Esta reportagem faz parte de uma série sobre as propostas para a cultura nos planos de governo dos candidatos e candidatas à presidência nas eleições de 2022. A série dará destaque aos planos dos 4 primeiros colocados com base nos dados registrados no Agregador de Pesquisas do Uol e consultados pela equipe do Nonada Jornalismo no dia 12 de agosto: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Os planos de governo dos demais candidatos, José Maria Eymael (DC), Felipe D’Avila (Novo), Vera Lucia (PSTU), Soraya Thronicke (União), Sofia Manzano (PCB), Roberto Jefferson (PTB) e Leonardo Péricles (UP) serão reunidos em uma mesma reportagem. As matérias serão publicadas semanalmente por ordem alfabética.
O plano de governo de Jair Bolsonaro (PL) destoa das falas do presidente durante a campanha quando ele aborda a cultura e, mais especificamente, a lei Rouanet. Se são conhecidas suas falas contra a lei de incentivo à cultura, na proposta oficial de governo há erros e informações vagas sobre a descentralização dos recursos e o valor investido na área da cultura.
A seção do documento que faz menção à pasta é intitulada “Ampliar e Fortalecer a Política Nacional de Cultura”. O texto afirma que o governo, “por meio da secretaria Especial da Cultura, investiu 7 bilhões de reais no setor cultural entre 2020 e 2021, podendo chegar a 30 bilhões de reais [até 2026].”
O Nonada Jornalismo checou os números. Embora o documento não detalhe o dado informado, o painel de dados do Observatório Itaú Cultural indica que os gastos totais federais somam R$ 2,9 bilhões no período indicado. O valor indica o orçamento total da área da cultura (ou seja, aplicada diretamente na área) somado ao montante investido nos mecanismos de fomento, incluindo Fundo Nacional de Cultura, Fundo Setorial do Audiovisual, Lei do Audiovisual e mecenato via Lei Rouanet. O levantamento não inclui os R$ 3 bilhões emergenciais distribuídos via lei Aldir Blanc, medida proposta e aprovada pelo Congresso Nacional em 2020.
A descentralização regional da Lei Rouanet, outro argumento usado por Bolsonaro para criticar os artistas e prometido durante a última campanha, também não foi cumprida no governo, como revela o painel de dados do Observatório Itaú Cultural. O estudo mostra que, em 2021, proponentes do estado de São Paulo ficaram com 40% dos recursos da Lei Rouanet, enquanto o Rio de Janeiro captou 25%, ultrapassando metade do total da verba aprovada no ano.
O dinheiro da lei Rouanet vem de renúncias fiscais captadas junto a pessoas físicas, que escolhem direcionar parte dos impostos a projetos culturais selecionados pelo marketing ou pelo departamento comercial das empresas.
O plano de governo afirma ainda que foram investidos R$ 114 milhões de reais no restauro de 21 prédios históricos em 2021 e que mais R$ 295 milhões devem financiar o restauro de 31 obras em 2022. “A perspectiva para os próximos anos é de que esse valor seja triplicado na proteção dos patrimônios culturais do Brasil”, promete Bolsonaro.
O Sistema Nacional de Cultura (SNC), que começou a ser implementado de forma mais concreta a partir da descentralização da lei Aldir Blanc, também é foco do governo. O SNC será consolidado como “ instrumento de articulação, gestão, informação, formação, fomento e promoção de políticas públicas de cultura com participação e controle da sociedade civil e envolvendo as três esferas de governo (federal, estadual e municipal)”.
Em outro trecho, a candidatura diz que os povos indígenas e quilombolas “devem ser respeitados em sua culturalidade e tradições características, desde que não impliquem em violação de direitos humanos”. O programa propõe que as comunidades tradicionais invistam em etnoturismo, mas também em pecuária, agricultura e mineração.
Presidente ataca artistas em compromissos de campanha
As falas de Bolsonaro durante a campanha eleitoral apresentam um tom diferente do proposto no plano de governo. Em entrevistas e discursos, repetindo a tática de guerra cultural que o ajudou a ser eleito em 2018, o presidente tem atacado artistas que se beneficiam da lei Rouanet e que ele considera de esquerda. O Nonada analisou as falas com ajuda do Banco de Discursos da ferramenta Escriba desde julho de 2022.
Na entrevista ao programa Flow, no dia 11 de agosto, por exemplo, Bolsonaro teve cerca de 5 horas para falar sobre seu governo e sobre assuntos polêmicos. Nos poucos minutos dedicados à cultura, ele informou erroneamente que “artistas famosos” deixaram de arrecadar verba da lei Rouanet. O presidente também falou que a carta em Defesa da Democracia é um ataque pessoal contra ele. “Essas pessoas que assinaram agora o Manifesto pela Democracia, que é um grave ataque à minha pessoa como se eu não fosse democrata. Olha o que os artistas que assinaram querem? A volta da Lei Rouanet.”
O candidato também se mostrou desinformado sobre as regras de captação do mecenato. Primeiro, disse que “um artista podia pegar até R$ 10 milhões da Lei Rouanet”, dando a entender que os recursos iriam diretamente para o bolso dos artistas. Na verdade, esse limite máximo refere-se ao total que um proponente pode pedir para financiar produções, obras ou eventos culturais. Ou seja, o valor é distribuído tanto para infraestrutura e divulgação como para os profissionais que atuam no projeto, incluindo cenógrafos, técnicos, diretores, assistentes e artistas.
Durante o próprio governo, esse limite passou por diversas mudanças de acordo com o secretário que estava no cargo. No início de 2019, por exemplo, o ministro Osmar Terra baixou para R$ 1 milhão o teto de captação, mas em dezembro do mesmo ano, o secretário Roberto Alvim reverteu a decisão e permitiu a captação de R$ 10 milhões por proponente. Alvim, demitido pouco depois por um vídeo com simbologia nazista, é diretor de teatro e admitiu que não há como fazer uma produção de porte grande com menos de R$ 1 milhão.
Atualmente, após mudanças em 2022, projetos de tipicidade normal como teatro não musical e produção de obras de arte têm limite de R$ 500 mil. Já eventos literários e festivais podem captar R$ 4 milhões, enquanto óperas, bienais, museus e musicais tem limite de R$ 6 milhões.
Na live, Bolsonaro também admitiu indiretamente que ele, seus filhos e seus secretários Mario Frias e André Porciuncula estavam errados em fazer campanha contra a lei Paulo Gustavo. “Deu uma confusão, mas tudo bem. Está atendendo os mais humildes”, avaliou.
Embora tenha ficado de fora do programa de governo, a guerra cultural ideológica permanece nas falas de campanha. Em evento do Encontro Nacional do Agro em Brasília, no dia 10 de agosto, por exemplo, Bolsonaro usou o conceito de cultura de forma preconceituosa, associando agricultores familiares a pessoas de “pouca cultura”. “Quando se fala em terrorismo do MST, o terrorismo são pras lideranças do MST. Porque o homem que está lá na sua posse ele é usado. Muitas vezes é uma pessoa que tem pouca cultura. Mas tem um grande coração”, disse.