Imagens sonhadas de um Brasil real: por dentro da fotografia de Marte Um

 Quando Deivinho, personagem do longa-metragem Marte Um, olha para cima, ele vê longe. Seu sonho não é pequeno, assim como o de seu pai Wellington. Dirigido por Gabriel Martins, o filme escolhido do Brasil para a disputa pelo Oscar em 2023 conta histórias em que há lugar para o sonho no cotidiano de uma família negra de classe média baixa de Contagem, Minas Gerais. 

O fio narrativo do filme é o sonho de Deivinho de ser astrofísico, mas cada integrante da família tem sua própria trama. Isso se revela também pela direção de fotografia do longa, que apresenta vários primeiros planos de cada um, conferindo autonomia e protagonismo aos personagens. A ascensão da extrema-direita e a eleição do quase ex-presidente também orbitam o filme e apresentam o cenário sociopolítico brasileiro depois das eleições de 2018, a partir de uma perspectiva íntima, da vida familiar. As dificuldades econômicas e políticas são sentidas no dia a dia da família Martins e pautam várias cenas marcantes do filme. 

Marte Um foi eleito Melhor Filme do Júri Popular do Festival de Gramado e já passou por festivais internacionais, como o Sundance e San Francisco Film Festival. Em setembro, atingiu 50 mil espectadores nos cinemas brasileiros – um dado importante, em meio a uma crise que o setor vive no país. O filme é fruto do primeiro edital para realizadores negros do audiovisual no Brasil, lançado pelo MinC em 2016, com recursos oriundos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). 

O Nonada Jornalismo conversou com Leonardo Feliciano, diretor de fotografia, para conhecer o pensamento por trás da construção visual do filme. Formado em Comunicação – Cinema na Universidade de Brasília e especialização em direção de fotografia na Escola Nacional de Cinema e Televisão da Polônia, em Lodz, Leonardo já fotografou mais de 15 curtas e 10 longas. Ele comenta algumas das cenas e conta detalhes sobre a iluminação, movimentos de câmera e construção de sentidos a partir das imagens de Marte Um.  

“O filme tem um lastro muito grande num certo naturalismo. Então, nossa ideia era reforçar isso, mas não necessariamente em um tom de azul tão clássico. A gente buscou uma certa metalização, muito da ajuda do reflexo nas peles dos atores, utilizando as peculiaridades da pele negra para tentar construir um azul que é um tanto mais metalizado”, explica.

Embaúba Filmes/divulgação

Na entrevista, ele conta detalhes técnicos de como a equipe utilizou o próprio sonho de Deivinho para pensar nas fontes de iluminação do filme. O entendimento da luz do sol e a lua para criar um “microcosmo” do conceito visual de Marte Um foi um desses momentos. Ele fala também sobre a luz utilizada em diversas cenas do filme, do uso de enquadramentos mais fechados e do cuidado para, em algumas cenas, não fazer um trabalho de câmera invasivo, que às vezes aparece em melodramas. 

Leia a entrevista na íntegra, com spoilers:

Nonada- Leonardo, então pensei em começar te perguntando sobre uma cena que me emocionou muito, que é o momento em que Deivinho conta o sonho que tem para a irmã. Cada um na sua parte do beliche, a luz azul que neles se repete durante o filme. É uma cena muito bonita, poderia contar um pouco sobre ela? Como essas imagens foram pensadas? 

O quarto dos dois Irmãos, onde tem a cena em que eles conversam à noite, é um espaço que se transforma num microcosmo das ideias de fotografia do filme, principalmente das ideias de iluminação. Essa luz azul da cena, especificamente, vem da vontade de personalizar as luzes que muitas vezes no cinema são meio que impessoais, sabe? São luzes apenas de marcação narrativa, de passagem de tempo.

Nessa cena, a ideia era usar um signo clássico acadêmico de luz da lua, que é esse azulado nas fontes que a gente utiliza. Mas usar em uma intensidade até um pouco naturalista, que de certa forma contrasta com o filme. O filme tem um lastro muito grande num certo naturalismo. Então, nossa ideia era reforçar isso, mas não necessariamente em um tom de azul tão clássico. A gente buscou uma certa metalização muito da ajuda do reflexo nas peles dos atores, utilizando as peculiaridades da pele negra para tentar construir um azul que é um tanto mais metalizado.

E ainda assim conservar esse signo da fonte que está iluminando – não a minha fonte no set, mas a fonte narrativa, que no caso seria a lua. A ideia por trás é conversar um tanto com o sonho do Deivinho, o sonho da conquista espacial, de ir para Marte. Então fomos buscar as nossas duas maiores fontes naturais que temos, o sol e a lua, e trazer pra dentro do filme, marcá-las não apenas como fontes tradicionais, fontes de rubrica.

Rubrica, que eu digo, é que você pega um roteiro e tem lá “exterior dia”.  Aí você sabe que é dia e, obviamente, tem um um conjunto de regras que te guiam para construir uma luz que tem um clima, uma atmosfera dramática, mas que também é narrativa. Narrativa no sentido que ela tem que te indicar que é um dia. Ela tem que te indicar que é um fim de tarde, que é uma noite. A fotografia também tem essas funções puramente pragmáticas, né? A gente quis fugir disso e trazer as marcas desses dois astros para dentro das cenas. Essa é uma das cenas em que a gente quis trabalhar o azul metalizado.

E quando falo do quarto enquanto microcosmo das ideias é que, por exemplo, quando a gente chega em algumas diurnas, eu trabalho uma luz solar mais focada, que não está direcionada aos atores, mas em outros pontos do cenário. Só que ela chega lá, bate, reverbera, como por exemplo, a cena que ele está no computador e a irmã chega e está trocando mensagens com a nova namorada. Ele vai, senta ao lado dela. A luz que ilumina os dois, na verdade, é uma luz que está reverberando do chão. 

A ideia no caso do sol foi ao invés de trabalhar através da cor, foi trabalhar através das reverberações, dos caminhos que a luz faz dentro de um ambiente, dentro de um cenário.

Nonada – Outra cena linda de ver na tela foi o primeiro beijo de Nina e Joana. Também acontece sob essa luz azul. Tem o trabalho incrível das duas atrizes e tem uma delicadeza em retratar o olhar de desejo delas. É um momento muito sensível, que não tem pressa, uma representação bonita de um afeto lésbico, com muita verdade, vontade e amor. E isso passa muito pelas imagens. Poderia contar sobre essa cena? 

Na cena das duas na boate, quando elas se encontram pela primeira vez e dão o primeiro beijo, tem uma escolha de cores muito pragmática. A ideia foi buscar um contraste que fosse pulsante e que funcionasse como auxiliar naquele giro da câmera. A câmera dá um giro, vai acompanhando Eunice de um lado do eixo, depois encontra a Joana, e a gente dá um giro que é quase cento e oitenta graus. 

Foi natural pra mim buscar um azul que me trazia esse contraste de cor. Quando a gente começa acompanhando a Eunice se aproximando, a gente está num contraluz mais avermelhado, e quando a gente dá o giro, chega naquele telão mais azulado. Acho que o trabalho de cor foi muito mais acessório ao desenho de câmera, que foi o grande desafio ali. O filme se alinha um pouco com uma tradição de enquadramento e decupagens do melodrama, talvez do Douglas Sirk. 

A gente trabalha muito com planos fechados e vários planos. Uma quantidade bem grande, ainda mais se você pegar em comparação a outros filmes do Gabriel, ou mesmo da Filmes de Plástico, que tem um uso muito grande dos planos mais da ficção, mais afetivos.

Embaúba Filmes/divulgação

O desafio nessa cena foi não deixar que os primeiros planos caíssem em uma coisa invasiva, que o melodrama às vezes cai. Ou que caísse numa redundância afetiva de você usar o primeiro plano no momento que você não precisa ou não deveria usar. Para gente teve todo aquele acompanhamento, de criar aquela coragem de ela se dirigir, chegar na Joana, surgindo de uma forma leve. 

Também teve uma ideia de não cortar para uma subjetiva, nem nada que pudesse cair em uma objetificação, ou que pudesse tirar esse momento, não só da Eunice, como da própria Camila [Damião, atriz]. É um grande momento de atuação dela também. A gente já tinha estabelecido uma subjetiva um momento antes, quando a Eunice está olhando a Joana, para estabelecer alguns marcos narrativos da cena e para apresentar a personagem. Nesse momento de aproximação, estamos ali acompanhando, sem ser invasivo, e a Joana entra em quadro e a gente faz essa virada. 

Acho que o contraste de cor trabalha para fazer com que a virada de câmera se potencialize. Você dá um giro de cento e oitenta graus na câmera e também na cor.

Nonada – Uma outra cena marcante do filme é o gol do Galo e a reação dos pais. Tem um movimento de câmera, o tempo das reações e também um enquadramento fechado que, durante todo filme, dá muito protagonismo a cada um dos quatro dos personagens principais, em diferentes momentos. Como foram as escolhas?  

A cena do jogo do Atlético com o Cruzeiro, que é a cena em que a Joana conhece os pais da Eunice pela primeira vez, tem um início bem clássico, digamos assim. Ela tem um plano de conjunto, de apresentação da personagem no espaço pela primeira vez, e coincide também com a apresentação da personagem aos pais da Eunice. Uma vez que a gente sai desse plano, voltamos para esses fechados que permeiam muito o filme. E não deixa de ter uma ligação com vários outros planos fechados do filme, que é o que eu mencionei anteriormente da afeição, da ligação entre os personagens, do sentimento. 

São planos pra gente ver a atenção dos pais com o jogo, um possível desinteresse e desânimo do Deivinho, o afeto da Eunice com a Joana. Só que nessa cena a gente também hackeia um pouco com a introdução do movimento, a gente hackeia um pouco essas intenções para atingir um efeito cômico.

Na cena, a gente tem aquela passagem, que vai desvelando os elementos. O olhar de uma, pra outra, pra mão, e, de repente, para o olhar dos pais, eaquela surpresa.É um efeito que acaba sendo cômico até pela brilhante atuação da Rejane e do Carlão. Acho que a intenção foi não sair da proposta do do filme, que tem uma linhagem que comunica muito com o melodrama, mas que, através do desvelamento, atinge um efeito cômico que, de quando em quando, dá uma arejada no filme.

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Nonada – Também pensei em falarmos sobre a festa de aniversário no quintal da casa dos Martins 

A cena do aniversário da Tércia, no quintal da casa dos Martins, diverge um tanto da maioria das outras cenas do filme, porque ela tem um fazer de câmera que é um um tanto documental. Mas também porque são introduzidos ali alguns elementos de improvisação  na cena, nos atores, na construção da mise en scène

Por exemplo, o Cícero, o ator que faz o Deivinho, ele é de fato um  grande percussionista aqui de BH. O pai dele, o DéLucas, também é um sambista bem famoso aqui. Então, toda aquela banda ali que está tocando é de músicos mesmo, que o Gabriel colocou pra tocar sem muita marcação de cena. A câmera ficava um tanto livre e, cada vez que a gente tinha uma passagem de música, a câmera se colocava em uma posição mais estratégica e ia derivando em alguns personagens. Com o uso de teles, o uso de lentes mais fechadas, que complementam aquele plano mais aberto, é um plano de 16mm. Acho que foi o único plano do filme, se eu não me engano, que a gente chegou a abrir mais o campo de visão.

No geral, a gente estava mais fechado durante o filme, trabalhando planos mais fechados que era vão costurando o filme todo. Aquele plano estabelece aquele espaço, porque é a primeira vez que a gente vê ele no filme. Ele se repete e se repetia em outras cenas que não entraram no filme. Então a gente estava muito assim com essa intenção de estabelece-lo inicialmente e depois de ir soltar os atores durante a música. Tinha uma improvisação da dança, da movimentação, que conferiu ao fazer fotográfico meio que um aspecto “documental”, de seguir personagem, uma coisa quase como se fosse um cinema de observação. 

Quanto à luz da cena da festa no quintal, acho interessante também falar que a gente filmou Marte Um entre novembro e dezembro, que aqui em Contagem, é um período extremamente chuvoso. É sempre bem difícil, é um trabalho bem tenso para fotografia, assistência de direção, porque a gente tem que estar se virando o tempo todo. Nesse caso, marcamos a cena para o início da manhã até o início da tarde, um momento de  luz com muito mais dureza. 

Foi interessante para aquele conceito geral de trazer luzes dos astros, do sol, da lua, luzes que fossem mais marcadas, que talvez nesse caso até menos suave mesmo. Que a gente pudesse ter uma marcação mais forte da luz do sol, sombras mais marcadas, um contraste maior e que a gente acentuou um pouquinho a cor ali. Aquela cena tem um certo amarelado, âmbar, mais forte do que na maioria das outras cenas exteriores.

Teve essa noção de que a luz entrava muito bem no conceito de buscar uma cara dessas luzes que a gente naturaliza bastante, que o cinema tira muitas vezes a carga pessoal delas, e suaviza,e naturaliza de uma forma que ela fique meio que invisível, sem assinatura. A gente entendeu que trazer as sombras mais duras, que normalmente nós fotógrafos evitamos, poderia fazer parte do conceito geral do filme. 

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Nonada – E por último, sobre a cena em que a Tércia conta para família sobre o que aconteceu com ela naquele dia, durante a mesa de jantar. Todas as cenas na mesa são muito boas, com muita atenção ao que sentem os personagens. Lembro que a Tércia tem um enquadramento mais fechado, em que a gente só vê ela, enquanto escuta as vozes dos outros. 

A cena do jantar, em que a Tércia conta para os familiares que sofreu uma pegadinha e que não está passando bem, ela tenta ser, em termos de câmera, uma certa extensão da escolha principal de câmera da própria cena da pegadinha. Ela tenta se colocar num lugar invasivo, talvez seja a palavra Um lugar de pressão para a personagem. Na cena da pegadinha a gente também buscou alguns maneirismos de câmeras de pegadinhas mesmo. 

No caso da pegadinha a gente abre mais a lente, 24mm, para tentar, apesar de estar ali de frente personagem, um distanciamento.Tem essas diferenças, mas essa câmera do jantar ela tenta se aproximar um tanto dá pra pegadinha nesse lugar da da pressão, da tensão em cima da personagem. Com essa diferença de que ela tá ela está mais próxima, não fisicamente, mas pela escolha de lente – a gente devia estar tá ali em uma 85mm. 

A gente não sai de lá em nenhum momento. É como se tivesse, não só acompanhando a evolução dos sentimentos da personagem, mas também como uma certa pressão.  Escutamos apenas as vozes, que evoluem para risadas dos familiares, ecoando o mal estar da Tércia. Uma curiosidade que eu nem lembrava, mas o Gabriel num debate que a gente teve aqui em BH lembrou, que na minha cabeça a gente tinha feito umas coberturas dos familiares falando. 

 Eu lembro que a gente estava na cabeça que o melhor era esse plano, essa cena em único plano , mas eu achava que a gente tinha feito algumas coberturas. Só que o Gabi falou que não, que a gente não fez coberturas, porque apostamos desde o início que tinha que ser resolvida dessa forma, que era a proposta estética que fazia mais sentido. Até porque ele é um dos montadores do filme, então ele tinha isso bem claro e não se via montando aquele momento de outra forma. Então, a gente fez essa cena em plano único mesmo da Tércia e não temos material bruto nem cobertura, nem nada.

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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