveis”. Não, elas podem ser invisibilizadas. “A população negra é periférica”. Não, ela foi periferizada, sendo expulsa dos centros das cidades em vários lugares, não só do Brasil.
A questão não é necessariamente “patrimonializar ou não”, mas ser deixado em paz. É a condição de existência daquele território, da continuidade dos cultos naquele lugar, está ligado ao lugar onde os ancestrais vieram, moraram, morreram, foram enterrados, etc. Os batuqueiros e representantes de outras religiões dizem: “A terra é nossa”. Eles não procuraram a posse, no sentido de comprar o centro da cidade de novo. Não é essa posse muito literal, mas é a ideia de que os ancestrais possam continuar sendo cultuados e alimentados naquele lugar. Isso torna e confirma que a terra é deles.
Tem o Ritual do Passeio, no Mercado Público de Porto Alegre, que todos os terreiros da cidade, e inclusive do estado, vão até lá saudar o Bará. Tem o movimento diário, centrípeto, as pessoas vão até ali, refazem esse território, refazem a força dessa entidade. O que se está falando, em resumo, é a condição de existência. A ideia não é um fetiche simples, ou pelo patrimônio, ou pelo pedaço de terra, mas pela condição de existência disso tudo. Isso, inclusive, implica na continuidade da bênção da divindade, abençoando a cidade toda.
Essas religiões trazem uma ideia belíssima de tempo. Tudo está fadado a um eterno desfazer. Você precisa periodicamente realimentar, refazer. É o axé. São religiões que têm essa visão, digamos, trágica do transcurso do tempo, e o poder de uma divindade também está relacionado à possibilidade de ela ser cultuada.
Então, não é que Bará ou Exu vão deixar de existir, mas é que, se, de repente, não se fizer mais nada nos mercados públicos, ele vai progressivamente se afastar dali. No Candomblé Baiano tem um dito famoso, em que as pessoas falam que se, de repente, todas as pessoas que cultuam Ogum, digamos, desaparecerem, a existência de Ogum também estaria seriamente ameaçada. Tem essa relação muito interessante. As divindades são maiores que os humanos, mas elas também precisam da agência humana para continuarem a fazer sentido para os humanos (não necessariamente para existirem).
Nonada – Você fala em “parceiros de pesquisa”, diferente de algumas nomeações próprias da antropologia como interlocutores ou informantes. Quem são esses parceiros? Você pode falar um pouco mais de como acontecem essas trocas?
Vitor Queiroz – Desconfio apenas da linguagem articulada, porque a gente não só fala. Os cultos afro-brasileiros, afro-diaspóricos, são religiões da mão, do toque, do preparo de alimentos e objetos. O interlocutor é aquele que fala com você, e somente falar é pobre, é pouco. Informante é quase policial. As anteriores eram ainda piores. Vejo parceiros de pesquisa como algo técnico, um compromisso, eu pesquiso em parceira com essas pessoas. Tem um antropólogo chamado Tim Ingold que diz que antropologia não é o estudo do outro, porque isso é quase zoológico. É um estudo com o outro.
No caso de quem estuda uma divindade, algo não-humano – e podia ser outro, até a relação com tecnologia, com máquinas, uma casa, até um vírus – precisa de uma mediação humana. Então, vai-se captando sinais, indícios, afetos, os efeitos dessa divindade. Parece muito místico, mas não é. Pensa quem estuda um vírus. Você vê? Eu não vejo. A gente tem acesso aos efeitos, seja epidemiológico, e todos os efeitos em um plano macro visível. Em um plano micro visível, para o microbiólogo, que está lá, estudando o vírus, ele precisa ter uma série de coisas que apontem: o vírus está aqui. Instrumentos que vão dizer o traçado, o trajeto do vírus. Você precisa de mediações laterais para ver alguma coisa não-visível, ou não-visível de maneira muito simples. No caso de Exu, ganha um pouco porque ele pode ser visível incorporado. Mas, mesmo assim, tem uma existência maior que sua incorporação.
São vários parceiros de pesquisa, desde pessoas ligadas à política institucional – no caso de Porto Alegre, Adeli Sell, Sofia Cavedon, especialmente, Adeli que tocou muito o processo de resistência à privatização. Tem o pessoal do mercado, os mercadeiros, a associação, e, claro, nem todos são de religião. Os mercadeiros não necessariamente gostam do Bará, muitos toleram, ou percebem que aquilo movimenta o mercado. E, no caso mais recente, perceberam que a mobilização salvou a pele deles da privatização. O próprio pessoal da Flora, que alguns dizem que não acreditam, mas oferecem, por exemplo, o produto mais caro da loja a ele anualmente. Fazem sem falar. Então, me pergunto qual o limite aqui entre o acreditar e não acreditar? É muito complexo. Converso com os mercadeiros de modo geral, de vários setores, não só os afro-religiosos.
Aqui em Porto Alegre tem Pai Tiago de Bará, descendente de santo do Príncipe Custódio, que é uma das pessoas que possivelmente assentou o Bará. Tem outras figuras importantes, como Bàbá Diba de Iyemonja. Esse ano, teve a Marcha Contra a Intolerância Religiosa, muito tocada pela Bàbá Diba. Vou me deixando conduzir. Quando vou aos mercados, vou com toda atenção aberta, converso com todo mundo.
Teve um momento significativo (que a gente chamada de “momento etnográfico”) para a pesquisa que foi uma conversa com um açougueiro no Mercado Público. Eu estava ali, falando da minha pesquisa – e nem era o objetivo. Quando eu fui chegando no assunto do Bará, ele olhou para o centro do Mercado, com um olhar de desconforto, que a presença da divindade estava naquele olhar. Você não olha com tamanho desconforto para uma coisa que você não sente uma presença muito forte. É um infra-gesto, ele não disse nada, mas esse olhar disse muita coisa sobre a relação de alguns mercadeiros com a entidade. Não de todos, porque é diverso.
O Natan, afro-religioso e trabalhador de uma das Floras, é uma pessoa com quem converso muito. É impressionante como eles são parceiros mesmo, me ajudam, eu chego lá, ele me conta, sem eu perguntar. Logo em um dos primeiros dias, quando recém tinha chegado aqui, ele me disse um dia “vem pra cá, vem para o lado de cá do balcão”. Uma interação de confiança.
Nonada – De que forma essas interações se articulam com a literatura sobre as religiões afro-brasileiras?
Vitor Queiroz – O que acontece é que você não tem um detentor, como o padre, o bispo, não problematizável de força sagrada. Você tem uma pessoa que disponibiliza essa força, aprende a lidar com ela. A mãe de santo e o pai de santo são pessoas de um trabalho que é simultaneamente concreto, manual, e intelectual. Porque essas pessoas controlam e pensam. Elas fazem pesquisa também, estão o tempo inteiro prevendo os efeitos de um mundo sobre outro, o efeito de um conjunto de gestos sobre outro conjunto de gestos, de modos muito sofisticados. A Sandra Li de Oxum me disse uma vez “a ancestralidade existe, é tradicional, permanente. Mas essa tradição é ao mesmo tempo dinâmica.” Lide com isso.
Para mim, tem uma inversão no sentido acadêmico. Não sou eu que tenho que explicar, realçar essas religiões. Pelo contrário, elas que me colocam problemas de marca maior, problemas teóricos. É isso também que marca uma certa virada nos estudos dessas religiões. Até os anos 80, pessoas como Marcio Goldman, Miriam Rabelo, Roger Bastide, toda essa bibliografia recente, decide pensar com essas religiões. Até então, tirando exceções importantes, a bibliografia era pouca. Estrangeira, como Pierre Verger. Mas se estudava religiões afro para estudar outra coisa, para estudar uma questão sociológica. Demorou para que se estudasse a sério essas religiões, porque elas são interessantes, importantes em si. Era sempre estudar elas, para chegar em alguma coisa que era mais importante do que elas. É um processo em aberto, de muitas camadas. Existem muitas possibilidades de estudá-las. Desde a militância política, do cotidiano de um terreiro, de uma articulação, de um rito específico – que é o que me interessa mais.
E quando chego nos ritos, já parto do pressuposto da existência de Exu. Evidentemente, vejo a existência dele se manifestar o tempo todo. A grande questão, para qualquer ciência, é ‘como?’. Como essa divindade existe, o que ela faz, como os humanos diferentes – religiosos, mercadeiros – se relacionam. Por isso não quis estudar os Terreiros, porque já são as pessoas que entendem que essa divindade existe. Eu prefiro trabalhar e conversar com pessoas como aquele açougueiro.
Nonada – Em nossa Newsletter Firmina, estamos atentos aos casos de ataque às liberdades religiosas e aos povos de terreiros. Tem sido bastante assustador perceber que eles estão cada vez mais frequentes, ou pelo menos, cada vez mais noticiados. Um termo que tem sido utilizado é “racismo religioso” para esses casos. O que você pensa sobre o termo?
Vitor Queiroz – Acho um termo interessante por focar exatamente no racismo. Não é só ‘intolerância religiosa’, porque isso você pode usar para qualquer coisa. Aqui no Rio Grande do Sul – acontece no Brasil inteiro, mas falando daqui – tem pessoas de todas as cores, mas continuam sendo tratadas como religiões negras. Não é um racismo simplório. É um racismo aplicado na própria concepção do que é possível e do que não, do que é público e do que não é público. Quando as pessoas iam ao Mercado, antes dessas mobilizações, os mercadores e os clientes se incomodavam com quem batia sineta.
A gente sempre viveu uma república laica, mas bastante cristianizada, com símbolos cristãos em vários lugares – e isso não choca as pessoas. O que choca é a sineta, o Ebó deixado na esquina. Tem uma hipocrisia tremenda. O termo racismo religioso é interessante para mostrar esse lado relacional – porque raça é uma relação, não é algo tão simples. Acaba se levando essas religiões como menores, de negros, de pobres, são tratadas de maneira jocosa. Não se percebe a grandeza dessas religiões. No limite, a grandeza da existência dessas pessoas. Humanas e de seus deuses.
A grande questão nunca foi a religião. Aqui é fachada, na verdade, para essa “tolerância”. O que está em jogo é a existência dessas pessoas. É isso que incomoda. Não é o ato religioso A ou B, mas a própria existência. Incomoda elas irem no centro da cidade. Falarem “peraí, 250 anos de Porto Alegre, casais açorianos e seus escravos”. “Peraí, a cidade também foi fundada por negros”. Incomoda um professor negro estar na universidade, falando desses assuntos, de maneiras não folclorizadas. Só enunciar, deixa a gente ver o quanto é desconsiderado.
Existe um aumento de casos, mas também existe uma continuidade. A vida sempre foi muito dura para essas pessoas. São espaços duramente perseguidos. O que a gente vê hoje não é tão recente, temos um passado terrível e mais ou menos contínuo. Essas religiões continuarão sendo problemáticas para a sociedade enquanto ser negro for um problema. Enquanto existir racismo, elas continuarão sendo um problema. Não está nelas, no que fazem ou deixam de fazer.
No Caso Lázaro, ano passado, por exemplo, disseram que ele era de Umbanda, quimbanda, e imediatamente, a mídia transforma isso. Os pesos e as medidas são muito diferentes. Você não vê um assassino que tem uma cruz no peito e ser apontado “tá vendo, tinha cruz no peito”. Não se traz isso. Os problemas são outros.
Nonada – Quais caminhos você enxerga para o enfrentamento das intolerâncias religiosas hoje?
Vitor Queiroz – São vários e a gente tem que unir forças, saber quem são nossos parceiros e seus raios de atuações diversas. É importante ter um deputado, na política institucional. É uma frente de enfrentamento, uma vez que são lugares dominados por outros grupos religiosos.
Tem a militância pública, na rua, tem o que a gente está fazendo aqui, as conversas do dia a dia, do pólo institucional ao mais capilarizado. É importante que as pessoas no mínimo conheçam. A ideia de conhecer é importante. A ideia de ‘tolerância’ e ‘intolerância’ é também muito problemática, é uma ideia muito cristã e protestante. Agora, tem coisas que são emergências. Precisa de assistência jurídica, precisa ter alguém barrando projeto de lei, alguém que consiga ter acesso à delegacia para dizer que estão invadindo um terreiro agora.
A ideia de ‘tolerância’ é complicada porque implica uma noção de convergir para uma igualdade, para uma harmonia imutável. Isso não existe. Sabendo que não existe, que as demandas vão ser mutuamente contraditórias, para mim é um jogo de redução de danos. Como a gente consegue ser o mais justo possível com essas demandas? O mundo da tolerância parece um mundo ou do acordo ou do gueto. Os peregrinos saíram da Inglaterra e foram para os Estados Unidos, ou seja, “vai para outro lugar onde você possa exercer a sua coisa”. Ou seja, se apartar. Os mercados públicos tensionam isso, colocam o problema na cara da gente. “Lide”.