Por Christiane Wagner, professora e pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP/Jornal da USP
A discussão sobre a função da arte em relação à inclusão social e à sustentabilidade se deve, em primeiro lugar, aos fatores relacionados a diferentes contextos e culturas para compreender o momento atual. Assim, é igualmente importante compreender o desenvolvimento das civilizações e a evolução científica e tecnológica como processos e sucessivos desafios dependendo de cada momento histórico, valores socioculturais e crenças.
Desde o início do século 20, novas formas e técnicas de arte têm sido essenciais para as transformações culturais relacionadas com a ruptura de valores, a busca constante de soluções para os problemas sociais e as mudanças de hábitos e comportamentos. Assim, a função social mais importante da arte e da cultura é a de criar um equilíbrio entre o ser humano e seu ambiente. Este equilíbrio mediante a arte é alcançado sobretudo por meio do conhecimento e compreensão da realidade social.
Consequentemente, esta discussão parte da seguinte pergunta: para que serve a arte em uma sociedade cosmopolita? Essa questão está relacionada às ambições de uma sociedade de mercado em muitos segmentos, culturalmente distintos, das grandes metrópoles no que diz respeito à produção artística e cultural. Independentemente de ser um artista, designer, autor, ator, músico etc., essa realização depende da receptividade, que deve ser compreendida e interpretada para atender ao propósito de sua criação. Em geral, para estabelecer um intercâmbio de valores, quase sempre buscando recompensa e lucro, seja desenhando soluções, seja questionando, todos encontram o mesmo objetivo, o de resolver os problemas de nossa sociedade.
Falar sobre a função da arte é pensar nas sociedades e, principalmente, considerar artistas, arquitetos e designers em suas realizações e representações dos valores necessários para as culturas em suas realidades distintas. Neste sentido, a referência do historiador de arte Giulio Carlo Argan, em sua obra História da arte como a história da cidade, situa essa abordagem sobre o papel das artes em sua forma de explorar o espaço urbano, apresentando a arte em sua transformação.
Nessa transformação, a interdependência artística, cultural e política deve ser entendida globalmente como um processo significativo para a vida urbana contemporânea, em especial nas articulações que reconhecem que a mudança climática está tendo impactos crescentes sobre as pessoas, sobretudo no mundo em desenvolvimento. Para tanto, a responsabilidade social é uma das principais características desta interdependência em seus aspectos funcionais, racionais e objetivos, não em detrimento dos valores sensíveis individuais, seus desejos e particularidades, mas na síntese da relação entre razão e sensibilidade para satisfazer, em todos os aspectos, às aspirações idealizadas pela sociedade. É justamente nessa interdependência que se encontra o potencial do arquiteto, artista e designer, criando e recriando novos hábitos e funções com base em pesquisas e associações transdisciplinares para alcançar as melhores soluções para a inclusão social.
As atividades de criação, por sua intenção objetiva e determinação, diferenciam-se do artista em suas criações subjetivas — não que a arte em sua realização subjetiva não esteja preocupada com questões importantes de nossa realidade social, mas simplesmente devido à diferença no processo criativo. Enquanto a arquitetura e o design visam projetos focados na solução de problemas, a arte a questiona, e o meio ambiente possibilita cada momento da história social mediante as experiências vividas, considerando ideias, entendimentos, pensamentos, vontades, propósitos, valores culturais, éticos e estéticos, as realizações em suas diversidades formais e universais que representam o espírito do tempo.
Em princípio, todas as expectativas artísticas para atender às necessidades globais de inclusão social, democratização e economias sustentáveis dependem não apenas de seus projetos, mas principalmente da vontade política e de novos hábitos culturais e de consumo. Além disso, a realização artística também espera soluções com projetos sociais relativos às diferenças culturais, educação e luta contra a pobreza e a fome como base fundamental para uma ampla e dinâmica inovação no atual sistema da “cultura do desperdício” característica de nossa sociedade de consumo. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresenta 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável:
(1) Acabar com a pobreza em todas as suas formas em todos os lugares;
(2) Fome zero;
(3) Garantir vidas saudáveis e promover bem-estar para todos em todas as idades;
(4) Educação de qualidade, que permite mobilidade socioeconômica ascendente possibilitando a erradicação da pobreza;
(5) Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas;
(6) Assegurar o acesso à água e ao saneamento básico para todos;
(7) Assegurar o acesso à energia, confiável, sustentável e moderna;
(8) Promover o crescimento econômico inclusivo e sustentável, emprego e trabalho decente para todos;
(9) Construir uma infraestrutura resistente, promover a industrialização sustentável e fomentar a inovação;
(10) Reduzir a desigualdade dentro e entre países;
(11) Tornar as cidades inclusivas, seguras, resistentes e sustentáveis;
(12) Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis;
(13) Tomar medidas urgentes para combater as mudanças climáticas e seus impactos;
(14) Conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos;
(15) Manejo de forma sustentável das florestas, visando combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra, deter a perda de biodiversidade;
(16) Promover sociedades justas, pacíficas e inclusivas;
(17) Revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.
Todas as atividades da vida social, de certa forma, estão relacionadas com os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável. Consequentemente, as artes como formas de representação contemporânea assumem o comprometimento com esses 17 objetivos. Além disso, é necessária a cooperação de toda a sociedade global com muito mais força para garantir o funcionamento das estruturas sociais, que dependem do desenvolvimento econômico como principal fator para viabilizar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. É nesse sentido que os valores éticos e estéticos estão no centro da atuação contemporânea da arte.
Nesse contexto, a sustentabilidade na documenta 15 abriu suas portas ao público no dia 18 de junho de 2022 questionando: diante das consequências alarmantes da mudança climática em todo o mundo, como uma exposição de arte orientada globalmente, que atrai visitantes de todo o mundo e dura 100 dias, pode minimizar os danos ao meio ambiente e, ao mesmo tempo, ser econômica e socialmente justa? Pois bem, é essencial colocar em prática os princípios da sustentabilidade que envolve, por um lado, aspectos sociais, políticos e econômicos em busca de um desenvolvimento equilibrado e justo que possa ser sustentado; por outro, as noções éticas que devem ser consideradas como valores centrais em relação à interculturalidade e seus impactos morais e políticos sobre os indivíduos e a sociedade.
A documenta 15 destaca a visão não eurocêntrica e conta com a curadoria do Ruangrupa, uma organização sediada em Jacarta, Indonésia, sem fins lucrativos, com a finalidade de promover ideias artísticas nos contextos urbanos e culturais contando com o envolvimento de artistas e outras disciplinas como as ciências sociais, política, tecnologia ou a mídia, de modo a abrir reflexões críticas e perspectivas sobre os problemas urbanos contemporâneos. A palavra indonésia ruangrupa significa “espaço de arte” ou “forma espacial”.
A comissão internacional da documenta 15 foi unânime na seleção do Ruangrupa para a curadoria em 2019 e essa escolha justificou-se, entre outros quesitos importantes, pela essência do trabalho coletivo: “Em um momento em que o poder inovador emana em particular de organizações independentes e colaborativas, parece lógico oferecer a esta abordagem coletiva uma plataforma sob a forma de documenta”. O comitê internacional da documenta 15 é representado por Frances Morris, Amar Kanwar, Philippe Pirotte, Elvira Dyangani Ose, Ute Meta Bauer, Jochen Volz, Charles Esche e Gabi Ngcobo.
É nesse sentido que a documenta apresenta a sua 15ª edição de arte contemporânea, com a proposta de Ruangrupa: “Queremos criar uma plataforma artística e cultural globalmente orientada, colaborativa e interdisciplinar que permanecerá eficaz além dos 100 dias de documenta 15. Nossa abordagem curatorial busca um tipo diferente de modelo colaborativo de utilização de recursos — em termos econômicos, mas também no que diz respeito a ideias, conhecimentos, programas e inovações”.
A atual edição da exposição destaca os princípios de coletividade, construção de recursos e distribuição equitativa como fundamentais para o trabalho curatorial destacando todo o processo e a imagem da documenta 15. A coletividade segue um modelo alternativo, orientado para a comunidade, pela sustentabilidade em termos ecológicos, sociais e econômicos, em que recursos, ideias ou conhecimentos são compartilhados, assim como a participação social. A ideia de sustentabilidade é também amplamente considerada no planejamento da exposição em todas as suas manifestações como já apresentado, seguindo os 17 objetivos destacados pela ONU para o desenvolvimento sustentável.
Consequentemente, a construção de conhecimento, a identificação de problemas, a busca de soluções como principais fatores da responsabilidade social para uma atividade focada nos valores éticos do desenvolvimento sustentável dependem de vontade política, de toda a base da educação e formação da sociedade, de modo que não só as artes, mas todas as atividades possam atingir o desenvolvimento sustentável. Principalmente considerando-se as desigualdades em suas formas de reprodução pelas estruturas sociais mediante a educação como “capital cultural”, segundo Pierre Bourdieu, possibilitando aos indivíduos uma formação e um conhecimento resultando no reconhecimento e na mobilidade social ascendente, isto é, uma posição não só economicamente melhor, mas que também lhes permite liderança nas decisões. Por isso, um dos principais objetivos para o desenvolvimento sustentável é o direito à educação como a base dos direitos humanos, que, consequentemente, engloba os demais objetivos.
Enquanto isso, os interesses são diversos, mas convergem para dois campos opostos, um de resistência e outro de inovação. Em decorrência, à medida que avançam as inovações ao encontro da sustentabilidade, esse campo de transformação ganha mais força produtiva e reprodutiva conquistando mais espaço no sistema do “capital sustentável,” termo utilizado por John Elkington, para o sentido do sistema capitalista. Como resultado, todos estão direcionados a aderir a esse sentido e não há dúvidas de que os precursores desse desenvolvimento sustentável são os países desenvolvidos e de que essa mudança depende de investimentos e apoio aos países emergentes, para que estes possam também ter vantagens, principalmente os que foram explorados por seus ex-colonizadores e ainda o vêm sendo pelas formas de domínio do capital e, consequentemente, pelo “capital sustentável”.
Contudo, para a humanidade ser de fato bem-sucedida, os acordos entre os principais países desenvolvidos são fundamentais, com base nos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Nessas condições, os desafios para a sustentabilidade compreendem a reformulação de todo o sistema centrado no desenvolvimento econômico. Assim, pensar nas consequências da colonização europeia, da colonialidade, é discutir o contexto atual da coexistência entre ex-colonizadores e colonizados, que resultou na aculturação dos povos nativos com o sentido de “progresso” hegemonicamente ligado ao desenvolvimento científico, tecnológico e industrial com suas bases cartesianas e, economicamente, com o mercado liberal envolvido na transformação sociocultural.
Contudo, o contexto atual apresenta condições claras da complexidade que envolve a busca por justiça social, considerando sobretudo as preocupações de inclusão social como consequência de um longo processo desde o Iluminismo europeu na construção do conhecimento moderno e da sensação de progresso, aos desafios mais significativos para a descolonização, segundo os teóricos pós-coloniais, que residem no fato considerável de que metrópole e colônia são elementos co-constitutivos em uma ordem capitalista mundial crescente de desenvolvimento e civilização.
Representam algumas das teorias pós-coloniais críticas para as consequências do projeto imperialista:
1) a busca de um retorno às origens coexistindo com a contemporaneidade como alternativa para uma decolonialidade do conhecimento na América Latina;
2) ou as propostas para um futuro descolonizado na África, ou pela diáspora africana por meio do afropolitanismo. Com essas duas formas de visão de mundo, um panorama histórico da América Latina e outro da África ao encontro da decolonialidade e da descolonialidade podem ser a base para o significado da estética pós-colonial, “pós” no sentido de uma visão sobre os efeitos consequentes da dominação ou controle político e econômico pelo conhecimento na formação da cultura ou considerando a superação da subordinação a esse poder. A diferença entre descolonialidade e decolonialidade é que esta última não sucede ao colonialismo, sendo entendida como uma alternativa.
A decolonialidade tem o sentido de superar o colonialismo, enquanto a descolonialidade tem o sentido de transcender a colonialidade, que diz respeito à forma como o desenvolvimento é operado pela modernidade europeia com objetivos de dominação do poder mundial. Assim, a decolonialidade, ao contrário da descolonialidade, não segue a padronização cultural da globalização, mas uma hibridização como referência. Entretanto, segundo Arjun Appadurai, ela pode ser uma referência para o mundo em busca de harmonia com a natureza e diferentes culturas, acrescentando que “esta visão é sedutora, e é difícil discordar de suas noções de harmonia e convivência, mas também repousa sobre uma inversão do impacto histórico do capitalismo e do colonialismo”.
Além disso, essas visões de mundo apresentadas por Walter Mignolo e Catherine Walsh sobre a América Latina e por Achille Mbembe (2001) sobre a África e a diáspora africana apenas reforçam que as nações em processo de decolonização ou descolonização fazem parte do sistema capitalista global em seu desenvolvimento e que, portanto, fazem parte de um sistema mundial como tal sem ter “cumprido verdadeiramente as promessas libertárias”. Para este fim, a estética aborda os valores centrais e as possibilidades de inclusão socioespacial ao encontro de teorias decoloniais.
A responsabilidade social é uma das principais características das artes, como atividade criativa, em seus aspectos funcionais, racionais e objetivos, não em detrimento dos valores sensíveis, mas principalmente com base em valores sociais. Por conseguinte, os desejos e particularidades são sublimados por meio das artes, resultando na síntese da razão e da sensibilidade para atender às necessidades da sociedade. É justamente aqui que se encontra o potencial da estética decolonial na criação e recriação de novos hábitos e novas representações pelas artes para alcançar as melhores possibilidades de inclusão social mediante projetos interculturais.
O objetivo fundamental da estética decolonial e de todo o projeto de decolonialidade é uma libertação da sensibilidade moderna europeia ligada aos valores coloniais. O significado não se concentra no multiculturalismo, mas sim no interculturalismo, como argumento destacado no Manifesto da Estética Decolonial por Alanna Lockward e Walter Mignolo: “O multiculturalismo é administrado pelo Estado e algumas ONGs afiliadas, enquanto a interculturalidade é decretada pelas comunidades no processo de desvinculação do imaginário do Estado e do multiculturalismo.
A interculturalidade promove a recriação de identidades que foram negadas ou reconhecidas primeiro, mas silenciadas no final pelo discurso da modernidade, da pós-modernidade e agora da alter-modernidade. A interculturalidade é a celebração por parte dos habitantes da periferia de estarem juntos dentro e fora da periferia. A estética transmoderna decolonial é intercultural, interepistêmica, interpolítica, interestética e interespiritual, mas sempre a partir das perspectivas do sul global e da ex-Europa Oriental”.
É nesse aspecto que a documenta 15 se mostra contemporânea, antenada com o sentido da cultura mundial além da visão eurocêntrica. O foco está na arte pós-colonial para discutir os desafios da arte em superar as noções generalizadas do pensamento europeu moderno com artistas e obras de arte das nações não ocidentais, buscando uma ruptura com as formas hegemônicas ocidentais de globalização. Entre os artistas e grupos selecionados, destacam-se a presença do Global Sul, com Más Arte Más Acción (MAMA), uma organização colombiana sem fins lucrativos fundada em 2011 pelo artista Fernando Arias e a do empresário Jonathan Collin.
Representando o Brasil, a artista Graziela Kunsch. Representando Dhaka com Britto Arts Trust, The Nest Collective, o coletivo multidisciplinar que atua em Nairóbi. Fundado em 2012, o grupo criou trabalhos em cinema, música, moda, artes visuais e literatura. Além do The Black Archives, um arquivo histórico que documenta a história dos movimentos de emancipação negra e dos indivíduos na Holanda. Catorze membros da lumbung e 53 artistas da lumbung participam da documenta 15. Eles foram convidados por Ruangrupa e pela equipe artística a praticar lumbung juntos e a participar coletivamente da criação da documenta 15. Os membros do lumbung e os artistas lumbung foram convidados a envolver seu ecossistema de artistas, ativistas, membros da comunidade de tal forma que a documenta 15 e os recursos comuns beneficiam a sustentabilidade dessa prática local compartilhada a longo prazo. Assim, não apenas o Ruangrupa, mas uma rede em constante expansão configura a documenta 15.
A abordagem pós-colonial envolve todo o conhecimento, inclusive o estético – por extensão, as artes, apresentando a diversidade cultural e reconhecendo a alteridade em várias formas artísticas. Essas práticas culturais pós-coloniais consideram um conjunto estruturado de conceitos, suposições e práticas discursivas para produzir, interpretar e avaliar o conhecimento sobre os povos não europeus. As diferenças estão presentes em todas as situações de construção do espaço público e buscam o sentido de uma interculturalidade pelas artes e uma estética do cotidiano representando todas as suas sutilezas relacionadas com o movimento decolonial. Esse é o significado possível da estética pós-colonial ao considerar a superação das diferenças nas formas alternativas de convivência, com novas perspectivas em relação à diversidade cultural nos espaços urbanos do Sul Global.