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Natalia Borges Polesso : “O capitalismo está no extermínio das alteridades”

Para Natalia Borges Polesso, o fim do mundo já está acontecendo.  O apocalipse é a exploração da terra, a “usurpação da vida” patrocinada e capitaneada pelo capitalismo. Citando a escritora feminista Donna Haraway, que pensa sobre o fim do modelo atual de civilização e o esgotamento dos recursos ambientais, ela tem refletido bastante sobre o assunto. Seu livro mais recente, A extinção das Abelhas (Companhia das Letras, 2019), demonstra essa preocupação.

Natalia é uma das escritoras contemporâneas mais conhecidas de sua geração, tendo lançado até agora sete livros, entre eles Amora (Não Editora, 2015), vencedor na categoria contos do Jabuti, e Controle (Companhia das Letras, 2019). Atualmente, ela mora na cidade Lavras, no interior de Minas Gerais, com sua esposa, e ocupa sua rotina com vários projetos literários, trabalhos de traduções e estudos para concursos na área da docência na área da Teoria Literária. 

Conversamos via vídeo chamada sobre a sua carreira, o processo de escrita e assuntos atuais sobre a literatura brasileira.  “Do que o autor ou a autora pensam em seu texto até a leitura do público, não se tem controle. Cada um tem a sua visão do mundo, então muita coisa pode cair no abismo dessa tentativa, desse salto que a gente faz ao tentar se comunicar por literatura”, afirma. Confira a entrevista a seguir. 

Nonada – Você escreve em diversos gêneros literários, conto, poesia, romance, crônica. Como é o processo para cada um?

Natália – A poesia, para mim, é a mais complexa, de todas. Quando eu escrevo poesia eu tenho vergonha do que escrevo. Mas, assim, acho que tudo depende do projeto. Porque tem contos do Amora que eu comecei a escrever e terminei seis meses depois, porque eu não conseguia pensar em um final, ou porque alguma coisa não estava fechando, ou contos que eu escrevi em um dia em uma sentada. O conto, eu posso escrever em um dia ou em seis meses. Mas o romance, eu não tenho essa opção, não vou escrever um romance em um dia. A inspiração acho que é até a mesma, o exercício, as propostas de exercício que eu crio para escrever talvez sejam as mesmas, mas o que muda fundamentalmente é o tempo que a gente dedica para uma ou outra empreitada.

Em um livro de contos você vai tirando um, colocando outro, e monta o quebra-cabeça. O romance é um quebra-cabeça em construção o tempo todo. E quando em fase de finalização, precisa-se de fato ler e reler e ficar mais tempo, até se desgastar. Para mim, a literatura é um exercício, por isso eu acho tão legal as ideias das oficinas. Até gosto de fazer e de dar oficina hoje. Esses exercícios desarticulam, dão outra lógica para pensar. 

Nonada – O que são esses exercícios?

Natália – Isso é algo que eu fazia desde que eu comecei a escrever, às vezes eu estava lá esperando para dar aula de inglês em uma empresa e tinha aula de manhã. Tinha que ficar 40 minutos esperando, e ficava olhando o copinho de café, e começava: agora eu vou escrever aqui um fragmento sobre o copinho de café, sob a perspectiva da lâmpada, agora eu vou descrever até esgarçar essa imagem e não ser  mais um copinho de café. E depois eu talvez eu incorporaria isso em algum texto. Tem vários exercícios de personagem, essas proposições, e às vezes isso é incorporado, às vezes não. Às vezes a gente empaca, e esses exercícios ajudam a levar adiante um projeto.

Nonada – Com Amora, prêmio Jabuti de melhor livro de contos, sua trajetória mudou.

Natália – Foi uma mudança total na trajetória. Por exemplo, quando eu fui falar com o meu editor na Feira do Livro de Porto Alegre, ele falou que já tinha vendido quase toda toda a tiragem e eu não conseguia acreditar. O anterior, Recortes para álbum de fotografia sem gente, foi publicado em 2013. Era 2015 e ainda tinha um monte de livro para vender. 

Quando ele ganhou o Jabuti, que é super vitrine, eu comecei a ser chamada para vários eventos, entre eles, teve o Bogotá 39, que também fez eu viajar um monte. Viajei por quase todos os países da América Latina para falar do livro. Fui para a China, em Macau, para a Rota das Letras também. A gente vai aprendendo a falar sobre o nosso trabalho, sobre as nossas questões. Mudou tudo, inclusive minha relação geograficamente com o mundo.

Todas essas experiências e vivências nos mudam, e o Bogotá 39 ainda por cima ainda foi algo muito escandaloso para mim, porque eu conheci alguns autores. A gente lê literatura latino-americana, é uma das matérias do curso de Letras, e eles não leem literatura brasileira. É muito mais difícil a literatura brasileira ser exportada, aí eu tive a noção real. Se para os Estados Unidos, e a Europa é difícil, aqui para os nossos vizinhos também, a gente é super isolado. 

Nonada – Por quê? Pela língua?

Natália – Acho que pela língua e pelo mercado, porque o nosso cresceu bastante nos últimos anos, mas é um mercado que não gera muito interesse exterior. Publicar o Amora nos Estados Unidos – tudo bem que foi pela Amazoncrossing, um ramo da Amazon que é para publicação editorial mesmo, não é para autopublicação -, mas a dimensão que eles têm lá de publicar um autor é bizarra, porque é muito livro. É muito público. E bolsa de tradução e tudo, essas políticas foram sendo brutalmente destruídas depois do golpe e vários desmontes dos projetos de educação e de cultura. Acho que todas essas coisas acabam colaborando para que a gente esteja cada vez mais isolado também. Se já não eram boas, as políticas dos últimos anos não melhoraram e ainda assim o nosso mercado interno de literatura cresceu bastante.

Nonada – Conta um pouco da experiência do Corpos Secos, livro escrito junto a Luisa Geisler, ao Samir Machado de Machado e ao Marcelo Ferroni.  

Natália – Foi muito massa, porque era uma experiência que se aproximava bastante de sala de roteiro. Nem sempre uma experiência de roteiro é boa, mas com esse pessoal foi super massa, com a Luísa, o Samir e o Marcelo, nos demos super bem. Temos um grupo de whatsapp até hoje, em que a gente fica mandando notícias bizarras sobre pesticidas e o fim do mundo. O livro foi escrito e finalizado antes da pandemia, ele só foi lançado durante a pandemia. Trabalhamos remotamente, e só nos encontramos uma vez no final, com o manuscrito na mão da Luara [França], que era a nossa editora, para resolver alguns apontamentos, tirar as fotos, etc. 

Sobre o processo, era basicamente uma coisa assim: na primeira reunião, a gente planeja as diretrizes do que ia ser o livro para não ter furos de lógica, por exemplo, combinar quanto tempo faz que caíram as condições de vida do Brasil, quando caiu governo, a internet, o abastecimento. E a partir disso, se tem as personagens X e vocês saem daqui e vão para lá, isso a gente decidiu todo mundo em conjunto. A Luara estipulou um prazo de data e páginas entregues. 

Ela colocava na ordem que ela achava que tinha que ser, voltava para a gente e falava: “agora todo mundo vai entregar de novo dez e doze páginas”, e seguimos. O trabalho dela foi o trabalho do livro, se não só teríamos fragmentos soltos de uma ideia de livro apocalíptico. O livro foi lançado em abril ou maio de 2020 e foi o primeiro do selo Alfaguara, no caso, a ser lançado durante a pandemia. Um estudo de caso para ver como ia ser. 

Nonada – O que era o quadrinho Escritora Incompreendida, você mesmo desenhava também? O que era ser incompreendida na época? E continua incompreendida agora?   

Natália – Quando eu estava no doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), tinha uma matéria que era sobre gêneros literários, e era para a gente experimentar diferentes gêneros. Eu já tinha essa ideia da escritora incompreendida e comecei a fazer quadrinhos, eles eram feitos no falecido Paint. Eu desenhava e concebia, pensando nessa estética do tosco, do bonequinho palito. A Escritora Incompreendida nasce como uma demanda dessa aula. 

Era essa escritora que publicava os textos que não eram compreendidos em seu todo, e acho que isso talvez funcione para todas as mulheres escritoras, eu acho que a gente continua sendo incompreendida de algumas formas. E, assim, qual texto que não é incompreendido, né? Vamos falar a verdade, do que a autora, ou o autor, pensa até a sua publicação e a leitura dos leitores e leitoras, não se tem muito controle, de qual é a referência, de qual é a visão do mundo. Então muito cai no abismo dessa tentativa, desse salto que a gente faz de tentar se comunicar por literatura. Acho que a escritora incompreendida continua incompreendida ainda em algumas publicações. 

Por exemplo, no meu livro Controle muitas pessoas ficaram brabas com o final, acharam o fato de ser “aberto” ruim ou ficaram chateadas que a Joana e a Nanda não ficaram juntas. Teve até gente que ficou chateada porque eu teria matado a Nanda, mas, gente, eu não matei a Nanda. Acho que no próprio A Extinção das Abelhas, muita coisa ficou incompreendida ali sobre o fim do mundo mesmo, dessa visão de que o fim do mundo é o capitalismo, é o que está acontecendo, é esse processo contínuo de exploração da terra, de usurpação da vida. Claro, muitas pessoas compreenderam isso, mas tem nuances ali que eu acho que não ficaram tão compreendidas. A escritora incompreendida segue incompreendida sim. Esse é um projeto que eu estou sempre ensaiando retomar, mas, engraçado, não sei porque eu não consigo. Agora que a gente está conversando sobre, eu fico de novo com vontade de retomar. 

Nonada – Como você avalia o atual momento da literatura contemporânea brasileira? 

Natália – A literatura brasileira tem produzido muitas coisas boas e diversas. Pensando nessa noção de campo literário, do que está circulando (não só o que está sendo produzido, mas o que chega nas pessoas), acho que esse boom de pequenas editoras entre 2011 e 2015 colaborou muito para uma produção de pessoas que não tinham acesso a grandes editoras. Nesse período, há também o aumento do uso de redes sociais, Instagram, Facebook, Wattpad e mesmo a vinda da Amazon que, por um lado, é ruim, porque acaba com pequenas livrarias, ao mesmo tempo, ela permite publicações independentes.

Acho que com esse conjunto de coisas que aconteceram nos últimos anos, a literatura deu uma pluralizada nesse sentido de produção e de circulação, de como essa literatura chega nas pessoas. Mesmo as grandes editoras começaram a se preocupar um pouco mais nos últimos anos com comitês de diversidade, por exemplo. O nicho LGBT cresceu demais. Tem uma literatura jovem adulta…Estou falando de nichos, porque também estou falando de mercado, e tem muita gente publicando coisas legais.

O momento historicamente é muito bom, mas ainda é muito deficitário de diversidade. Se a gente pensar no que ainda poderia ser, ainda falta muita coisa para a gente ter uma literatura diversa. Acho que eu posso citar sempre o trabalho da professora Regina Dalcastagnè. Ela fez um estudo para ver quem eram os autores e quais eram as personagens da literatura brasileira. E, alarmantemente, a gente tinha lá 72% de homens brancos héteros cis escrevendo no eixo Rio-São Paulo, isso em 2010. É alarmante que um país tão diverso como o Brasil tenha esse dado. 

Nonada – Como você observa o espaço para personagens LGBTQIA+ na literatura brasileira nos últimos? E você vê uma nova leva de autoras e autores trabalhando com essas temáticas? Mudou alguma coisa na representação?

Natália – Acho que, historicamente, personagens LGBTs sempre existiram, agora eles estão mais fora do armário e com mais consciência da sua sexualidade e da questão de gênero. Isso, claro, reflete todo um processo social que a gente vem vivendo. E eu acredito que cada vez mais veremos literatura que aborda essas questões ou que não deixa passar o fato de ter só personagens héteros nos seus livros. Isso tem aumentado, sempre tem alguém do espectro ali, da sigla LGBTQIA +, e isso tem crescido muito mais na literatura jovem adulta. Tenho acompanhado cena, tem a Elaine Baeta, Clarinha Alves, tem muita gente, o próprio Samir Machado de Machado tem um projeto que tem os seus protagonistas gays. O último prêmio do Mix Brasil, quem ganhou foi o Lino Arruda, que tem um trabalho incrível de quadrinhos chamado Monstrans, e é muito bom mesmo. Acho que os espaços têm sido conquistados, como eu te disse dentro de uma perspectiva que a gente pensa: “podia ser melhor”, mas tá rolando. 

Nonada – Como foi a experiência de escrever crônicas no Pioneiro?  

Natália – Escrevi para o jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, e também às vezes escrevia para a Zero Hora, de Porto Alegre. Em geral, foi uma experiência legal, os temas eram variados, porque eram crônicas. Foi uma experiência de dois anos. Normalmente eram assuntos que estavam em pauta na semana, mas quando começou a campanha do Bolsonaro, até um pouco antes, teve um caso, uma vez que eu peguei um avião com ele, e escrevi uma crônica sobre isso, e foi bizarro. Sofri muitos ataques. Eu me lembro que eu fui tentar fazer um boletim de ocorrência, em 2018, e foi complicado fazer um com os prints dos comentários. 

Na época, eu até comentei com o jornal que quem se mobilizou para estar sempre lá comentando e defendendo era o pessoal da Marcha Mundial de Mulheres. Eu frequentava a unidade de Caxias do Sul, e a gente se organizava sempre para fazer eventos. Era a galera que estava sempre acompanhando as crônicas e que de alguma forma ia lá tentar dizer alguma coisa quando aconteciam ataques. Eu parei de escrever por causa disso, porque quando começou a campanha do Bolsonaro, eu escrevi uma crônica um pouco antes da eleição que se chamava ELE NÃO, e foi a gota d’água. 

Inclusive, tem um cara que hoje é vereador em Caxias, é algo público, está lá no Facebook dele, ele postou um texto com a minha foto do Pioneiro, dizendo que naquele momento de grande (não sei exatamente o que ele colocou), mas enfim, ele chamava as pessoas para darem uma lição nessa colunista lésbica que era uma aberração. Uma coisa horrorosa assim. Na época, eu tive que buscar ajuda psiquiátrica. Me lembro que o jornal não deu tanta atenção a isso, não se manifestou…Eu até falei, “gente, está acontecendo isso e não tô legal”, e o jornal meio que falou que era liberdade de expressão das pessoas, então, eu disse que realmente não gostaria de continuar escrevendo. 

Eu vejo que o Jeferson Tenório sofreu nesse ano, no último ano, e como as coisas já mudaram muito, como teve um grande apoio, todas as dinâmicas parece que mudaram em pouco tempo, e que bom. Para mim foi estranho, foi diferente,  as pessoas começaram a achar fotos minhas antigas e da Dani e comentar. Acabei fechando os comentários, fechei o Facebook, e tudo e saí do jornal. Foi uma experiência que começou boa e terminou muito traumática. 

Nonada – Qual, em sua opinião, é o papel do escritor em um momento conturbado politicamente, como é o que o Brasil vive nos últimos anos?

Natália – Eu não acho que todo mundo tenha que se comprometer com alguma coisa expressamente política. A arte tem que ser livre para a gente fazer o que quiser, e isso é extremamente político. Ainda mais quando a gente presta atenção em artistas, autoras e autores que não estão no mainstream, ou que nem sempre puderam publicar. Olhar para essas escritas já é algo político. Estar comprometido com as nossas escritas já é algo político. 

Por exemplo, a minha obsessão no momento é o fim do mundo, e por fim do mundo, eu penso na era do capital, conforme a Donna Haraway, e a minha escrita está comprometida com isso. Repensar as coisas do mundo, de perto de mim, de onde eu vivo e também em escala global. Então acho que o papel do escritor é se comprometer com a sua escrita.

Nonada – Como você conhece o mundo atualmente? Se mantém informada ou tenta desvencilhar um pouco? 

Natália –É que nem aquele meme, um pouco de droga e um pouco de salada. Droga sendo o noticiário, twitter e tudo mais, e a salada sendo a gente olhar pro mundo não mediado pelas telas. A nossa informação está sempre muito mediada pelas telas e às vezes, dependendo do veículo, a coisa é muito espetaculosa. A pandemia foi uma coisa muito pesada para todo mundo em termos de informação. Eu, por exemplo, fiquei viciada em jornal, porque eu queria saber os dados da Covid. Chegou uma hora que eu pensei que a morte está espreitando, e é bizarro isso. 

Eu assisti recentemente a uma série chamada Working in Progress, e tem um momento na série em que estoura a Covid e a personagem começa a ver a morte assim, tipo, passeando com o cachorro, varrendo uma casa. Estar com essa mediação da televisão, da notícia, era estar com essa mediação da morte. Pensando em termos políticos, um ano de eleição e o projeto de morte do Bolsonaro, acho que a gente continua com essa mediação. Então, por vezes, eu tento me afastar. 

O capitalismo está no colonial, no projeto de extermínio e morte das alteridades, tudo o que não é o homem branco rico do norte global. Para a gente conseguir sucesso no nosso projeto decolonial, de escapar disso, não dá para ficar sempre mediado por essas notícias, porque senão a gente não tem saúde para isso. E olha que estou falando de uma posição super privilegiada, porque pensando em todas as tensões que nos atravessam em questões de raça, gênero e classe, né, ainda estou em um lugar que é menos tenso, por exemplo, do que uma sapatão preta de periferia, então. Mas é isso, um pouco de droga e um pouco de salada. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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