Entre os vários painéis da programação de 10 dias do I FiliGram – Festival Internacional Literário de Gramado, muitas mesas têm abordado questões ligadas à diversidade. Com a presença de autores como Futshi Ntshingila, Natália Borges Polesso, José Falero e Ronald Augusto, o festival tem apresentado uma programação progressista, mas nem os turistas nem os moradores da cidade têm comparecido em peso, suscitando questionamentos se Gramado está aberta a debater diversidade.
A questão indígena é um destaque no festival, com mesas sobre a cultura Kaingang e a inserção das culturas nas séries e histórias em quadrinho, tema debatido na tarde de terça-feira (05). Com mediação da ambientalista Carolina Castro, a mesa trouxe a Gramado a editora de HQ Sâmela Hidalgo, de Manaus (AM), a graduanda em Relações Internacionais Rayane Xipaya, do Xingu, e o cacique Maurício Kaingang, de Canela (RS). Na pauta, questões como tecnologia, comunicação e as cosmologias das centenas de povos indígenas do Brasil.
Diretora no Instituto Juma, Rayane Xipaya ressaltou que cada vez mais os jovens indígenas têm buscado outros conhecimentos, como o científico e o cultural, para mesclar aos conhecimentos tradicionais de seus povos. “A gente tem feito um movimento para nós mesmos contarmos a nossa própria história. Vimos uma romantização excessiva da nossa história [pelos brancos]. Nós sabemos sobre o que de fato aconteceu, sobre o que de fato vivenciamos, então é muito importante a participação de indígenas para tratar dessas questões”, explicou.
O cacique da aldeia Kaingang Konhún Mág, em Canela, município vizinho a Gramado, comentou que os brancos têm buscado o conhecimento indígena sobre o meio ambiente – um movimento ainda muito recente. Uma dessas conquistas é o livro “A araucária e a gralha azul: uma história dos antigos Kaingang”, que a aldeia está lançando no festival. “Esse livro surgiu da interação com as escolas daqui. A ideia é mudar aquela visão de que o indígena só vive no meio do mato. O espaço dos indígenas é onde eles quiserem. Então apostamos na educação infantil, contando uma história do povo Kaingang”.
Ele avalia que a tecnologia tem sido uma aliada nesse movimento de divulgação e valorização da cultura Kaingang”. Isso foi bem importante na pandemia, quando o isolamento das comunidades indígenas ficou muito evidente. A gente conseguia fazer lives culturais durante a pandemia”, relata.
A tecnologia tem ampliado as vozes em questões como protagonismo das mulheres e na denúncia do genocídio que os indígenas têm sofrido, diz Rayan, citando criadores de conteúdo como o Daldeia, que usa o humor pra desmistificar estereótipos. “Nós vivemos num ecossistema. Quando lutamos pelo nosso território, estamos lutando inclusive por aquele que está desmatando, porque somos interdependentes da natureza. Sem árvore, sem natureza, não existe futuro, não existe possibilidade de a gente existir. Estamos vivendo atualmente um genocídio. Então, prezem pela voz dos povos indígenas”.
Nova HQ com roteiro de Stan Lee e artistas indígenas
A crescente inserção de temáticas originárias na cultura pop foi o principal tema da mesa. A editora de HQs Sâmela Hidalgo – atualmente em processo de retomada de sua identidade indígena -, conta que ela e um grupo de artistas indígenas estão trabalhando em um novo projeto do estúdio Eleven Dragons: um roteiro original de Stan Lee que fala sobre garimpo na Amazônia. “A história tinha uma visão muito branca e estadunidense, então colocamos pessoas indígenas na produção para mudar o roteiro. Reformulamos o roteiro, sem tirar a essência, mas mantendo a representatividade”, revela.
O trabalho envolve o roteirista Ademar Vieira, além de indígenas nas funções de colorista e capista. A HQ será lançada durante a CCXP, maior evento de cultura pop do Brasil. “A ideia é que o quadrinho seja lançado para as comunidades indígenas, incluindo a parte financeira”.
Todo o cuidado é necessário para não repetir erros de propostas que lançaram estereótipos sobre as culturas indígenas brasileiras, como foi o caso da HQ da DC Comics, assinada por Joëlle Jones, que retratou uma Mulher-Maravilha indígena no Brasil.
“Ela é uma mulher incrível, mas é branca, então teve muitos erros. Todo mundo se decepcionou porque não tiveram esse cuidado que tem que ter, que é trazer os povos indígenas para falar sobre os indígenas”, relembra. “Também temos que lembrar que os povos indígenas não são todos iguais. Não é tão difícil, é só chamar uma pessoa indígena para contar essa história que você quer contar”, observa a quadrinista.
Rayane também destacou a importância de não tratar das temáticas com superficialidade. “Somos uma diversidade de povos no Brasil. Se uma visão mais ampla sobre isso já é um pouco difícil, imagina trazer os mais de 300 povos indígenas que existem no país. Não podemos homogeneizar todos os povos como se fossem iguais.
Ela lembrou de outro produto cultural recente que foi apontado como desrespeitoso por influenciudores indígenas: a série Cidade Invisível, de Carlos Saldanha, que traz seres como o saci-pererê e a caipora (difundidos como lendas no Brasil) em uma trama de suspense na cidade do Rio de Janeiro. “Lembro que [após a primeira temporada] foi muito cobrado que tivesse atores indígenas. Agora na segunda temporada vai ter atores indígenas, mas também é preciso um cuidado com a temática. Nós vivemos dentro dessas culturas. Não são lendas, é a realidade”.
Sâmela lembrou que a justificativa da produção para a descaracterização das culturas indígenas foi que eles queriam como cenário uma “cidade grande”. “Mas no norte também têm cidades grandes”, critica a editora. A continuação da série será rodada em Belém.
Maurício Kaingang também reforça que é preciso respeito. “Esses cuidados são importantes, como também a questão linguística [existem cerca de 300 línguas indígenas no país], a questão das marcas tribais, que são diferentes entre os povos indígenas. Essa informação deve ser bem correta e cuidadosa”.