Espetáculo Lunares (Foto: Ofélia Fotografia)

Um olhar de quem vê as coisas do alto

Milena Silocchi*

Tirar os pés do chão. Essa é a paixão que move Michella Biazus, de 33 anos, instrutora de aéreos e fundadora da Joanas D’Ar. Localizada em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, a escola divide o espaço de até 10 metros de altura com o Ginásio de Escalada V10. Os olhos permanecem voltados para o alto, afinal é difícil encontrar alguém com os dois pés firmes no chão.

Formada em Medicina Veterinária pela Universidade de Santa Maria (UFSM), Michella decidiu dar os seus primeiros voos. Há seis anos teve a primeira aula durante um projeto realizado pela prefeitura caxiense. Desde então, de aluna passou a professora de aéreos na cidade. Hoje, busca formação em Educação Física, mas já fez residência artística com o especialista em dinâmicos Felipe Nickni, em Goiânia, além de preparação com o grupo Paper Doll Militia, de Los Angeles, e Alex Allan, da Inglaterra.

Inspirada no circo, a modalidade de aéreos trabalha com o corpo suspenso e pode ser praticada por meio de diferentes aparelhos, como tecidos, cordas, barras, trapézios, liras e outros instrumentos verticais que a imaginação permitiu criar. As Joaninhas, como as alunas carinhosamente são chamadas, possuem a criatividade como agente propulsor da arte. “É uma sensação de liberdade. A gente não consegue viver sem. É a nossa forma de se expressar”, descreve Michella. 

Recentemente, o grupo se apresentou na abertura e encerramento da 24ª edição das Surdolimpíadas, que aconteceram em  Caxias do Sul, em maio. Agora, elas se preparam para um novo espetáculo, uma adaptação de “Lunares”, com estreia marcada para 23 de julho. Saiba mais detalhes conferindo a entrevista completa:

Como os aéreos passaram a fazer parte da sua vida e como surgiu a escola?

Michella Biazus – Eu fui começando aos poucos. Depois de um ano que eu já praticava, recebi um convite para dar aula. Comecei com dois, três alunos e hoje, com quatro anos de escola, dou aula para 30 alunos, desde crianças a adultos. A gente tem uma parceria com o pessoal da escalada e juntos construímos este espaço pensando especialmente nessas duas modalidades, para que as pessoas tivessem um local próprio e adequado para aprender.

Porque o grupo se chama Joanas D’Ar? 

Michella Biazus – A ideia veio do meu pai e foi uma mistura de referências. Inicialmente, foi pensando em um trocadilho com a francesa Joana D’Arc, por ela representar uma mulher forte e por sermos na maioria mulheres. E além disso faz associação a “joaninhas”, que é a nossa marca.

Qual a relação dos aéreos com as artes circenses?

Michella Biazus – Essa modalidade é uma ramificação do circo. Aéreos é tudo o que a gente trabalha com o corpo suspenso, pendurado. Aqui nós ensinamos pessoas comuns, a maioria não tem o objetivo de virar um artista circense, mas o treinamento e as técnicas são parecidas. A intensidade depende de cada aluno, da condição física que o aluno chega, e a partir disso trabalhamos adaptando para cada pessoa. 

Como a consciência corporal é desenvolvida através da prática de aéreos?

Michella Biazus – Eu digo que a sensação é de se transportar para outro ambiente. É como se você estivesse aprendendo a nadar depois de adulto. Isso é difícil. Porque a nossa cabeça entende o que precisa fazer, mas o corpo demora a se adaptar. Nós trabalhamos no ar, suspensos, então leva um tempo para o corpo entender ao se virar de cabeça para baixo, o que é direita e o que é esquerda, tudo vira uma coisa só. Tem também a questão do tecido que pode apertar um pouco o pé, a cintura, mas é possível conseguir, isso se a pessoa persistir. Pra quem tem medo de altura, aos poucos vai perdendo, vai se acostumando. Na primeira aula o aluno fica no chão e conforme ele vai sentindo confiança, vai subindo um centímetro a mais a cada aula.

Pensando em diferentes tipos de corpos, como é criar apresentações envolvendo essa relação corpo e arte? 

Michella Biazus – É difícil se livrar da técnica que aprendemos e relaxar para que o movimento aconteça. Aqui trabalhamos com exercícios de repetição, mas, propondo diferentes ambientes e sensações, o aluno quando repete precisa pensar em diferentes velocidades e intenções. E o resultado é fantástico. Porque às vezes as pessoas pensam que elas não têm nada de artístico ou que não conseguem fazer. Quando elas descobrem o seu movimento é lindo de ver, porque cada corpo se move de um jeito e fica bonito do seu jeito. Não existe aquele pré-requisito de ser flexível, magro e alto, aqui não precisa disso.

Como o corpo pode ser instrumento de expressão de arte?

Michella Biazus – Como não usamos palavras, imagens ou sons, a gente precisa se expressar pelo movimento, e isso leva tempo. É preciso treinar muito pra fazer do teu sentimento um movimento e que ele passe a mensagem que você quer dizer. Quanto mais a gente fica nos aparelhos, mais intimidade vai pegando com eles e mais confiante fica, facilitando o modo de se expressar. 

No espetáculo “Lunares”, nós falamos muito da relação da mulher com o corpo, ensaiando para que nós sejamos um espelho do nosso interior. “Lunares” partiu de uma poesia da Adriana Antunes, criada especialmente para essa apresentação, e ela fala sobre o corpo da mulher, das mudanças durante seu ciclo, relacionando com as fases da Lua. 

A gente trouxe esse assunto porque é uma coisa que existe desde sempre, o ciclo da mulher, do ciclo da Lua. Isso sempre existiu só que não é muito falado, sempre uma coisa escondida, e às vezes a própria mulher não se conhece, não entende que a cada fase ela vai estar de um jeito e que ela não precisa se culpar por agora não estar conseguindo ser produtiva. Mas isso é pra ser assim, às vezes a gente tem que dar essa pausa, tem que parar para refletir. Então foi pensando nisso, de trazer um assunto que precisa ser explorado, tanto pelas mulheres quanto pelos homens, porque eles convivem com as mulheres e precisam nos entender também. 

Joanas D’Arc apresentam o espetáculo “Mãos que Falam” na 24ª Surdolimpíadas (Foto: Samuel Rodrigues/divulgação)

Quais são as reflexões que “Lunares” pretende provocar ao público?

Michella Biazus – “Lunares” traz esse conhecimento da mulher, tanto pra ela quanto pro homem, e do feminino em geral – porque tu não precisa ser mulher pra ter um feminino. Um outro fator muito importante que a gente se deu conta no processo é de como a violência contra a mulher acontece e como ela é muito grave. Quando vimos os dados do país e até mesmo da nossa cidade, nós ficamos chocadas. Foi aí que percebemos que tínhamos que mostrar isso de alguma forma. Então, no final, a gente expõe toda essa realidade feia – porque até então “Lunares” é muito poético, e aí dá essa quebra de que precisamos acordar, que o mundo real é esse – junto com os contatos de ajuda pra essas mulheres.

Para você, como mulher, o que significa apresentar esse número?

Michella Biazus – Vou te dizer que no começo foi difícil, porque a gente separou os personagens por cada fase da Lua e eu fiquei com a Donzela. Na hora eu pensei: nossa, não tenho nada a ver com isso. Mas aí fomos estudar e percebemos que se encaixava perfeitamente. Tu vai vendo mais a fundo, vai se identificando, e isso facilitou pra gente expressar a nossa Donzela [Lua Crescente]. E “Lunares” é sempre uma experiência muito forte, porque a gente tá representando muita coisa.

Como foi a construção deste espetáculo, principalmente tendo em vista que ele foi produzido virtualmente?

Michella Biazus – Por um lado limita, mas também é uma possibilidade imensa, porque nós pudemos usar desenhos, animações que interagiam com a gente, mudança de cores, tudo o que tu imaginava. Tu pensa “quero que passe uma borboleta voando ao meu redor” e aí dá pra fazer, então foi muito legal a gente poder viajar mais e explorar esse lado criativo.

Geralmente a gente tem uma música, mas para esse espetáculo nos baseamos muito pela poesia, pela linha melódica da locução feita pela Zica Stockmans. Além das palavras, tem toda a nuance da declamação, então foi bem interessante fazer o nosso movimento acompanhando a leitura do poema, tanto que quase não há música. 

Apesar de ser eu quem faz as coreografias, eu gosto muito de conversar com os alunos para saber como eles se sentem. Vamos construindo aos poucos, com muita troca entre os artistas, já pensamos no figurino, no cenário, e tudo isso fica flutuando e aos poucos vai se amarrando.

Em maio deste ano vocês se apresentaram na 24ª Surdolimpíadas. Como foi essa experiência para o grupo?

Michella Biazus – Para a abertura nós ensaiamos por dois meses, quatro vezes por semana, além das aulas normais, e no encerramento nós fomos pegas de surpresa, surgiu a oportunidade e em uma semana montamos a coreografia. E também foi outro desafio, porque o nosso público não ouvia, a música não era algo que iria chamar atenção. No início nós fizemos tudo muito sincronizado, muito igual, já no encerramento nós escolhemos a música “Prelúdio”, de Bach. Nós traduzimos ela em movimento em que cada compasso era um tecido que se movia como se fosse uma onda. Mas foi incrível, é um evento que não teremos de novo na nossa vida.

Como você enxerga a atuação do grupo para a promoção da cultura? E qual é a recepção do público caxiense?

Michella Biazus – Essa modalidade ainda não é muito conhecida, não temos lá muitos alunos e o meu desejo é que mais pessoas conheçam para conseguir sentir esses benefícios. Até esse espaço que a gente construiu foi pensando para essa modalidade, com altura e estrutura. É uma coisa difícil de encontrar até no próprio estado, ter um pavilhão alto. A gente fez isso para as pessoas virem aqui conhecer, treinar, ter aulas, fazer espetáculos.

Aqui na cidade sempre nos recebem muito bem, todo mundo fica impressionado de ver uma pessoa pendurada ali em cima. Dizem muito “Nossa, eu estava angustiada, achei que vocês iam cair”, mas todo mundo adora.

Vocês já chegaram a usar alguma lei de incentivo à cultura? Qual é a sua visão perante o incentivo ou a falta dele para a cultura na cidade?

Michella Biazus – Sim, inclusive o “Lunares” foi feito com a lei Aldir Blanc, sem isso não tinha como a gente fazer. Quando tem evento nós cobramos o ingresso para conseguir pagar o som e a iluminação, mas ainda assim é complicado. O artista não é muito valorizado, então às vezes nos deixam de pagar, o cachê é menor, e eles  [contratantes] não se dão conta que estamos arriscando a vida, estamos lá em cima pendurados. Isso que eu gostaria que as pessoas entendessem também, o trabalho, o treino, a dedicação que precisa para fazer um número desses.

O que as artes cênicas representam na sua vida?

Michella Biazus – É uma sensação de liberdade. Agora a gente não consegue viver sem, a gente se expressa por isso. Às vezes a gente está mal, cansado ou triste, e aí tu vem aqui e isso muda… Então, é tudo, é a nossa forma de se expressar, uma forma de ser saudável e de ajudar as pessoas. É essa sensação que a gente faz os alunos sentirem, de voar, de tirar os pés do chão. 


* Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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