“Pensar uma fotografia a partir dos direitos humanos é saber que você tem uma responsabilidade muito grande”, afirma Nay Jinknss, fotógrafa paraense, que há 13 anos registra o Ver-o-peso, maior feira a céu aberto da América Latina, em Belém. Documentarista, filmmaker e pesquisadora, ela é também defensora de uma prática fotográfica que não reforça estereótipos, principalmente de quem vive na Amazônia.
Ela defende que a Amazônia seja retratada com mais complexidade – para além da fauna, da flora, ou das imagens aéreas. Em especial para quem é do sul e do sudeste, pensar na Amazônia pode ser facilmente acessar essas imagens de cima. “Quando eu vejo meu estado sendo documentado a partir da fauna e da flora, eu não vejo diversidade do povo. Então, não me enxergo. E quando sou documentada, sou embranquecida. Sou estereotipada.”
Já na faculdade, quando cursava Artes Visuais na Universidade da Amazônia (Unama), percebia que as referências de fotografia apresentadas eram muito eurocêntricas. E quando a Amazônia era retratada, era por um olhar estrangeiro e que, comumente, justificava o trabalho em “salvar a floresta”, ou então “mostrar o povo”.
Foi só no fim do curso, em uma conversa com a pesquisadora Hedilene Reale, que ela conheceu o trabalho de João Roberto Ripper. Ripper nasceu no Ceará e criou a metodologia do Bem-Querer, uma pedagogia que se propõe mais cuidadosa e menos “salvacionista” para os fotógrafos. Quando Nay conheceu esta possibilidade de fotografia, se identificou e começou a estudar e praticar uma outra forma de abordagem para seus retratos.
Seu trabalho circula tanto na área socioambiental, em colaboração com instituições como o Amazônia Real, Greenpeace, National Geographic e UNICEF, como em circuitos de artes visuais, como o Arte Pará. Em 2020, foi indicada ao World Press Photo, prêmio internacional de fotojornalismo, e foi a 4ª vencedora do reality show “Arte na Fotografia”, do Canal ARTE1. Mais recentemente, também na área literária: dividirá uma mesa com Nair Benedicto em homenagem a Claudia Andujar, na Flip deste ano, em Paraty.
Quem acompanha Nay nas redes sociais percebe que seu Instagram não é apenas um portfólio, mas também um espaço que abriga discussões e debates que lhe atravessam. Ela não teme ser “uma fotógrafa militante”, porque, como conta, desde cedo sempre foi muito “briguenta”. Um desses momentos foi em dezembro de 2020, quando Nay e um grupo de fotógrafas da coletiva Mamana lançaram o manifesto “Contra-Referência”.
Elas questionavam uma fala de Miguel Rio Branco, que, na época, havia dito que “a fotografia estava morrendo”, porque as pessoas utilizavam cada vez mais celulares – e não câmeras – para registrar. “Retirar a possibilidade de quem não teve acesso às mesmas oportunidades institucionaliza o discurso e a produção imagética, perpetuando um olhar colonizador, viciado e violento. Quando colocamos a fotografia como ferramenta de extração, falamos a partir de uma relação de poder – que reforça os estereótipos, romantiza a pobreza, expõe uma população/território a uma história única”, diz o manifesto.
Para Nay, esse pensamento – replicado também por outros nomes consagrados da história da fotografia, como Sebastião Salgado – é uma tentativa elitista de manter a prática na mão de poucos. “A técnica é uma questão de poder. A fotografia é uma questão de poder”, alerta. “Muita gente diz que o fotojornalismo está morrendo, mas acho que, na verdade, estamos percebendo o quanto o que faziam era predatório.”
Um procedimento que aprendeu com Ripper e que leva até hoje para os lugares onde fotografa é “abrir” o processo com quem é fotografado. Não é incomum para Nay o momento de sentar com as pessoas para escolher, junto a elas, quais fotos seguirão adiante no projeto. “A comunidade vai vendo com a gente, com a liberdade de dizer se gostou ou não gostou. Essa curadoria conjunta é compartilhada para que as pessoas não se tornem reféns das histórias únicas ou dos estereótipos. Todo mundo quer se sentir bem na foto”, explica.
Outro ponto que Nayara sempre fala: é importante dar nome às pessoas. Ninguém fotografa “um vendedor”, “um barqueiro”, “uma trabalhadora”. As pessoas têm nome e história. A artista não concorda com a conhecida frase de que “uma imagem vale mais que mil palavras”, porque, segundo ela, imagens sem contextos podem ser armas.
Rebujo
Rebujo, no Norte, significa tudo aquilo que está nas profundezas dos rios, e que, com o movimento dos peixes, vem à superfície. É também o nome da música de um álbum de Dona Onete. Rebujo parece uma boa palavra para definir o que Nayara vem fazendo em seus trabalhos mais recentes. “Antes o espaço que eu mais discutia minhas coisas eram as redes sociais. Eu ia para frente do Instagram para fazer questionamentos, mas de alguma forma alimentava uma raiva dentro de mim. Me identifico muito com o discurso da Sueli Carneiro, em que ela fala sobre o momento em que não sabia politizar as discussões. Me dei conta que precisava de outras estratégias”, conta.
Nay foi encontrando essas estratégias para questionar as práticas coloniais da fotografia e demandar novas referências. Uma delas vem sendo a universidade – agora mestranda no programa de pós-graduação da Universidade Federal do Pará (UFPA) -, e outra é seu próprio trabalho artístico, que vem incorporando poeticamente os questionamentos da artista. Um exemplo é o vídeo mais recente que ela produziu para a Residência do Instituto Inclusartiz.
De volta ao Rio de Janeiro, onde morou por três anos, Nayara analisou cartões postais da época do Brasil Império, que traziam imagens de pessoas negras e indígenas. Na série intitulada Do Mar ao Rio, a partir de um vídeo e uma pesquisa histórica de imagens, ela analisa a metodologia racista e a naturalização de padrões visuais condicionados à população negra e indígena no país. Ela mostra que os enquadramentos repetitivos não ficaram no passado, mas que seguem sendo escolhidos por artistas contemporâneos.
No vídeo, diz em off, enquanto recorta, manipula, cola e sobrepõe imagens de arquivo: “Quando a gente fala de gênese da fotografia, e da sua intenção quando vem para o Brasil, a gente fala de um olhar estrangeiro, um olhar branco. Que tem a intenção de vender esse Brasil, civilizado, uma Amazônia a ser conquistada. Essa fotografia que foi vendida nos cartões de visita coisificou, objetificou, hiperssexualizou e criminalizou até hoje corpos pretos – assim como o meu”, aponta.
“A fotografia como arma imperialista reforça um lado da história. Uma estética racista com privilégios e muito poder […]. Por isso, é importante documentar o outro como alguém que a gente ama, com afeto e dignidade, e não apenas em nome da arte”, diz em uma espécie de slam.
Outro tema que Nay tem trazido à superfície é sua própria ancestralidade. Agora na UFPA, tem investigado seu segundo sobrenome. Todo mundo a conhece por “Nay Jinknss”, e não sabe que ela é também “Castro”. A história da família do pai, que aos 14 anos migrou de Curuçá, interior do Pará, para Belém, é o tema de sua mais recente investigação. “Curuçá” (buraco fundo) é uma cidade que abriga dois ritos integrantes do imaginário paraense: os “Pretinhos do mangue” e o “Rito da Iluminação”.
“A gente nunca estudou a gente, sempre estudou o de fora. O Paes Loureiro fala da necessidade disso.” O autor é um dos guias de Nay neste momento de olhar para o lugar de origem a partir de códigos próprios e de saberes populares. “Claro que nem todo paraense vai querer pensar dessa forma, não é uma fórmula. Assim como nem todo estrangeiro vai ser uma pessoa que vai capitalizar em cima”, reflete.
Tambor do Norte
Os ritos estão sempre presentes nas imagens de Jinknss. Devota de Nossa Senhora desde pequena, ela conta que “há 13 anos fotografa, e há 13 anos fotografa o Círio” – maior festa religiosa do país, que anualmente reúne milhões de pessoas nas ruas de Belém para homenagear Nazaré. “Cada ano eu me proponho a fotografar e olhar para o Círio de uma maneira diferente. Esse ano eu fotografei 95% com o celular”, conta.
Este ano, sem estar associada a um veículo jornalístico, ela fala que o “destino” foi entregar à Nossa Senhora. Quando ia no carro da Imprensa, ela sempre reparava que vários terreiros da cidade batiam tambor quando a procissão rodoviária passava com as imagens de Nazinha. Nos últimos anos, registrou este cruzo de ritos, já que o terreiro também faz parte de sua vida. Quando fala do Círio, Nayara parece falar também de seu trabalho enquanto artista, que procura coletivizar as práticas.
“Tudo que fazemos no terreiro é muito farto. Quando estamos no Círio, não tem ninguém que faça um pratinho de maniçoba. Todo mundo faz um panelão. Dentro das religiões afro-brasileiras, quando a gente quer chamar, louvar, um Orixá, a gente oferece o que tem de melhor. Tanto pro santo, quanto para as pessoas”, explica. “Quando se Nossa Senhora de Nazaré, também se faz isso, mesmo que inconscientemente.”
“Nossa Senhora é rainha da floresta, das águas, mas também pode ser Oxum, Iemanjá. Quando eu estou trabalhando no Círio, digo que trabalho para Maria, com Maria. Porque quero oferecer as fotos que transparecem o que é meu amor por ela”, conta. É bebendo de referências como essa, de um imaginário presente na comida, na fé e na cultura popular, que Nay foi estruturando os pontos de partida da sua trajetória como documentarista. A espiritualidade está cada vez mais presente em tudo que faz.
No meio do pitiú (forte odor de peixe), sob o céu de nuvens cheias de chuva, entre o ir e vir da Feira do Açaí, ao alto som do brega paraense, Nay encontra sua forma de aprender. As ruas, em especial as de Belém, são como personagens em seu trabalho. É também lá que ela encontra os rodopios necessários para seguir clicando e defendendo o que acredita. “A partir do momento que eu entendo que aprendo na rua, e que minha espiritualidade também está neste lugar, eu começo a entender que tipo de contribuição eu quero dar na fotografia. Sei que preciso revisar meu trabalho a todo momento. O meu discurso não se separa das imagens”, conclui.