A rapper Rafa Militão (Foto:divulgação)

Tem rap no norte: mulheres hackeiam espaços e abrem caminhos na cena hip-hop

Alicia Lobato*

A construção do cenário do rap na região norte do país é um trabalho de muitas mãos, entre elas artistas mulheres e LGBTQIA+. A rede formada por artistas é o que tem fortalecido o trabalho de quem quer seguir como rapper no norte do país. O gênero musical tem crescido nos últimos anos e tem sido um meio para a população periférica alcançar outros espaços em cidades como Manaus (AM) e Belém (PA). Mas os artistas ainda encontram obstáculos, como a ausência de oportunidades e de valorização desses profissionais pelo público local.

Há tempos, a cultura do norte é deixada à margem das produções nacionais, e esse esquecimento atinge também o trabalho de quem está buscando visibilidade até mesmo no seu próprio estado, onde produções de fora ganham mais destaque. Soma-se a isso o preconceito que artistas da periferia sofrem pela criminalização do gênero musical no país. Dentro do rap, outras violências também são encontradas, como o machismo, que é sentido por mulheres e artistas LGBTQIA+ quando se inserem neste espaço. 

Os obstáculos não impedem que essas artistas vejam o rap como um trabalho e como uma oportunidade. Hoje, elas buscam formas de se manter, de produzir e de ocupar lugares. Rafa Militão, 30 anos, DJ e rapper de Manaus, intitula esse processo de “Hackeamento dos espaços”:

“Tentando entrar nesse espaço da forma que conseguimos, da forma que temos forças para alcançar esses lugares, seja através das músicas, através das entrevistas. Da forma que a gente consegue usar a nossa voz para estar nesses lugares, para alcançar outros também”. 

Para ela, está havendo um aumento do interesse das pessoas pelo rap produzido no norte, mas de uma forma modesta em comparação com artistas de outras regiões do país, na medida em que dentro dos espaços da cena, os próprios produtores de eventos não se interessam em convidar artistas locais para estarem em festivais e festas.   

“Eu penso que estamos chegando nesses lugares mas não devemos nos contentar com eles até que mais dos nossos também estejam. As pessoas tendem a valorizar muito mais o que sai dos eixos enquanto nós estamos em uma correria gigantesca para descentralizar as coisas”, comenta Rafa. 

Da vivência das artistas, surgem as letras 

O que tanto atrai jovens para começar no rap é poder identificar nas músicas realidades parecidas com a que vivem. Meninas e mulheres podem encontrar histórias e vozes semelhantes a sua, e isso tem mudado estigmas que atravessam a história do rap. As dificuldades pontuadas nas letras espelham na maioria das vezes como é a vida em uma periferia na região norte e trazem reflexões para quem escuta.

Yanael Nascimento, 20 anos, conhecida como MC Yanna, mora no estado do Amapá, e tem trabalhado com a cena cultural do hip-hop no estado, dividindo a carreira de rapper com a profissão que exerce de pedagoga. Ela conta que o seu público é o retrato desse novo rap, pessoas pretas e LGBTQIA+, principalmente, por suas músicas falarem de empoderamento e representatividade. 

“As mulheres pretas, LGBTs, entraram na cena, teve uma união, é muito lindo ver esse crescimento. São pessoas que já tem uma luta por espaço em outras vertentes, na cultura hip-hop não é diferente”. De acordo com ela, a principal dificuldade surge por parte do Estado, com a ausência de um apoio maior para que eventos da cultura hip-hop aconteçam e a necessidade de construir mais espaços para esses artistas poderem estar presentes. 

Segundo Yanna, a construção desses novos espaços é difícil. Por ser mulher e nortista, são diversas as situações, mas o que a move é exatamente poder representar o norte, “em todas as minhas letras o máximo que eu posso falar do norte, da minha cultura eu estou expressando” enfatiza. Em “Sereira do Norte”, por exemplo, ela afirma: “Escondendo a mágoa, cantando a verdade/Encontrei tesouro onde ninguém vale/A quebrada é nossa, nas ponte tem baile/Pega o beco porque hoje o Norte é a chave”.

Essas referências têm mudado a perspectiva desses jovens e contribuído também para um novo objetivo de carreira. Encontrar artistas mulheres, LGBTQIA+ e de corpos parecidos com o seu também é o que tem movido esse novo cenário do rap. Isso torna o trabalho dessas rappers ainda mais importante, que lutam por um um lugar tanto para elas quanto para meninas que ainda estão por vir, como a rapper  paraense Negah Ysa conta:

“Eu vejo manas falando comigo ‘escutei teus sons e fiquei inspirada’, isso me deixa muito feliz porque assim como eu inspirei outras manas, outras também me inspiraram dentro do rap”. Ela explica ainda que o motivo dos jovens se sentirem atraídos é pela identificação da cultura periférica como uma forma de encontrar suas próprias raízes e de “se entender enquanto pessoa na sociedade tanto politicamente mas culturalmente”.  Em Topo das Pretas, por exemplo, ela dá a letra: “Sou filha de Oyá, venho de África/meus tambores são de iorubá (…) mulheres pretas no poder/somos o alicerce desse planeta”.

A representatividade nessa nova cena é imensa, são mulheres, pretas, LGBTQIA+, da periferia e mães. Tudo isso mostra como o norte é diverso, não apenas de sotaques, mas de artistas com potencial que buscam esse reconhecimento para poderem atuar apenas na música. 

Transformando o rap em trabalho

O rap é para muitas mulheres sinônimo de mudança de vida. Para elas, poder cantar suas vivências é mais importante até mesmo que conseguir um retorno financeiro. No entanto, assim como todo trabalho, ser artista também gera custos que precisam ser arcados, e para seguir na música, o talento não basta. Rafa Militão, que se divide entre Manaus e São Paulo, afirma que é resistente à ideia de migrar de Manaus para conseguir se manter apenas com a música. Para ela, apesar de ser uma visão utópica, é possível que oportunidades possam surgir em Manaus:

“Vemos muita coisa acontecer lá, estamos em um processo de mostrar para as pessoas que é possível. O consumo do que fazemos em Manaus é muito complicado, entregamos muita coisa e recebemos pouco de volta, e eu nem falo só de capital, eu falo sobre a valorização mesmo do artista no geral”, pontua. 

MC Yanna (Foto: Victor Peixe)

Esse cenário não é encontrado apenas em Manaus, já que artistas que atuam na região norte têm reclamações parecidas: falta de oportunidades e valorização. Essa realidade é percebida por muitos rappers que lutam para conseguir acesso a convites de participações em shows para assim conseguir viabilizar suas produções. Rappers mulheres precisam se esforçar o dobro para conseguir provar que merecem estar nesses espaços, que tem em sua maioria homens como protagonistas. 

A rapper Negah Ysa conta que para ela, ser “artista, mulher preta e mãe” é ainda mais difícil. Entre questões de locomoção, valorização do trabalho, e a dificuldade de contratantes não quererem pagar um cachê adequado, surge a busca por um reconhecimento. “Não levam em conta que ser artista não é fácil, e querendo ou não, é um trabalho que exige para gente não só o gasto de transporte mas figurino, toda uma preparação, tem DJ tem tudo isso e a galera prefere chamar homens ou outros artistas” afirma Ysa.

Todo esse processo pelo qual as artistas passam é transformado em letras de músicas e rimas que conseguem atrair ainda mais meninas e mulheres tanto para seguir na carreira, quanto para acompanhar o trabalho que já está sendo produzido. Esse aumento da presença de mulheres construiu uma rede onde é possível pensar em um espaço mais justo para essas artistas.

Para Negah Ysa, hoje em dia é muito mais provável ver mulheres chegando em outros lugares e obtendo conquistas. Ela conta que em Belém antigamente era difícil encontrar mulheres em batalhas e eventos de rap. “Eu vejo muita mana, que hoje em dia consegue ter mais oportunidade e ter uma visibilidade melhor, mas porque tem outras manas que tomaram atitudes e estão fazendo eventos voltado para as mulheres”.

Hackeando espaços 

Rafa Militão, que começou como DJ na cena cultural de Manaus, logo percebeu a dificuldade pelas quais muitos rappers passam no início da carreira. De acordo com Rafa, ainda existem situações onde convidam rappers mulheres para cantar em eventos, em troca apenas do espaço e da promessa de divulgação, sem nenhum tipo de pagamento por dinheiro, e que isso tem mudado pelo trabalho coletivo dos artistas.

Yara Ramos (arquivo pessoal)

“Está rolando uma união maior entre as mulheres dentro do rap, entre as mulheres na música no geral e isso tem fortificado o movimento todo. Não ter o rap só como algo secundário, é mais força também para rebater todo o machismo, tudo isso aqui que a gente já precisa enfrentar. Quando enfrentamos isso em conjunto,  é bem mais fácil de conseguir passar por essas barreiras” enfatiza a rapper manauara.

Um dos lugares que tem impulsionado o trabalho de rappers são as batalhas de rimas, com a “Batalha do Canteiro”, que acontece em Ananindeua, município localizado no Pará, próximo da capital. A rapper Yara Ramos, 21 anos, “mulher trans, preta, rapper, nortista”, como ela se identifica, foi uma das artistas que surgiram na batalha. Ela começou a fazer rap em 2019 e desde então tem transformado o rap na sua vivência:

“Com a minha arte e meu trabalho, procuro trazer olhares e dar voz, dar oportunidades de fala para corpos com o meu. Nos últimos anos, os MCs, os rappers paraenses têm mostrado grande potencial, têm se destacado de uma forma fantástica tanto em escrita, quanto em produção, tudo independente”. 

Como Yara afirma, muitos artistas emergem de espaços até então esquecidos, como bairros periféricos e municípios do interior. Além disso, ser um corpo fora do padrão dificulta ainda mais a repercussão do trabalho desses profissionais. E quando se é um artista independente, sem uma agência, o esforço para produzir seu próprio material complica ainda mais: 

“É bem complicado, para quem não tem oportunidades, contratos, ter que fazer um corre para conseguir colocar um trabalho nas plataformas digitais. Temos uma imensidão de artistas daqui, artistas locais com talento absurdo e que não têm essa valorização. A cultura e arte no geral do estado é desvalorizada, e quando se trata da cultura de rua fica cada vez pior”, avalia.

*Graduada em jornalismo, natural de Belém, no Pará, vivendo em Manaus, Amazonas. Tem interesse em pautas socioambientais, de gênero e culturais.

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Culturas populares Reportagem

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