Vitória Pimentel*
Foi através de uma notícia no jornal que o seu destino mudou. Em 2011, Leonardo Duarte leu sobre a abertura de vagas da ONG Sol Maior na sua então escola, o La Salle Pão dos Pobres. A empolgação da avó e do pai, com quem vivia, deu forças para que ele procurasse fazer parte da ONG. “A Sol Maior me mostrou que eu posso estar em qualquer espaço, que posso fazer qualquer coisa”, define Leonardo, que há 11 anos dedica parte de sua vida à música. Influenciado pelo pai, um aficionado pelo samba, ele teve contato com o cavaquinho desde muito cedo.
Criada em 2007, a Sol Maior oferece oficinas gratuitas de música, dança e canto para jovens entre seis e 17 anos. Leonardo faz parte das mais de 2.500 pessoas que já passaram pela instituição, cuja sede principal fica no Multipalco Eva Sopher, ao lado do Theatro São Pedro. Nascido e criado na Zona Leste, ele foi a primeira criança do bairro Agronomia a fazer parte da ONG.
Duas vezes por semana, saía sozinho de casa às 7h30 para ir ao centro da cidade. A viagem de uma hora era um preço barato a se pagar para participar de um projeto que lhe deu uma nova forma de se enxergar no mundo. Mais do que isso, o projeto permitiu que ele vislumbrasse um futuro diferente para si. Desde 2014, a instituição também atua diretamente na periferia. Sua outra sede fica na Associação das Creches Beneficentes do Rio Grande do Sul, no bairro Humaitá.
Em 2015, Leonardo iniciou a trajetória como jovem monitor dentro da instituição. Foram seis anos auxiliando as crianças até que, em 2021, foi efetivado como educador social. Agora, ensina crianças de todas as idades a tocar percussão. Seu objetivo é prepará-las para a apresentação de final de ano, quando irão ocupar o palco do Theatro São Pedro.
Com olhos acolhedores e sorriso contagiante, ele recebe quem chega na instituição de braços abertos. Seu jeito brincalhão e animado faz com que ele se misture entre os alunos — quem não o conhece como professor, pode confundi-lo com um dos estudantes. É por isso, também, que Leonardo consegue abrir um espaço de diálogo com os integrantes e garantir que as diversidades sejam respeitadas e celebradas. Apesar de inquieto com os novos projetos desenvolvidos dentro da ONG, é com serenidade que ele relembra seu passado e comemora as conquistas.
O que fez você se interessar pelo mundo da música?
Leonardo Duarte – Meu pai sempre tocou e eu sempre gostei desse envolvimento, mas foi depois que eu vi um amigo do meu pai cantando e tocando violão que peguei o gosto pela música. Comecei a gostar muito do violão e a aprender através de revistas. De início fui sozinho, buscando. Comecei por causa do rock. Queria tocar guitarra, aí comecei pelo violão, porque falavam “Ah, se tu sabe tocar violão, tu sabe tocar guitarra”.
Depois que a música entrou na minha vida, eu mudei meu jeito de ser e pensar. Quando a gente cresce na vila, conhece tudo que é ruim, mas quando é criança parece legal. E a música me ensinou a pensar, ter outra visão. As pessoas aqui e o espaço eram muito diferentes do que eu estava acostumado a ver.
Quando a gente entra aqui [na ONG Sol Maior] pela primeira vez é tudo muito mágico. “Bah, que lugar chique. Como é que eu tô num lugar desse?” Até a nossa família mesmo… “Meu filho tá lá no Multipalco, na Sol Maior e tal”. Então a nossa perspectiva era muito grande em relação a isso. E realmente é muito grande. Muda a vida das pessoas. Acho que o que [o projeto] fez comigo, faz com todo mundo. Muda, de fato, a maneira de tu enxergar a vida lá fora, porque a gente só conhece a vida da vila onde a gente cresce. E a música entrou na minha vida e mudou tudo isso.
De que forma a sua infância influenciou no caminho que você percorreu para chegar até aqui?
Leonardo Duarte – Vi que todo mundo fazia sempre as mesmas coisas. Eu me acostumei a ver as crianças virarem adolescentes e irem para uma boca de fumo. Tive diversos amigos que foram, alguns morreram. Essa é a realidade. E eu queria algo diferente, não queria fazer isso, não queria ter esse mesmo destino. E foi isso que a música me oportunizou, me incentivou muito para que hoje eu estivesse aqui.
Cresci em um ambiente bem vulnerável, minha mãe sempre trabalhou muito. Fiquei muitas vezes com a minha vó. Algumas vezes meu pai trabalhava. Era sempre aquela coisa: quando um estava desempregado, o outro trabalhava. Então eu sempre fui muito “revezado”, assim. Mas o ambiente em que cresci foi muito mais o meu pai com a minha vó e a minha irmã, porque a minha mãe estava sempre trabalhando.
Hoje, como educador, vejo muita semelhança entre as crianças e quem eu era quando entrei aqui. Parece que a gente sempre vem do mesmo lugar. O olhar inocente que eles têm, de não entender, de achar que tudo é muito grande, achar que não pode fazer. E é para isso que a gente trabalha, para fazer eles entenderem que é possível fazer as coisas. Se eles quiserem, podem ganhar o mundo.
O que fez você ir para a percussão entre todas as oficinas?
Leonardo Duarte – sempre gostei de tudo. Comecei no rock, mas na Sol Maior eu comecei tocando samba. Era uma coisa que eu não conhecia, via pelo meu pai, mas não gostava muito. E foi onde comecei a estudar o samba, o choro, foi aí que fui gostando e aprendendo. Aprendi cavaquinho, pandeiro, outros diversos instrumentos de percussão, e acabei gostando. E aí a percussão também veio da oportunidade de trabalhar aqui. Eu fiz coral, tentei fazer teclado, mas não deu muito certo. O que tinha oportunidade e eu tinha disponibilidade de horário, eu estava lá. Acabei me destacando na percussão e fui chamado para trabalhar aqui.
Como você enxerga a diversidade dentro da cultura?
Leonardo Duarte – De um modo geral, o espaço para a diversidade de pessoas negras e LGBT ainda é pequeno. Aqui dentro da ONG, nós somos muito abertos e incentivamos que as crianças sejam quem são, sem medo de discriminações. Nós também falamos muito sobre o respeito ao outro, às diferentes identidades e ideias.
Você acha que a Sol Maior ajuda a levar cultura para as periferias?
Leonardo Duarte – Consegue, com certeza. Nós fazemos apresentações em escolas públicas em vários bairros e isso chama a atenção dos alunos. Muitos deles nos procuram e vêm fazer parte da ONG depois dessas apresentações. O nosso propósito é transformar vidas através da música e tirar aquela visão de que a gente não pode estar em todos os lugares.
Eu sou o fruto de como A Sol Maior dá oportunidades para os jovens entrarem no mercado de trabalho. Comecei como aluno, fui monitor, depois monitor nível 1 e agora sou educador. Fora daqui, os alunos também têm oportunidades [pelo projeto Vida Pós-Sol Maior] de estagiar em outros espaços, como bancos, agências de viagens e outras empresas privadas.
Qual o teu objetivo dentro da ONG hoje em dia?
Leonardo Duarte – O meu objetivo é tentar instruir o máximo de alunos para que eu possa sair e eles fiquem no meu lugar. Quero que eles ajudem a transformar a vida de mais pessoas, que levem cultura para outros lugares e mostrem outras realidades, diferentes da vila, mostrar que tem outra saída.
Eu desejo que a Sol Maior cresça, se torne gigante, mais do que já é. Que mais crianças e adolescentes, logo após se tornarem adultos, estejam aqui também. Fazendo mais coisas, criando também. Meu desejo é que mais pessoas trabalhem e criem projetos aqui.
A Sol Maior usa a Lei de Incentivo à Cultura. Como você enxerga essas leis? Como elas influenciam no desenvolvimento da cultura aqui no RS?
Leonardo Duarte – Essas leis são muito importantes, porque dão oportunidade para que as instituições executem ideias e criações que ficariam só no papel. A ONG é exemplo de como esse investimento dá resultado, são centenas de crianças que têm suas vidas transformadas pela música todos os anos. Essas leis precisam ser mais divulgadas, mais bem distribuídas. Existem pessoas com desejo de fazer muitas coisas, mas não sabem que existe esse incentivo, que podem fazer algo novo através dessas leis.
*Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.