Jogos Dirigidos (reprodução/Youtube)

Entrevista: Jonathas de Andrade fabula Brasis para falar de poder e resistências coletivas

O trabalho de Jonathas de Andrade parece perguntar, vez após outra, “que imagem você (participante, público) vê?”. Parece questionar também: “que imagem você cria?”. O artista, nascido em Alagoas e criado no Recife, é um propositor. Suas instalações, fotografias e filmes nascem de uma observação das estratégias de resistência coletivas, sejam elas feitas através da linguagem, do corpo ou da revisão da história.  

Ele trata de temas importantes como colonialidade, classe, raça, relações de poder e território, mas não enxerga seu trabalho como “documental”. Ao se deparar com várias de suas obras, é comum perguntar-se “isto que estou vendo, é verdade ou mentira?”. Para ele, a hesitação é positiva. 

Educação para adultos, 2010 (Foto: divulgação)

“Gosto muito de trabalhar na ambiguidade. Ser documento e ser ficção também – afinal, toda verdade é uma edição. Acho que falar sobre isso é questionar o tanto de verdade que há na História Oficial, por exemplo”, explica o artista em entrevista por vídeo-chamada ao Nonada. “A ideia de jogo e de exercitar a dúvida é uma forma de pensamento crítico.”

No momento em que completa 15 anos de trajetória, Jonathas foi escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza, que inaugurou em abril. Levou ao Pavilhão expressões populares do país, como “Nó na garganta”, “Dedo Podre” e “Queimar a língua”. O projeto, intitulado “Com o coração saindo pela boca”, transformou os ditos em imagens, muitas delas em grande escala, que tomam conta do espaço. 

Foto: divulgação

O trabalho é uma reunião de diversos métodos que Jonathas já vem experimentando, como a relação de palavras e imagens (que já aparecia na série Educação para Adultos, em 2013, e no filme Jogos Dirigidos, de 2019; a inventividade popular para falar das questões sociais e políticas; e também o interesse pelo que diz o corpo, uma constante em seu trabalho. 

Em setembro, abriu sua mais abrangente exposição individual, revisitando os quinze anos de percurso. O rebote do bote, com curadoria de Ana Maria Maia, na Pinacoteca de São Paulo, reúne seus principais trabalhos, como a Caravana do Museu do Homem do Nordeste, e também apresenta um momento inédito na produção do artista: o aparecimento dele nas imagens. 

Confira a entrevista completa:  

Nonada – Poderia contar sobre as expressões populares exibidas na Bienal de Veneza. Por que você escolheu levar “o nó na garganta”, o “sangue nos olhos” e o “coração saindo pela boca” para o Pavilhão? 

Jonathas de Andrade – Para falar da motivação desse projeto, penso nas expressões que me levaram a ele. Como o “Nó na garganta”, que é um pouco de como a gente se sente dentro do presente, que é de absoluta revolta e impotência. “Nó na garganta” fala sobre como os sentidos parecem estar adormecidos, diante de um presente que politicamente é tão brutal. “Um coração saindo pela boca” é um pouco de como tantas notícias parecem chegar, bater na nossa cara, e a gente parece estar sempre na iminência de uma vertigem. Entretanto, é tão cotidiano, que a gente deixa de sentir, adormece, parece que não estamos compartilhando a realidade. É a ideia de que o absurdo passa a ser comum. 

Entendi que as figuras de linguagem, essas metáforas, falam sobre o impossível desse corpo dar conta com palavras dos sentimentos tão limites. Ao mesmo tempo, a gente vive um Brasil em que nos últimos anos voltou a sentir o cheiro de um passado ditatorial, autoritário. E a partir daí, falar explicitamente parece não dar conta. As notícias, apesar de ser cru, real, parecem não dar conta. Ao mesmo tempo, a gente tem cerceamento das liberdades de expressão, aqui e ali acontecendo – nos últimos anos, houve vários. 

Para mim, representar o Brasil foi super forte e desafiador. Por isso, encontrar um projeto cuja tônica fosse a força da metáfora do coletivo, me levou para uma língua que vem de uma experiência colonial. São expressões que partem do corpo para dar conta do impossível, do absurdo. São imagens surreais para dar conta de coisas muito concretas que a gente vive todo dia, inclusive dos contextos políticos do Brasil. 

À esquerda, Dedo podre e à direita, Com o coração saindo pela boca, 2022 (Foto: Ding Musa / Fundação Bienal)

São mais de 250 expressões espalhadas pelo pavilhão. Cada plaquinha tinha um uso corrente, que muitas vezes versava sobre o amor, sobre o direito à paixão, o torpor, a revolta. Há coisas muito concretas da ordem do viver, do amor, do morrer, do não ter mais direitos, do não ter chão. As imagens se agigantam no espaço, em que nosso próprio corpo fica pequeno. 

Fala também de um adormecimento desse corpo e uma espécie de alegria que parece estar meio sem graça, nauseada. “Coração saindo pela boca”, “Boca do estômago”, “Dedo podre”, “Desejo que se pague com a língua”, “Coração de pedra”, tantas expressões que parecem falar sobre o presente e sobre personagens do presente. 

Nonada – Você costuma trabalhar em colaboração, com pessoas, grupos e comunidades, para a criação dos trabalhos. Como nasceu essa vontade de coletivização dos processos artísticos? Você sempre teve esse interesse? 

Jonathas de Andrade – Meu trabalho acontece muito no encontro. Eu acho que é uma coisa que foi acontecendo, que foi fazendo sentido. Um projeto foi levando ao outro e, intuitivamente, fui percebendo que os processos colaborativos são muito ricos e potentes. São processos que tanto me desafiam pessoalmente, emocionalmente, quanto me levam a avançar com questionamentos pessoais, estando em um mundo que é feito absolutamente por privilégios e desprivilégios. Estando em um país que tem uma história colonial muito forte e com os ecos de processos de violências muito presentes ainda. 

Queria que os projetos, de algum jeito, criassem situações de pretexto para falar de como a resistência é vivida no hoje, no presente. Os assuntos e os interesses são vários e, por isso, os projetos atravessam várias camadas. Foi assim que, inicialmente, comecei a trabalhar com imagens de arquivo. Venho com um interesse na fotografia, na narrativa,  me perguntando em como contar histórias a partir de imagens. Inicialmente, trabalhei em projetos que são mais com imagens de arquivo, como Ressaca Tropical. Educação para Adultos já é um projeto de transição. 

Depois já vim com o Museu do Homem do Nordeste, que é o projeto que marca este “sair para rua”, encontrar as pessoas e propor situações que, muitas vezes, me colocam como personagem – ativador desse encontro. Foi o que aconteceu em Corrida das Carroças e até mais recentemente em As Mulheres de Tejucupapo. São vários tipos de colaboração, algumas vezes com mais ou com menos ficção, outras com mais ou com menos documento, verdade, e ação. Outro trabalho é a colaboração com os pescadores, em O Peixe. 

Existe um compromisso em trazer a fabulação para falar da vida real. A partir da fabulação, a gente consegue falar da vida real e de suas dificuldades. Ao representar a si próprio ou um personagem que atravessa as vivências dos corpos que estão representando aquela situação, muita coisa vem para imagem, vem para emoção. A fabulação permite emergir muitos processos emocionais. 

Então, não à toa falar em Paulo Freire ou no Teatro do Oprimido têm sido algumas referências que circulam na minha produção. Tenho visto que vários dos meus projetos atravessam essas estratégicas que foram importantes historicamente, que falam sobre o lugar social e o lugar político. O lugar do encontro é o lugar da tentativa, do erro e do acerto. No O rebote do bote, incluo o departamento de “Ética e Culpabilidade”, onde essas questões são reunidas. Um lugar de constante revisão e pensamento [sobre a prática artística], que é onde sempre me encontro. 

Educação para adultos, 2010 (divulgação)

Nonada – Você mencionou Paulo Freire, e a influência direta dele em trabalhos como Educação para adultos. Mas vejo que na sua produção, de forma geral, também há uma atenção no potencial imaginativo e criativo das pessoas (um aspecto bem freiriano). Por exemplo, em Jogos Dirigidos, em que a comunidade inventa a própria língua. Ou em Procurando Jesus, em que as pessoas podem escolher uma nova imagem para Jesus. Como o pensamento de Paulo Freire te influencia? 

Jonathas de Andrade – Poderia dizer que Paulo Freire chega ao acaso para mim. Minha mãe, pedagoga, tinha esses cartazes baseados no método Paulo Freire e foi assim que me aproximei daquilo. Sempre achei o dispositivo da foto-legenda, da relação imagem e palavra, muito potente. Foi ali que tive contato com essa metodologia que era menos sobre a transmissão vertical de um conhecimento, ou seja, diluía aquela  figura do professor como austera, que detém conhecimento e passa. Estabelecia uma nova relação, de maior horizontalidade, onde os repertórios de cada um vão para o centro, e que o material educativo é um pretexto e um facilitador para isso. Acho que a arte também tem esse potencial. 

É possível criar, com mais ou menos sucesso, ambientes onde a horizontalidade é experimentada por quem participa, pelos não-atores e pessoas que convido para meus projetos.  Estou muito interessado em como as pessoas que estão se aproximando vão receber ou rejeitar o que estou trazendo. Sempre são pontos de partida e agora entendo que, quanto mais simples e claros eles forem, mais pode ser interessante. Porque sempre é preciso estar muito atento ao acolhimento ou ao não-acolhimento, para que o plano (projeto, obra de arte, filme, fotografia) resultante seja quase um histórico daquele encontro. 

Gosto muito de trabalhar na ambiguidade. Ser documento e ser ficção também – afinal, toda verdade é uma edição. Acho que falar sobre isso é questionar o tanto de verdade que há na História Oficial, por exemplo. Ou é treinar a gente para um universo de verdades e mentiras, onde a gente vive em um momento em que as Fake News decidem muito os caminhos coletivos. A ideia de jogo e de excitar a dúvida é um exercício de pensamento crítico. Acho que esses dispositivos são muito interessantes para o público, inclusive, porque tem a oportunidade de brincar o que se apresenta. 

Nonada – Gostaria de te ouvir sobre o Museu do Homem do Nordeste. A gente tem estado em um momento em que muitos estereótipos e preconceitos têm sido reforçados. Como você tem pensado esse trabalho à luz dos acontecimentos do presente? Você avalia que essa série dialoga com o agora? 

Caravana do Museu do Homem do Nordeste (Foto: Emanuel da Costa/divulgação)

Jonathas de Andrade – Identidade, região, exclusão são assuntos que atravessam minhas obras. Acho que eles não são só ‘sobre’ isso, porque tento tocar nesses aspectos que são dolorosos, a partir de uma imagem de poder. Então, sobre como encarar a câmera com desejo, como olhar o espelho com força, como estar andando de carroça em um gesto de resistência, em uma tomada de poder. Frequentemente, os projetos estão pensando sobre identidade e ciclos de exclusão, mas a partir de uma resistência e de uma auto-estima. 

Toda vez que me sinto mais documental fico com um certo desconforto porque acho que, aí sim, fico falando mais de uma dor e de um desconforto do que me sinto autorizado. Acho que minha capacidade de fabulação é minha contribuição e meu encontro possível com as ferramentas que tenho, para complexificar essa leitura que é redutora, binária, limitante, sobre o território. Infelizmente, não é surpresa tanta estigmatização do Nordeste, dado o momento que o país passa. Mas acredito que exista um processo de maturação acontecendo – quero acreditar nele e acreditar que isso vai se manifestar nas urnas em breve. 

Nonada – Desde o início, você aborda questões que envolvem a classe trabalhadora e o cruzamento entre raça, classe e território. Em uma obra mais recente, desenvolvida para O rebote do bote, você fala sobre o momento do “cafezinho” de trabalhadores da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Poderia contar sobre esse trabalho? 

Café e Burocracia, 2022, Jonathas de Andrade, Rebote do Bote, Curadoria Ana Maria Maia, Pina Luz créditos_ Christina Rufatto

Jonathas de Andrade – Já há um tempo venho colecionando o nome de empresas e pensando em como a instituição e a burocracia atravessam o dia a dia do trabalhador. A relação do cafezinho e o encontro como amaciador desses níveis institucionais que parecem seguir formatando, apesar de muito velhos no Brasil, na América Latina. Mas, para mim, a boca que fofoca, a boca que toma esse café, está também no fio trabalho do próprio Pavilhão [na Bienal de Veneza], em estava pensando muito nos pedaços de corpos, nos sentidos, no ouvido, no olhar. Fotografar partes do corpo é algo que já vinha fazendo. 

O “Café e Burocracia” olha para as instituições como essas estruturas mais velhas e mofadas que atravessam nossos corpos, e como a gente dribla. Mas, para mim, é uma pesquisa maior que ainda quero fazer, sobre, por exemplo, o tanto de empresas que eram estatais que desapareceram com o tempo e que eram parte da identidade do país. 

Nonada – E assim como em ABC da Cana, você vai ao encontro de um produto (o café) que tem uma história colonial, mesmo em um momento que, em tese, seria do “relaxamento”, que é o intervalo do cafezinho  

Jonathas de Andrade – O lúdico tem uma potência gigante para atravessar essa memória da dor. Acredito que o lúdico, o jogo, a fabulação, são lugares que criam zonas de conforto para representar o poder que, de fato, está ali como resistência. 

Nonada – Teu trabalho traz muito as noções de encontro e como o outro entra contigo para construir uma imagem. Este ano, na sua individual na Pina, você fez o seu primeiro exercício de auto representação, na obra Decalque Estilhaço. Como foi aparecer na imagem de um trabalho pela primeira vez? 

Jonathas de Andrade – A exposição O rebote do bote é uma oportunidade para olhar para quinze anos de produção, que passaram muito rápido. A revisão foi um processo bonito e emocionante, mas também muito intenso pessoalmente – ver como os processos nasceram, como eles se desenvolveram, as maneiras de contar histórias e também as questões delicadas. Uma delas é: “como representar o outro eticamente?”. Para mim, eu me sinto implicado, me sinto um personagem, mas minha imagem não aparece. Sou um homem do nordeste, sou nordestino, e falo deste Brasil. 

Ao mesmo tempo, existem tantos Brasis, atravessados por raça, classe, história, privilégio, desprivilégio, violência. Tudo isso é muito complexo quando a gente cria narrativas e histórias. Por mais que eu me sinta implicado, passei a escutar muito essa pergunta “e se você estivesse nos trabalhos?”, “e se você se fizesse o personagem fisicamente?”. Foi uma colocação da curadoria, da Ana Maria Maia, que acompanha minha obra desde muito cedo, desde que comecei meus trabalhos. Somos da mesma geração, ela também veio de Recife. 

Decalque Estilhaço, Jonathas de Andrade, 2022, Rebote do Bote, Curadoria Ana Maria Maia, Pina Luz, créditos_ Christina Rufatto

Então, achei que seria um passo importante para essa exposição, ainda que ensaiado. Existe um tanto de hesitação no ensaio, por isso que o título é Decalque Estilhaço. Comecei a olhar para o meu próprio universo, minha própria vida, meus próprios signos e comecei a ver minhas próprias imagens. Olhar para mim, como personagem, também envolvia esse estilhaço, esse devassar. Ao mesmo tempo era um ensaio inicial, primeiro, por isso o Decalque, que é uma ferramenta usada por muitos pintores contemporâneos. É algo que quis fazer, mesmo com a falta de intimidade com o pincel. Queria que esse autorretrato já tivesse esse universo de fabulação, de repensar meus signos. 

Gostei de trazer uma síntese das minhas primeiras câmeras, da minha cama, da cama que estava no 2 em 1, dos meus flashs. São coisas que falam sobre mim, nessa experiência de autorretrato. Não sei o que virá, ainda estou sentindo o efeito dessa experiência. Vejo como um exercício inicial, que foi muito importante. Me senti exposto também por isso, é meio rápido demais. Enfim, esses autorretratos tem um papel de revisar e apontar futuro, me entendendo mais como personagem nos processos. 

Nonada – Sabe que te ouvindo, veio outro trabalho, “Olho da Rua”, em que as pessoas se encaram no espelho. Como se você estivesse nessa retrospectiva, encarando-se no reflexo. Tem um fascínio, mas também tem um desconforto. É interessante a proposta curatorial, porque de alguma forma inverte os papéis. Você que sempre foi o propositor, agora recebe essa proposição para “jogar” com ela. Lembra o título também: um Rebote do Bote

Jonathas de Andrade – Achei legal você trazer o Olho da Rua, que não está incluído na mostra, mas que é bem o espírito desse momento e dessa exposição. O Bote é como se fosse a fome dos trabalhos, a vontade de eles irem para o mundo com desejo, com curiosidade e disposição. O Rebote é um pouco de como o mundo devolve, a pancada, como a gente se relaciona com isso. É esse retorno que a gente precisa parar e assimilar. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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